Quem frequentou a escola quase até o final
do ensino fundamental, em algum momento, ouviu considerações sobre a
civilização espartana. Esparta era uma das cidades-estados da Grécia antiga em
que a disciplina militar predominava, os jovens eram formados combatentes.
Conta-nos a História que não era incomum ocorrer o sacrifício de crianças com
algum tipo de problema de saúde – não me cabe entrar em detalhes aqui.
Coincidência ou não, Atenas, entre as cidades-estados
gregas é, sem dúvida, aquela que forjou a sociedade ocidental: Filosofia,
Artes, por exemplo, têm as suas bases no chamado Século de Ouro ou Século de
Péricles. Enfim, Atenas fez História.
Ocorreu-me essa analogia ao revisar uma
tese de doutoramento que abordou a eugenia – o propósito do branqueamento da
raça, que vigorou em quase todo o Ocidente, mas que teria sido aplacada com as
terríveis experiências nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
No Brasil, a chamada Escola de Recife
defendia a possibilidade que a mestiçagem levasse, após a passagem dos séculos,
à melhoria das qualidades do brasileiro. Não é à toa que foram “importados”
europeus. Particularmente, Silvio Romero e Nina Rodrigues escreveram artigos,
participaram de eventos corroborando esses pressupostos.
Quando lecionava Literatura, ao abordar o
Realismo / Naturalismo e dedicar-me à análise do romance “O Cortiço” (1890), de
Aluísio Azevedo, costumava fazer um esquema no quadro com os três homens
portugueses: João Romão, Miranda e Jerônimo.
João Romão construiu o cortiço com o seu
próprio esforço, mas também com a extrema dedicação da escrava fugida
Bertoleza. A mulher juntou dinheiro para que ele comprasse a sua alforria. Ele
não o fez e ainda acabou por denunciá-la. Diante da iminente prisão, Bertoleza
suicidou-se.
Miranda era casado com Estela, uma mulher
que detentora posses, mas que traía o marido. De tempos em tempos, o casal
mudava de endereço e a vida continuava. Quando passaram a residir próximo ao
cortiço, João Romão, já enriquecido, pediu-lhes a mão da filha Zulmira e
casou-se com ela
Por fim, Jerônimo era casado com Piedade e
trabalhava na pedreira mantida por João Romão, mas se apaixonou pela “mulata”
Rita Baiana, que mantinha “um caso” com Firmo. Jerônimo separou-se de Piedade,
envolveu-se com Rita Baiana, brigou com Firmo, “perdeu-se na vida”.
Com muita frequência, os meus alunos
diziam: “Mas só os brancos alcançam sucesso nesse romance”. Cabia-me
explicar-lhes que o país vivia um processo em que o menosprezo ao ser negro era
evidente, porque a eugenia estava presente no imaginário e na ciência nacional.
Após a batalha final em Canudos, quando
Antônio Conselheiro foi morto, Nina Rodrigues solicitou o cérebro do beato para
estudos. Considerava necessário identificar o que fizera um sertanejo pobre,
semianalfabeto arrebanhar tantos outros miseráveis, fazer com que confiassem
nele e erguer uma comunidade no sertão baiano. Havia algo errado naquele
cérebro de um ser “menor”. Canudos, como se sabe, foi exterminado.
Monteiro Lobato, para restringir-me ao
campo da Literatura, foi ferrenho defensor da eugenia, da superioridade da raça
branca e, segundo a crítica, a tia Nastácia do “Sítio do Pica pau Amarelo” é o
exemplo paradigmático.
A História nos mostra que os campos de
concentração nazista foram um dos maiores exemplos de extermínio humano.
Sim, e daí? A tese que eu revisei
conseguiu me fazer refletir sobre as diversas formas de mortes que vimos
acontecer – alguns precisam morrer para que outros vivam: ocorreu-me o
genocídio na Armênia entre 1915 e 1923; os curdos tanto no Iraque de Saddam Husseim,
quando na Turquia são constantemente perseguidos; estamos quase diariamente
vendo e ouvindo notícias vindas de Israel e a morte de palestinos, mesmo
aqueles com cidadania de outros países.
