sexta-feira, 12 de maio de 2023

 

Figura 1: Ilustração Jornal Rio de Flores

Sou professora licenciada em Letras já se vão quase 30 anos, portanto, já superei aquela fase inicial em que estamos propensos a corrigir tudo e todos, ou seja, aquela fase em que imaginamos que somos capazes de mudar o mundo.

Lecionei no ensino médio e no ensino superior, quase sempre, a disciplina de Literatura, desde as suas bases, aquelas disciplinas que ensinam os fundamentos literários, as concepções aristotélicas, até as diferentes correntes de crítica literária. Depois de aposentada, passei a exercer uma atividade em sentido bem distinto: a revisão de textos acadêmicos – artigos, dissertações, teses -, ou seja, textos técnicos, de diferentes áreas do conhecimento e a centrar-me, desse modo, na escrita da língua portuguesa culta.

Ortografia, pontuação, acentuação, concordância e regência nominal e verbal, estrutura de parágrafos, enfim, tudo que é próprio de uma escrita de qualidade, porque é muito feio (desqualificador) para um mestrando ou doutorando ter apontamentos de desvios de linguagem em sua dissertação ou tese. O meu trabalho parece ser bem aceito, afinal, com frequência, sou recomendada por clientes de diversas instituições.

Feita essa breve apresentação, quero fazer uma digressão para as redes sociais. Sou solteira, não tive filhos, moro sozinha, estudei, moro no Rio Grande do Sul, uma sociedade essencialmente patriarcal, forjada pelo masculino. Nessas condições, uma mulher que pensa e que diz o que pensa é chamada disruptiva, mas os populares chamam-na “louca”, porque foge aos padrões, ou seja, coloca-se em oposição à mulher dita normal: casada, com filhos e netos etc. Sabemos que todos têm as suas neuroses (mesmo que não admitam ou não saibam isso) e essas bobagens de ser ou não louca sempre foram facilmente entendidas por mim, embora sejam-me “cuspidas” como um adjetivo depreciativo.

Aqui eu chego ao ponto 1: desconhecemos o significado dos vocábulos que usamos em língua portuguesa. Se eu disser que alguém é neurótico, julgar-me-ão ofensiva, mas me chamarem de louca está no campo das práticas aceitáveis para os padrões das redes sociais.

Por derivação, considero que há um ponto 2: a linguagem comum (que, em língua culta, dizemos que é linguagem vulgar) tem maior aceitação entre os falantes de língua portuguesa, enquanto uma linguagem mais qualificada é rechaçada.

Questão 1: Por que a rejeição ao que estuda (não necessariamente o estudo formal, a escola), àquele que tem mais conhecimento? Por que não aprender com ele? Por que o padrão deve ser o que não estuda, não pesquisa, não se esforça para ser mais, aprender mais?

Questão 2: Por que não ampliar o nosso vocabulário? Quanto mais palavras conhecemos, melhor entendemos a realidade circundante. Eu sempre cito o exemplo do menino que foi chamado de “marginal” e ele ameaçou o seu interlocutor com um processo judicial. Se ele morava na última residência de sua rua antes de chegar à rodovia, que cruza à margem da cidade, ele tanto era marginal à cidade, quanto marginal à rodovia. Uma simples consulta ao dicionário teria resolvido a questão.

Ainda no campo das redes sociais, deparei-me com uma discussão (que, aliás, inspirou este texto) entre duas mulheres: a primeira alegava que não haviam “decifrado” o seu comentário, enquanto a segunda afirmava que só conseguia entender comentários que fossem minimamente escritos com coerência e clareza. Acontecia, frequentemente, na devolução de provas no ensino médio de os meus alunos questionarem por que determinada questão estava errada. Eu pedia que eles dissessem o que tinham respondido, eles falavam. Na sequência, eu pedia que lessem as suas respostas. Eu perguntava: “Alguma diferença entre a tua fala e a tua escrita?” Eles riam: “Todas”. Nem sempre o que queremos dizer é transposto para a escrita, ninguém consegue “decifrar” o que escrevemos.

Outro ponto importante: na escrita, se não houver pontuação (vírgula, ponto final, ponto de interrogação, ponto de exclamação), letras maiúsculas e letras minúsculas, por exemplo, a compreensão fica dificultada. Sem contar, que, na escrita, faltam os gestos, as expressões faciais.

Nesses tempos de polarização, se as pessoas lessem mais, escrevessem melhor e conversassem mais, exercitando mais e melhor a língua portuguesa, eu desconfio, haveria menos desentendimentos.

Ah, a propósito: o tal comentário que a mulher pedia que fosse decifrado, eu não decifrei.


Texto: Profª Drª Elaine dos Santos
Ilustração: Jornal Rio de Flores

Elaine dos Santos, é natural de Restinga Seca/RS. Filha de Mario Cardoso dos Santos e Vilda Kilian dos Santos (in memoriam). Graduada em Letras, Mestre e Doutora em Estudos Literários, pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Possui formação em língua espanhola pela Universidad de La Republica, Montevidéu. É autora do livro “Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe”. Atuou como professora de Língua Espanhola, Literatura e Metodologia Científica no ensino médio, em cursos de graduação e pós-graduação. Foi Coordenadora do Curso de Letras e de Programas Sociais na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA/campus Cachoeira do Sul. Atuou como banca elaboradora de questões dos concursos PEIES e vestibular da UFSM e como avaliadora de redações dos mesmos concursos. É revisora de textos acadêmicos e parecerista ad hoc de revistas com classificação Qualis. Cronista, com publicações em jornais e em diversas antologias.
Saiba mais sobre Elaine dos Santos em:

Edição e Direção Geral
Renato Galvão

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