sexta-feira, 5 de setembro de 2025


 Aquele senhor realizava sua caminhada devagar, pausada, com passos pequenos e postura ligeiramente encurvada, percorrendo diariamente o mesmo trajeto, dentro do bairro onde residíamos. Sua rotina era marcada por deslocamentos solitários, sempre na mesma direção, refletindo uma rotina de exercícios de baixa intensidade, recomendados por profissional competente. Ao deixar sua residência, seu objetivo sempre era retornar sem esforço excessivo, adotando um ritmo tranquilo, cantarolando sem pressa ou entusiasmo excessivo, caracterizando uma prática de atividade física moderada e segura, adequada às recomendações para manutenção da saúde e bem-estar.

Raramente, alguém se dispunha a acompanhá-lo! Não havia com quem conversar qualquer assunto banal. Assim, diariamente, ele permanecia sozinho, tendo como interlocutor sua própria companhia, refletindo sobre as coisas que observava ao longo do caminho. De tempos em tempos, encontrava um transeunte apressado, alguns vizinhos ou até mesmo crianças a caminho das brincadeiras na praça. Podia surgir também uma dupla de vira-latas, um preto e outro caramelo, os mesmos que vinham cumprimentá-lo com latidos estridentes, como dizendo bom-dia. Se não fosse a criatividade da imaginação, aqueles seus passeios diários seriam monótonos e sem graça. Portanto, ele continuava caminhando, dialogando consigo mesmo, tecendo comentários e conjecturas simples, comentando sobre as razões das coisas na vida, encontrando na sua própria voz interior uma fonte de estímulo e reflexão.

Pequenas ações e detalhes cotidianos contribuíam para colorir e enriquecer o percurso urbano daquele indivíduo. Com o passar do tempo, a repetição do trajeto tornou familiar todos aqueles elementos, criando para o caminhante uma conexão quase automática com o ambiente. No entanto, naquelas condições, justamente a criatividade e a imaginação humanas, transformaram aquela rotina em algo dinâmico e vivo, quando árvores, portões de casas, postes, pássaros e insetos pareciam adquirir voz própria, ter opiniões e até podiam discutir trivialidades do cotidiano, elevando a experiência urbana, de um simples passeio em uma vívida e significativa experiência.

A capacidade de atribuir vida e sentido às coisas inanimadas, não chegava a ser um ato de loucura, mas sim numa forma de explorar e interpretar o mundo ao redor. Assim, o velho, ao caminhar, encontrava nas pequenas coisas uma fonte de informação e reflexão, que o acompanhava até retornar ao ponto de partida, enriquecendo sua percepção e compreensão do meio ambiente. Aquela interação contínua, entre o caminhante e o espaço, revelava a importância de valorizar os detalhes aparentemente simples, pois eles contribuíam para uma experiência mais profunda e consciente do cotidiano urbano, estimulando a imaginação e a criatividade do homem de forma constante e natural.

O percurso diário daquela pessoa com mobilidade reduzida era marcado por desafios constantes, muitas vezes invisíveis aos olhos de quem não enfrentava tais obstáculos. Sua companheira fiel era uma pequena bengala, que lhe servia como uma extensão do corpo, auxiliando na manutenção do equilíbrio e na superação de obstáculos que pareciam pequenos, mas representavam riscos significativos. Tais obstáculos incluíam moitas de capim, buracos no piso, pedras soltas no calçamento, desníveis traiçoeiros e uma infinidade de detalhes que aumentavam a probabilidade de tropeços e quedas perigosas. Cada tropeço ou solavanco servia como lembrança constante das dificuldades enfrentadas na sua rotina diária no passado; e, muitas vezes, o caminhante reagia com um suspiro de frustração, expressando sua insatisfação, com palavras grosseiras, como impropérios dirigidos aos responsáveis públicos, pela péssima manutenção e acessibilidade das calçadas e ruas do bairro.

Apesar de todas aquelas adversidades, ele mantinha uma postura positiva de reflexão sobre o que significava viver com dignidade e bem-estar, buscando sempre encontrar sentido e esperança em sua jornada diária. Aquela realidade evidenciava a necessidade de melhorias na infraestrutura urbana, promovendo acessibilidade e segurança para todos, independentemente de limitações físicas ou psicológicas. A conscientização sobre aqueles desafios era fundamental, para promover uma sociedade mais inclusiva, onde o direito ao deslocamento seguro deveria ser garantido a todos os cidadãos, contribuindo para uma convivência mais justa e equilibrada.