Tudo isso, claro, faz pensar nas centenas
de milhares (talvez, milhões) de indígenas e negros mortos no Brasil ao longo
do processo de colonização e, depois, dele. Florestan Fernandes, em “A
integração do negro na sociedade de classes”, ensina-nos que se criou um
paradigma perigoso: sem preparo para a vida no meio urbano, o homem não
encontrava trabalho, enquanto as mulheres conseguiam empregos como lavadeiras,
diaristas, cozinheiras. Estava decretada a pecha de homens vadios.
Mas, em “Casa Grande & Senzala”,
Gilberto Freyre presenteou-nos com o mito da democracia racial – como se não
houvesse racismo no Brasil. Ainda há aqueles que insistem em comemorar 13 de
maio como data máxima da negritude. Enquanto o povo preto escolheu 20 de
novembro, a luta dos quilombos, dos quilombolas, a resistência ao cativeiro.
Somos cidadão de um mesmo país, em que o pacto da democracia racial, associado à ideia de branquitude, separou-nos, segregou quem tem a pele diferente, a origem diferente, como se um ser humano valesse menos que outro. Até quando?
Texto: Prof. Dra. Elaine dos SantosEdição e Ilustração: Jornal Rio de Flores
Elaine
dos Santos. Filha de Mario Cardoso dos Santos e Vilda Kilian dos Santos (in
memoriam). Professora universitária aposentada, cronista, antologista, revisora
de textos acadêmicos (artigos, dissertações, teses). Participação em mais de
100 antologias. Doutora em Letras, ênfase em Estudos Literários pela
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), autora do livro “Entre lágrimas e
risos: as representações do melodrama no teatro itinerante”, adaptação de sua
tese de doutorado, e “Coisas minhas e outras histórias” (no prelo).
Participante de várias academias literárias estaduais (Rio Grande do Sul) e
nacionais. Laureada com a Comenda Cícero Pedro Melo, honraria concedida pela
Câmara Literária de Pomerode, alusiva ao seu quinto aniversário; a Comenda
Barão de Mauá, honraria concedida pela Academia de Letras e Artes de Arroio
Grande – ALAAG; a Comenda Maria Firmina dos Reis, honraria concedida pela
Editora Mundo Cultural World; Medalha Destaque Cultural Hilda Ferreira da
Cunha, honraria concedida pela Academia de Letras e Artes de Arroio Grande –
ALAAG.
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| Edição e Direção Geral Renato Galvão |


Belíssimo texto professora Elaine dos Santos, parabéns. Me recordou lendo seu texto histórias já linda antes, que é importante sempre revisar, um assunto tão delicado que assola ainda o mundo, e se tornou a guerra do negritude com o branquitude e vise versa. Muitas pessoas opinam mas de fato ou talvez nem conheça as histórias do passado. E lamentável no mundo de hoje ainda existir esse tipo de preconceito de cor de raças. Se o direito é igual para todos, pasta que lutem pelos seus direitos não pela cor. Como séria separar o negro puro ou branco puro? Se existe a mistura de raças e de cor, tonalizando a cor da pele, se quando se mistura o DNA e quem define o novo ser. Acredito que a luta seja por direitos de fato não pela cor, o que falta é o próximo respeitar o próximo. Muito bom seu texto adorei e deixo minhas considerações.
ResponderExcluirMuito obrigada por suas considerações, Mozane! Eu não lembro quando foi, mas Daiane dos Santos esteve em uma palestra no meu município e um dos principais itens que ela destacou foi justamente o fato de ter predominantemente DNA branco, embora a pele seja negra. Por outro lado, a minha mãe, cujos ancestrais vieram da antiga Prússia, nunca idealizou a imigração germânica no Rio Grande do Sul; hoje em dia, lendo, pesquisando, estudando, é cllaríssimo que os imigrantes europeus que vieram para cá no século XIX vieram tangidos pelas guerras, pela seca, pela fome. Ao fim e ao cabo, somos gente.
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