Pierre Bordieu, o filósofo francês, que foi soldado durante as guerras de libertação da Argélia, desenvolveu a teoria dos capitais. Segundo ele, nós somos detentores de capital econômico (renda, salários, imóveis), capital cultural (saberes e conhecimentos reconhecidos), capital social (relações sociais que podem ser revertidas em capital, relações que podem ser capitalizadas) e capital simbólico (o que, no cotidiano, chamamos de prestígio ou honra).
Para realmente ser "rico", detentor do
poder econômico, o indivíduo precisa deter informação, conhecimento, um lastro
cultural sobre o saber humano acumulado ao longo dos séculos, caso contrário, o
dinheiro pode esvair-se pelo ralo do banheiro. É necessário saber movimentar-se
no meio em que vive, trabalha, executa suas ações de cunho econômico e, a
partir daí, traçar suas relações sociais.
Simplificadamente, segundo Bordieu, quando o seu
filho cursa inglês, quando a sua filha faz ballet, quando ambos fazem curso de
música clássica, muito além do capital econômico que você investe, você está
lhes concedendo capital cultural e propiciando relações sociais (capital
social) que podem entabular novas relações familiares.
O capital cultural abre portas para a realização da
capitalização social. Não adianta ter dinheiro e não saber falar em público,
não saber comportar-se numa reunião social, usar roupas extravagantes em
situações que exigem roupas sóbrias. Essas referências são apenas a título
exemplificativo.
Em um tempo em que a informação confiável,
verificada está a um clique da mão, pelo menos, o capital cultural pode ser
adquirido via internet (nunca via Facebook, Tik Tok e afins).
Tomemos como exemplo a leitura, a Literatura
stricto sensu. Até o advento da Revolução Industrial e da burguesia, o que se
lia era basicamente a tradição culta greco-romana: as epopeias de Homero e
Virgílio; Dante Alighieri, Shakespeare etc. A sociedade burguesa, contudo, não
tinha esse lastro cultural, definitivamente, faltava conhecimento para entender
as chamadas obras clássicas e, nesse contexto, emergiu o romance.
Divulgado em folhetins, o romance permitia que os
poucos leitores existentes, que tinham acesso aos jornais, tivessem algum tempo
para “digerir” (entender) o assunto de cada capítulo. Os romances, de um modo
geral, incentivavam o casamento – que era uma sociedade entre o pai da noiva e
o noivo, ou seja, o romance romântico cumpre um papel social.
Em que ponto adentra a questão do capital cultural?
1.
No caso da aristocracia e do clero, que tinham conhecimento sobre
Filosofia, Antropologia, Mitologia e “conseguiam” entender obras ditas
clássicas;
2.
A capacidade de ler os romances como instrumentos do poder econômico
para incentivar a sua perpetuação e a perpetuação de seus ideais.
Diante disso, nós estamos já tratando de capital
social, o que nos diferencia para o trato em sociedade. No mínimo, somos menos
ingênuos.
Em “Senhora”, de José de Alencar, nós temos quatro
capítulos e ali, apesar de ser um romance romântico, de cunho burguês, há uma
crítica clara ao Romantismo e ao modelo de sociedade de então: O preço (quando
Aurélia compra Seixas); Quitação (o passado de Aurélia, quando Seixas abandona
a moça pobre para casar-se com uma jovem que tem um dote matrimonial mais
robu$to); Posse (quando Aurélia humilha Seixas) e Resgate (quando Seixas paga o
dote que recebera de Aurélia).
O Realismo, escola literária que sucedeu o
Romantismo, apresentou uma ruptura clara com esse ideário burguês: “casaram-se
e foram felizes para sempre”. Ao contrário, quando se inicia a leitura do
romance “O primo Basílio”, de Eça de Queirós, de imediato, o leitor identifica
as características de Luísa, a personagem central: uma mulher romântica e o faz
pela descrição da sala, dos livros que ela lê. Luísa é sonhadora, Luísa sente
enfado do casamento, da casa, da rotina.
Na esteira de “Madame Bovary”, de Flaubert, e “O
primo Basílio”, de Eça de Queirós, os romances passariam a tematizar o
adultério, a prostituição, o homossexualismo, a promiscuidade etc.
O leitor atento, que aprofundou as suas leituras,
que criou um lastro cultural ou, como se queira, um capital cultural, consegue
ler “melhor” a realidade circundante e, em consequência, torna-se mais crítico.
É o capital cultural que adquirimos ao longo de
nossa vivência que facilitará muito, mas muito mesmo, a nossa compreensão dos
textos que lermos, a inferência que fizermos, o entendimento daquilo que não
está expresso, mas é subliminar.
Texto: Prof. Dra. Elaine dos Santos *** Ilustração: Jornal Rio de Flores
Elaine dos Santos, é natural de Restinga Seca/RS. Filha de Mario Cardoso dos Santos e Vilda Kilian dos Santos (in memoriam). Graduada em Letras, Mestre e Doutora em Estudos Literários, pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Possui formação em língua espanhola pela Universidad de La Republica, Montevidéu. É autora do livro “Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe”. Atuou como professora de Língua Espanhola, Literatura e Metodologia Científica no ensino médio, em cursos de graduação e pós-graduação. Foi Coordenadora do Curso de Letras e de Programas Sociais na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA/campus Cachoeira do Sul. Atuou como banca elaboradora de questões dos concursos PEIES e vestibular da UFSM e como avaliadora de redações dos mesmos concursos. É revisora de textos acadêmicos e parecerista ad hoc de revistas com classificação Qualis. Cronista, com publicações em jornais e em diversas antologias.

Edição e Direção Geral
Renato Galvão

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Amei e li com muita satisfação. Adoro sua forma e estilo de comunicar.
ResponderExcluirOi, boa tarde! Fico feliz que tenha gostado. Desde 2006, sou revisora de textos e tenho observado cada vez mais a importância do capital cultural, as nossas leituras - quer seja dos clássicos ou não - para que possamos entender melhor o mundo que nos cerca. Grande abraço e obrigada pelo incentivo.
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