Quando
decidi cursar o Mestrado em Letras, ainda no século XX (1999), eu já tinha uma
pesquisa praticamente pronta: a História e a Literatura produzida no Rio Grandedo Sul haviam sido assuntos
pesquisados durante a graduação como bolsista do PIBIC/CAPES (Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica).
Concentrei
esses estudos no romance Camilo Mortágua,
do autor gaúcho Josué Guimarães.
Em poucas palavras, Camilo é um homem idoso, que mora num bairro bem periférico
de Porto Alegre, numa pensão
barata e que faz as suas refeições no bar que existe nas proximidades.
De
família rica, nascido na fronteira entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai,
sua família (Mortágua) que se esfacelou com o passar dos anos. Nos primeiros
dias de abril de 1964, ele vai ao cinema do bairro para assistir ao filme
“Cleópatra, a rainha do Nilo” (o filme existe apenas no texto do romance), mas,
o que vê, na tela, é a sua história. Trata-se, pois, de um exercício de
memória.
Só
regressei ao doutorado oito anos depois. Havia escolhido uma temática
diferente. Moro em uma pequena cidade do Rio Grande do Sul, daquelas que, nos
anos 60 e 70, do século passado, viviam grandes diversões durante a passagem de
circos, parques, teatros itinerantes. Em 2005, um grande circo visitou a
cidade, mas estava reduzido a três artistas e prestes a encerrar as atividades.
Ao
retornar do circo, comentei com o meu pai que se me divertira tanto com aqueles
espetáculos, era preciso deixar algum registro do que significaram para as
cidades interioranas em um tempo em que a televisão “engatinhava” no Brasil.
Ele indagou: “O que é que se pode fazer?” Eu respondi que não sabia.
No
ano seguinte, 2006, depois de 35 anos de ausência, eis que retorna à cidade o
Teatro Serelepe. Nas minhas
lembranças, a trupe do teatro estivera na cidade entre o final de 1971 e o
início de março de 1972, eu era uma criança, mas lembro a emoção das senhoras
nas “peças de chorar” e a alegria contagiante dos homens na apresentação das
“peças de rir”.
Moro
em uma região em que predominam a imigração alemã e a imigração italiana: à
saída dos espetáculos com peças de chorar, as mulheres estavam com os olhos
lacrimejantes e a pele vermelha. À saída das peças de rir, os homens estavam
com os olhos lacrimejantes e a pele vermelha.
Como
professora de Literatura, decidi que estudaria – no Doutorado em Letras – as
peças de chorar, que se aproximam dos pressupostos que Aristóteles,
em sua “Poética”,
define como Literatura. Selecionei dez peças. Nelas, predominam dramas
familiares, mocinhas abandonadas, traições amorosas, disputas por herança.
Há
três nomes dessas peças que ecoaram na memória por 35 anos: “Ferro em brasa”,
“O carrasco da escravidão” e “Maconha, o veneno verde”.
Em
“Maconha, o veneno verde”, em que a maconha era anunciada como a erva da morte,
um funcionário importante de uma empresa é instado a levar uma pequena fortuna
em dinheiro até a matriz localizada em São Paulo. Relutante, ele despede-se da
esposa e dos dois filhos: um menino e uma menina.
Na
capital paulista, é enredado por um casal golpista; a mulher o seduz,
aplica-lhe um sonífero, rouba-lhe a mala de dinheiro e a proprietária do hotel
em que ele se hospedara lamenta que ele tenha sido mais uma vítima dos
golpistas da maconha, o veneno verde.
Envergonhado,
o homem não volta para casa nem para o trabalho. Ele torna-se um viciado, um
homem de rua, pequenos furtos, pequenos serviços, de qualquer forma, porém, o
que fica claro é que tudo era feito para sustentar o vício.
Com
o passar dos anos, doente, envelhecido, ele decide voltar para a sua cidade de
origem. Vive na periferia, frequenta bares mal afamados e fica sabendo que o
filho era então o promotor de justiça da cidade.
Numa
discussão tola entre dois bêbados, é-lhe dito que a sua identidade seria
revelada para desacreditar o promotor de justiça. Enlouquecido, ele mata o
outro homem. Preso, vai a júri e o filho pede a sua condenação.
Hoje,
a história de Barbadinho, o personagem que sofreu o golpe da maconha (o veneno
verde) parece pueril diante dos inúmeros golpes de toda forma que existem,
especialmente, no mundo virtual e as drogas, antes impensáveis para a menina
que eu era (morando quase no fim do mundo no início da década de 1970),
multiplicaram-se.
Ainda
assim, tomei a peça teatral para pensar a infinidade de famílias – pais, mães,
avós, filhos, netos – que enfrenta a dura adversidade que a droga ilícita
(assim como as drogas lícitas) provoca. Mergulhamos em um abismo, que parece
sem fim e que suga vidas dos que consomem as drogas, dos seus familiares,
daqueles atingidos fisicamente por suas ações, mas também comunidades inteiras,
tornando-se um problema de saúde pública – e eu lamento perceber de crianças
desamparadas, por vezes, sem pai, sem mãe ou sem pai e mãe para construírem uma
identidade, desde cedo, forjada na dor, na contravenção, na violência. Até
quando?
Caso alguém tenha curiosidade, o texto integral da minha tese de doutorado está disponível em: https://repositorio.ufsm.br/handle/1/3984?locale-attribute=e
Pesquisas e Texto: Elaine dos Santos
Edição: Jornal e Livraria Rio de Flores
Elaine dos Santos. Professora
doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM),
desde 2013. Pesquisadora CNPq, com publicações preferenciais sobre Literatura,
Teatro, Cultura popular. Professora universitária aposentada. Revisora de
textos (artigos, projetos, dissertações, teses). Cronista. Organizadora de
antologias. É autora do livro “Entre lágrimas e risos: as representações do
melodrama no teatro mambembe” (2019), adaptação da sua tese de doutorado.
Membro de diversas academias literárias. Laureada com medalhas e certificados
de reconhecimento literário por diversas instituições. Dedica-se, atualmente,
ao resgate/à atualização da História oficial de seu município, Restinga Seca,
localizado no interior do Rio Grande do Sul.
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| Direção Geral Renato Galvão |


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