sexta-feira, 11 de julho de 2025

 


Quando decidi cursar o Mestrado em Letras, ainda no século XX (1999), eu já tinha uma pesquisa praticamente pronta: a História e a Literatura produzida no Rio Grandedo Sul haviam sido assuntos pesquisados durante a graduação como bolsista do PIBIC/CAPES (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica).

Concentrei esses estudos no romance Camilo Mortágua, do autor gaúcho Josué Guimarães. Em poucas palavras, Camilo é um homem idoso, que mora num bairro bem periférico de Porto Alegre, numa pensão barata e que faz as suas refeições no bar que existe nas proximidades.

De família rica, nascido na fronteira entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai, sua família (Mortágua) que se esfacelou com o passar dos anos. Nos primeiros dias de abril de 1964, ele vai ao cinema do bairro para assistir ao filme “Cleópatra, a rainha do Nilo” (o filme existe apenas no texto do romance), mas, o que vê, na tela, é a sua história. Trata-se, pois, de um exercício de memória.

Só regressei ao doutorado oito anos depois. Havia escolhido uma temática diferente. Moro em uma pequena cidade do Rio Grande do Sul, daquelas que, nos anos 60 e 70, do século passado, viviam grandes diversões durante a passagem de circos, parques, teatros itinerantes. Em 2005, um grande circo visitou a cidade, mas estava reduzido a três artistas e prestes a encerrar as atividades.

Ao retornar do circo, comentei com o meu pai que se me divertira tanto com aqueles espetáculos, era preciso deixar algum registro do que significaram para as cidades interioranas em um tempo em que a televisão “engatinhava” no Brasil. Ele indagou: “O que é que se pode fazer?” Eu respondi que não sabia.

No ano seguinte, 2006, depois de 35 anos de ausência, eis que retorna à cidade o Teatro Serelepe. Nas minhas lembranças, a trupe do teatro estivera na cidade entre o final de 1971 e o início de março de 1972, eu era uma criança, mas lembro a emoção das senhoras nas “peças de chorar” e a alegria contagiante dos homens na apresentação das “peças de rir”.

Moro em uma região em que predominam a imigração alemã e a imigração italiana: à saída dos espetáculos com peças de chorar, as mulheres estavam com os olhos lacrimejantes e a pele vermelha. À saída das peças de rir, os homens estavam com os olhos lacrimejantes e a pele vermelha.

Como professora de Literatura, decidi que estudaria – no Doutorado em Letras – as peças de chorar, que se aproximam dos pressupostos que Aristóteles, em sua “Poética”, define como Literatura. Selecionei dez peças. Nelas, predominam dramas familiares, mocinhas abandonadas, traições amorosas, disputas por herança.

Há três nomes dessas peças que ecoaram na memória por 35 anos: “Ferro em brasa”, “O carrasco da escravidão” e “Maconha, o veneno verde”.

Em “Maconha, o veneno verde”, em que a maconha era anunciada como a erva da morte, um funcionário importante de uma empresa é instado a levar uma pequena fortuna em dinheiro até a matriz localizada em São Paulo. Relutante, ele despede-se da esposa e dos dois filhos: um menino e uma menina.

Na capital paulista, é enredado por um casal golpista; a mulher o seduz, aplica-lhe um sonífero, rouba-lhe a mala de dinheiro e a proprietária do hotel em que ele se hospedara lamenta que ele tenha sido mais uma vítima dos golpistas da maconha, o veneno verde.

Envergonhado, o homem não volta para casa nem para o trabalho. Ele torna-se um viciado, um homem de rua, pequenos furtos, pequenos serviços, de qualquer forma, porém, o que fica claro é que tudo era feito para sustentar o vício.

Com o passar dos anos, doente, envelhecido, ele decide voltar para a sua cidade de origem. Vive na periferia, frequenta bares mal afamados e fica sabendo que o filho era então o promotor de justiça da cidade.

Numa discussão tola entre dois bêbados, é-lhe dito que a sua identidade seria revelada para desacreditar o promotor de justiça. Enlouquecido, ele mata o outro homem. Preso, vai a júri e o filho pede a sua condenação.

Hoje, a história de Barbadinho, o personagem que sofreu o golpe da maconha (o veneno verde) parece pueril diante dos inúmeros golpes de toda forma que existem, especialmente, no mundo virtual e as drogas, antes impensáveis para a menina que eu era (morando quase no fim do mundo no início da década de 1970), multiplicaram-se.

Ainda assim, tomei a peça teatral para pensar a infinidade de famílias – pais, mães, avós, filhos, netos – que enfrenta a dura adversidade que a droga ilícita (assim como as drogas lícitas) provoca. Mergulhamos em um abismo, que parece sem fim e que suga vidas dos que consomem as drogas, dos seus familiares, daqueles atingidos fisicamente por suas ações, mas também comunidades inteiras, tornando-se um problema de saúde pública – e eu lamento perceber de crianças desamparadas, por vezes, sem pai, sem mãe ou sem pai e mãe para construírem uma identidade, desde cedo, forjada na dor, na contravenção, na violência. Até quando?

 Caso alguém tenha curiosidade, o texto integral da minha tese de doutorado está disponível em: https://repositorio.ufsm.br/handle/1/3984?locale-attribute=e


Pesquisas e Texto: Elaine dos Santos

Edição: Jornal e Livraria Rio de Flores

Elaine dos Santos. Professora doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), desde 2013. Pesquisadora CNPq, com publicações preferenciais sobre Literatura, Teatro, Cultura popular. Professora universitária aposentada. Revisora de textos (artigos, projetos, dissertações, teses). Cronista. Organizadora de antologias. É autora do livro “Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe” (2019), adaptação da sua tese de doutorado. Membro de diversas academias literárias. Laureada com medalhas e certificados de reconhecimento literário por diversas instituições. Dedica-se, atualmente, ao resgate/à atualização da História oficial de seu município, Restinga Seca, localizado no interior do Rio Grande do Sul.

Direção Geral
Renato Galvão



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