domingo, 31 de agosto de 2025

 


Faz algum tempo que conheço a expressão “Merda pra você!”, dita carinhosamente, assim mesmo, mas em francês. Fica mais chique! A primeira vez foi quando convivi, por pouco tempo, com a intimidade dos cantores e músicos do mundo da música lírica, nas óperas do Teatro Nacional de Brasília. Percebi que era comum entre eles, antes de entrar em cena, dizer, um para o outro, simplesmente “Merde pour toi!” Isso mesmo: “Merde!”.

No início achei estranho; com o passar do tempo entendi ser a expressão um voto carinhoso e fraterno de sucesso, para uma boa apresentação no palco, desejando bastante sucesso e nenhum problema ou acidente.

Pesquisando, encontrei uma história que afirma ser costume, na França, as pessoas dizerem “merde” para desejar boa sorte a alguém, para um exame, uma entrevista ou até mesmo uma partida de futebol ...! Mas, de onde vem essa expressão em particular? No final do século XIX, burgueses e aristocratas viajavam de charrete, para se divertir e ver as peças de teatro. Os cavalos, estacionados em frente aos teatros, faziam as necessidades, naturalmente, no local. Se o show apresentado fosse um sucesso, o tapete na entrada do teatro ficava sujo, pelos espectadores que pisaram, lá fora, sobre bostas dos cavalos. Paradoxalmente, aquela camada de merda, era um sinal de que a peça bem-sucedida havia obtido bilheteria; e que os atores tinham seus cachês garantidos. Assim, quanto mais merda pisada, maior era o sucesso do espetáculo! Era um sinal de casa cheia, de bom público! Teria sido por tal razão que as pessoas acabaram desejando “merda”, uns aos outros, como forma de dizer “sucesso e sorte!”.


No Brasil, a prática não me parece ter sido adotada no cotidiano. Só o foi nas coxias e bastidores dos teatros. Certamente, na linguagem coloquial, também se diz isso, mas no sentido inverso! Quer apostar? Experimente dizer, ao cruzar com alguém na rua, “Merda pra você!”. Grite, por exemplo, para um motorista parado no cruzamento, quando o farol ficar vermelho: “Ei, psiu...! Merda para você!” O que você acredita que vai acontecer? E se alguém, que passa por você ocasionalmente, dirige-lhe essa frase, qual será a sua reação?

Não! Não experimente, o resultado pode “dar merda”!

Mas vamos esquecer um pouco esse negócio de “merde”! Vou lhes contar outra história sobre o que se passou comigo, durante uma exposição coletiva, por conta da minha arte “naif”! Contam os mais antigos que, um grande mestre das artes plásticas tinha, por curiosidade, o hábito de ficar a ouvir, escondido, a opinião das pessoas sobre suas pinturas. Conforme a crítica procedia de alguém confiável e parecia plausível, o mestre providenciava, na melhor oportunidade, a correção nas pinceladas; e voltava a ouvir a opinião das pessoas. Caso aquele que falava sobre os trajes fosse um alfaiate, ele registrava a crítica da roupa; se fosse um barbeiro, ele registrava a crítica da barba ou dos cabelos; e se fosse um marceneiro ele anotava o que era dito a respeito dos móveis.

Não me lembro o nome do tal artista, mas, em certa ocasião, ele teria falado algo em latim: “ne sutor supra crepidam” (“...que o sapateiro não julgue acima da sandália!”). Há quem diga que o artista era Michelangelo, mas isso pode ser um erro! Outros juram que teria sido um tal de Alexandre! Certo dia, o grande mestre ouviu muitas críticas de um cidadão, sobre uma de suas pinturas, contemplando variados detalhes, sobre os quais o apreciador nada entendia, por ser apenas um humilde mortal sapateiro. Revoltado com tamanha desfaçatez, o artista saiu do esconderijo e dirigiu-se proferindo aquela frase: “Alto lá! Não vá o sapateiro além das sandálias”! Queria ensinar que não devemos julgar além daquilo que a nossa competência permita, mesmo que seja, simplesmente, para fazer determinado tipo de avaliação ou crítica.

Sabendo dessa historinha, eu resolvi pôr em prática e experimentar a metodologia de aperfeiçoamento de detalhes na minha pintura.

Já tive a experiência dessa forma de oitiva, em exposição dos meus próprios quadros. É uma experiência muito interessante e emocionante. Certo dia, durante um salão de artes, realizado em Brasília/2006, coloquei-me discretamente a ouvir as críticas de pessoas que se aproximavam do meu quadro. Desejava saber o que comentavam elas sobre determinados detalhes da pintura, posto que havia recebido, naquele salão, medalha da máxima premiação, para o estilo ingênuo, do certame. Em pouco tempo, muitos visitantes já haviam comentado; e, grosso modo, noventa e nove porcento gostava da obra, confirmando a decisão da comissão julgadora.

Em dado momento, duas senhoras, talvez por sentirem-se mais à vontade, estando camufladas em meio ao público, proferiram espontaneamente suas opiniões, em tom de blague e confidência. Com ares de grande entendida, a primeira cochichou: “...no meu modo de ver, pintura pra valer, bonita mesmo, é aquela que a Zildinha faz nos panos de prato!”. Percebi quando, após alguns segundos de reflexão, a segunda senhora respondeu para a amiga, fazendo referência ao meu quadro: “Grande merda!”

Não sei dizer se foi algo vindo do astral ou se foi o que eu ouvi, naquele instante, o que me comoveu e moveu! Talvez tenha sido uma reação contrária ao espírito de porco das duas; entretanto pode ser também que tenha sido o espírito dionisíaco dos artistas de teatro, quando mergulham numa espécie de êxtase ou paixão, em defesa da interpretação de um personagem. Assim, num rompante, revelando-me aos olhos espantados daquelas duas senhoras, saindo, sem me identificar, lá do fundo do meu inconsciente e educado id, eu surgi com minha frase, algo que a ingenuidade da minha arte, combinada com a espontaneidade humana, me permitiu expressar a indignação. Confesso que a vontade era ter dito às duas, que me fitavam assustadas, “Ne sutor supra crepidam!” ("Não vá o sapateiro além do sapato!”) Porém, o que elas ouviram, em português, num tom imperativo, foi: “Mas..., que merda, heim...!”.

Nem bem eu havia terminado de falar “...érda!”, a primeira senhora retrucou, confiante: “...é verdade! Era isso o que eu pretendia falar! Os panos de prato da Zil são mesmo melhores do que essa pintura de merda!”; e elas caíram na gargalhada, enquanto eu, seguindo meu caminho meio trôpego, só consegui falar, no melhor estilo das coxias: “Merci beaucoup! Merde pour vous, mesdames!” Moral da história: Por maiores que possam ser os louros da sua vitória, seja humilde e aceite a realidade; para algumas pessoas do público, os panos de prato da Zildinha poderão ser mais belos, do que as telas que você pinta!

Texto e Tela: Rocha Maia
Edição e Ilustração: Jornal e Livraria Rio de Flores

Luiz Roberto da Rocha Maia. Nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e Brasília e, atualmente, em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta anos de atividade cultural. Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas. Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP; MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal. Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro “O Diário de Lili Beth”, pela editora Viseu – 2021; e colaborou com a Coluna Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes. 

Direção Geral
Renato Galvão


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