Habitualmente observava-o passar diariamente, enquanto eu, sentado no banco da praça, simplesmente lia o jornal. Certo dia, decidi tomar a iniciativa de me aproximar, movido pela curiosidade. Queria conhecer mais sobre aquela pessoa, cuja aparência de cabelos brancos indicava maturidade e experiência. Com respeito, aproximei-me, pedindo desculpas pela intromissão, e iniciei uma conversa. Ele, sem hesitar, virou-se para me olhar com atenção, abriu um leve sorriso e prontamente exclamou: “Prazer! Meu nome é Paulo, mas pode me chamar de PP. Moro na casa 191. E o senhor, qual é o seu nome?”. Assim, nasceu uma amizade interessante, marcada pelo interesse genuíno e pela simplicidade do encontro.

Já fazia algum tempo que eu notava que o senhor Paulo tinha por hábito parar na frente de uma casa na praça, onde permanecia por mais tempo, observando atentamente. Tratava-se de uma residência de destaque, espaçosa e bem construída, com uma fachada que exibe um estilo arquitetônico lusitano, caracterizado por elementos tradicionais que remetem à herança portuguesa, porém apelidada de “Abrasileirada”, o que a tornava uma edificação de aparência única na região. O terreno, protegido por um muro de altura moderada, permitia uma visão clara de toda a propriedade, para quem passava pela calçada, revelando detalhes de seu interior. Dentro do espaço, podiam ser observados jardins que, em tempos passados, foram bem cuidados, com árvores frondosas, destacando-se uma mangueira extremamente antiga, símbolo de história e resistência. Ao fundo, situavam-se um canil, um galinheiro e uma horta que, atualmente, aparentavam estar abandonados, indicando um período de descuido. A piscina de tamanho considerável, junto com a garagem e uma churrasqueira, completavam a estrutura da residência, sugerindo um passado de vida familiar próspera e atividades sociais. No presente, a propriedade aparenta estar em estado de abandono, o que sugeria que uma reforma poderia revitalizá-la, sendo que uma pintura renovada e uma limpeza geral poderiam transformar o espaço, devolvendo-lhe o charme e a vitalidade de outrora.

Com determinação, perguntei ao senhor Paulo, já chamando-o de PP, qual era a razão daquela casa que o levava a parar ali constantemente, observando-a com atenção. Sua resposta me surpreendeu profundamente, pois, ao invés de uma explicação convencional, ele começou a cantar um antigo samba de breque, no estilo característico do Rio de Janeiro, homenageando a grande intérprete Clementina de Jesus. Essa atitude revelou uma conexão emocional e cultural que ele tinha com a casa e a música, demonstrando como a arte e a memória podem se entrelaçar na narrativa de uma simples observação.

Puxando discretamente do bolso da calça uma caixa de fósforos, PP com bom ritmo cantarolou, olhando para o casarão:

“ORGULHO, HIPOCRISIA, VAIDADE E NADA MAIS
SÃO COISAS QUE EM MENOS DE UM SEGUNDO SE DESFAZ
O MUNDO É MESMO ASSIM CHEIO DE ILUSÃO
HÁS DE TE CONVENCER MEU CORAÇÃO”

“NÃO SEI POR QUE TU ÉS TÃO ORGULHOSA
POR ISSO MUITO AINDA HÁS DE CHORAR
POIS NA VERDADE ÉS BELA E FORMOSA
MAS UM DIA A FORMOSURA HÁ DE TE ABANDONAR”

“AINDA TENHO ALGUMA ESPERANÇA
QUE UM DIA HÁS DE PERDER A PRETENSÃO
POR ISSO EU DIGO QUEM ESPERA SEMPRE ALCANÇA
E MAIS TARDE HÁS DE VER QUEM É QUE TEM RAZÃO”

Após aquele primeiro encontro, sempre que encontrava o PP durante suas caminhadas pelo bairro, aproveitava para trocar algumas palavras. Naquelas ocasiões, ele compartilhava um pouco mais sobre a história daquele antigo casarão. Se algum dia você cruzar com alguém agindo de maneira semelhante, como o PP fazia, não hesite em perguntar a ele sobre o desfecho da história. A curiosidade desperta interesse, não é mesmo? Contudo, não vou revelar detalhes aqui. Talvez, numa próxima ocasião! Até breve.

Texto e Tela: Rocha Maia
Edição e Ilustração: Jornal e Livraria Rio de Flores

Luiz Roberto da RochaMaia. Nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e Brasília e, atualmente, em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta anos de atividade cultural. Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas. Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP; MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal. Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro “O Diário de Lili Beth”, pela editora Viseu – 2021; e colaborou com a Coluna Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes. 

 

Direção Geral
Renato Galvão

 




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