terça-feira, 22 de julho de 2025

 


Eu disponho apenas das informações que estão acessíveis nas redes antissociais, não posso e não devo, portanto, traçar qualquer julgamento de valor sobre as pessoas envolvidas (ou será que posso?).

Dias atrás, o Brasil assistiu em vídeos, “reels”, charges à história de uma mulher residente em uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, ela foi traída pelo marido/companheiro, a tal ponto que ele teve ou terá um filho com uma de suas “amásias”.

Houve quem risse do “chá de revelação”; houve quem lamentasse a exposição da intimidade familiar em uma casa de madeira, pintura verde água, um aparente “lar” tão comum Brasil afora, Brasil adentro.

Claro que a mulher traída, ferida, magoada, fruto de uma sociedade conservadora, opressora, forjada no lombo de cavalos como ocorreu no Rio Grande do Sul, obteve, de imediato, a minha simpatia.

Primeiro, vieram os bandeirantes que destruíram as reduções erigidas por padres jesuítas portugueses, mataram, dispersaram ou escravizaram indígenas – certamente, muitas mulheres foram violadas.

Em “O tempo e o vento”, particularmente, nos dois primeiros volumes, “O Continente I” e “O Continente II”, Erico Verissimo revisita parte da formação do Rio Grande do Sul e toma, como ponto de partida, as reduções sob comando de padres espanhóis, os chamados “Sete Povos das Missões”.

Os indígenas encontraram, em trabalho de parto, deixada para morrer à beira da estrada, uma mulher, uma mulher indígena. Ela é recolhida e levada para as Missões. Lá, nasce um bebê robusto e saudável, Pedro Missioneiro. Um dos tantos filhos de tropeiros paulistas que vinham ao sul em busca de bovinos e mulas para as feiras de Sorocaba.

A mulher traída que expôs a traição do marido, cuja sogra era conivente, é fruto dessa sociedade violenta, que apaga a voz feminina, que valoriza os prazeres do macho.

Acrescente-se que essa mesma sociedade foi forjada à luz do Positivismo de Augusto Comte, que pautou a elaboração da Constituição Republicana de 1891, sob orientação de Júlio de Castilhos, um apaixonado pelo comtismo. Para Comte, a mulher deveria ser anjo tutelar e rainha do lar: dedicar-se aos cuidados da casa, do marido e dos filhos – eu diria: sem vida própria.

Camões escreveu que os tempos mudam e mudam as vontades – nem sempre: ainda existe no senso comum sul-riograndense a ideia que mulher deve casar-se, ter filhos, ser fiel ao marido... Ele? Bem, ele...

A professora de Literatura que existe em mim diante desses casos, invariavelmente, divaga. “Viajei”, literalmente, para a Grécia antiga e revisitei uma das mais famosas peças dramáticas de Eurípedes, refiro-me a “Medeia”.

Medeia é a figura principal de uma tragédia que leva o seu nome. Simplificadamente, Medeia era filha de Eetes, senhor do reino de Cólquida. Para lá, dirige-se Jasão a fim de obter o velocino de ouro, mas Eetes impõe alguns sacrifícios a Jasão.

Medeia apaixona-se pelo estranho e ajuda-o a roubar o velocino de ouro, impondo barreiras para que os soldados de seu pai a encontre junto com Jasão. Na fuga e pelos lugares que passaram, Medeia não deixou de mostrar o seu lado cruel.

Chegando a Corinto, Jasão é instigado pelo rei, Creonte, a casar-se com a sua filha, Glauce (ou Creusa), livrando-se de Medeia. Entre a mulher de sangue nobre, Glauce, e Medeia, uma plebeia, mãe de seus filhos, Jasão propõe que Medeia torne-se a sua amante.

Furiosa, por meio de magia, Medeia faz chegar um vestido de noiva, devidamente envenenado a Glauce. Assim que ela se vestiu e colocou as joias que o acompanhavam, Glauce passou mal e todos que tentaram acudi-la sofreram os mesmos efeitos.

É claro que optei por uma narrativa mítica, envolta em magia e o fiz conscientemente. Em um mundo violento, conturbado, intolerante, a mulher do vídeo, da casa verde água foi racional, lúcida, paciente e fez a mais importante de todas as opções: a vida, a liberdade, o respeito próprio, o amor próprio, o direito de ser quem é, com dores e cicatrizes, mas mantendo as rédeas do seu destino (para ficar numa expressão grega).



Elaine dos Santos. De Restinga Seca/RS, terra de Iberê Camargo. Professora universitária aposentada. Revisora de textos acadêmicos (artigos, projetos, dissertações, teses). Doutora em Estudos Literários pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), possui experiência docente no ensino médio, graduação e pós-graduação. Especializou-se na modalidade crônica, que se aproxima da estrutura textual de artigos e ensaios acadêmicos – reflexões sobre um dado assunto. Possui crônicas publicadas, desde 2002, em jornais e antologias. Responsável pela organização de diversas antologias. Integra academias literárias gaúchas e nacionais. Honrada com certificados de mérito literário e comendas.

Direção Geral
Renato Galvão




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