Eu disponho apenas das informações que
estão acessíveis nas redes antissociais, não posso e não devo, portanto, traçar
qualquer julgamento de valor sobre as pessoas envolvidas (ou será que posso?).
Dias atrás, o Brasil assistiu em vídeos,
“reels”, charges à história de uma mulher residente em uma pequena cidade do
interior do Rio Grande do Sul, ela foi traída pelo marido/companheiro, a tal
ponto que ele teve ou terá um filho com uma de suas “amásias”.
Houve quem risse do “chá de revelação”;
houve quem lamentasse a exposição da intimidade familiar em uma casa de
madeira, pintura verde água, um aparente “lar” tão comum Brasil afora, Brasil
adentro.
Claro que a mulher traída, ferida,
magoada, fruto de uma sociedade conservadora, opressora, forjada no lombo de
cavalos como ocorreu no Rio Grande do Sul, obteve, de imediato, a minha
simpatia.
Primeiro, vieram os bandeirantes que
destruíram as reduções erigidas por padres jesuítas portugueses, mataram,
dispersaram ou escravizaram indígenas – certamente, muitas mulheres foram
violadas.
Em “O tempo e o vento”, particularmente,
nos dois primeiros volumes, “O Continente I” e “O Continente II”, Erico
Verissimo revisita parte da formação do Rio Grande do Sul e toma, como ponto de
partida, as reduções sob comando de padres espanhóis, os chamados “Sete Povos
das Missões”.
Os indígenas encontraram, em trabalho de
parto, deixada para morrer à beira da estrada, uma mulher, uma mulher indígena.
Ela é recolhida e levada para as Missões. Lá, nasce um bebê robusto e saudável,
Pedro Missioneiro. Um dos tantos filhos de tropeiros paulistas que vinham ao
sul em busca de bovinos e mulas para as feiras de Sorocaba.
A mulher traída que expôs a traição do
marido, cuja sogra era conivente, é fruto dessa sociedade violenta, que apaga a
voz feminina, que valoriza os prazeres do macho.
Acrescente-se que essa mesma sociedade foi
forjada à luz do Positivismo de Augusto Comte, que pautou a elaboração da
Constituição Republicana de 1891, sob orientação de Júlio de Castilhos, um
apaixonado pelo comtismo. Para Comte, a mulher deveria ser anjo tutelar e
rainha do lar: dedicar-se aos cuidados da casa, do marido e dos filhos – eu
diria: sem vida própria.
Camões escreveu que os tempos mudam e
mudam as vontades – nem sempre: ainda existe no senso comum sul-riograndense a
ideia que mulher deve casar-se, ter filhos, ser fiel ao marido... Ele? Bem,
ele...
A professora de Literatura que existe em
mim diante desses casos, invariavelmente, divaga. “Viajei”, literalmente, para
a Grécia antiga e revisitei uma das mais famosas peças dramáticas de Eurípedes,
refiro-me a “Medeia”.
Medeia é a figura principal de uma
tragédia que leva o seu nome. Simplificadamente, Medeia era filha de Eetes,
senhor do reino de Cólquida. Para lá, dirige-se Jasão a fim de obter o velocino
de ouro, mas Eetes impõe alguns sacrifícios a Jasão.
Medeia apaixona-se pelo estranho e ajuda-o
a roubar o velocino de ouro, impondo barreiras para que os soldados de seu pai a
encontre junto com Jasão. Na fuga e pelos lugares que passaram, Medeia não
deixou de mostrar o seu lado cruel.
Chegando a Corinto, Jasão é instigado pelo
rei, Creonte, a casar-se com a sua filha, Glauce (ou Creusa), livrando-se de
Medeia. Entre a mulher de sangue nobre, Glauce, e Medeia, uma plebeia, mãe de
seus filhos, Jasão propõe que Medeia torne-se a sua amante.
Furiosa, por meio de magia, Medeia faz
chegar um vestido de noiva, devidamente envenenado a Glauce. Assim que ela se
vestiu e colocou as joias que o acompanhavam, Glauce passou mal e todos que
tentaram acudi-la sofreram os mesmos efeitos.
É claro que optei por uma narrativa
mítica, envolta em magia e o fiz conscientemente. Em um mundo violento,
conturbado, intolerante, a mulher do vídeo, da casa verde água foi racional,
lúcida, paciente e fez a mais importante de todas as opções: a vida, a
liberdade, o respeito próprio, o amor próprio, o direito de ser quem é, com
dores e cicatrizes, mas mantendo as rédeas do seu destino (para ficar numa
expressão grega).
Edição e Ilustração: Jornal e Livraria Rio de Flores
Elaine dos Santos. De Restinga Seca/RS, terra de Iberê Camargo. Professora universitária
aposentada. Revisora de textos acadêmicos (artigos, projetos, dissertações,
teses). Doutora em Estudos Literários pelo Programa de Pós-graduação em Letras
da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), possui experiência docente no
ensino médio, graduação e pós-graduação. Especializou-se na modalidade crônica,
que se aproxima da estrutura textual de artigos e ensaios acadêmicos –
reflexões sobre um dado assunto. Possui crônicas publicadas, desde 2002, em
jornais e antologias. Responsável pela organização de diversas antologias.
Integra academias literárias gaúchas e nacionais. Honrada com certificados de
mérito literário e comendas.

Direção Geral
Renato Galvão

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