quarta-feira, 9 de outubro de 2024

A Literatura produzida no Brasil é pródiga em memórias, cito, como exemplo, três títulos conhecidos: Memórias de um sargento de milícias (1854), de Manuel Antônio de Almeida, cronologicamente, considerado um romance romântico; Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, tido com o romance que inaugura a estética realista em nossa literatura; e Memórias sentimentais de João Miramar (1924), de Oswald de Andrade, em consonância com o ideário modernista.

Por outro lado, há uma enormidade de romances que adotam o tom memorialista em seu entrecho, mas não trazem o título com essa identificação. Refiro-me, por exemplo, ao texto de Josué Guimarães, escritor sul-riograndense, que foi tema da minha dissertação de mestrado, Camilo Mortágua (1980). O presente da narrativa situa-se nos cinco primeiros dias de 1964, mas Camilo, o protagonista, passa duas tardes num cinema miserável de bairro, recordando a história da sua família e a lenta desagregação social e econômica da economia rural gaúcha.

O que se tem é um personagem, herdeiros das ricas famílias da fronteira castelhana, que empobrece na cidade grande, incapaz de acostumar-se com o novo modo de vida, enganado, traído e, finalmente, morto.

Lembrei-me dessa tendência memorialista da nossa Literatura em função das eleições municipais – não, eu não pretendo tratar do pleito eleitoral de outubro. Quero apenas recordar que inúmeros candidatos se apresentaram com uma história pregressa absolutamente idônea, irretocável. Nem tanto! O nosso povo, porém, tem memória curta.

Conforme mencionei anteriormente, a minha dissertação de mestrado versou sobre uma obra de cunho memorialista e, parece dispensável anotar, mas conveniente, estudei os mecanismos da memória; desde a memória individual, passando pelas formas como os diferentes povos conservam a memória dos seus antepassados.

Entre os povos sem escrita, havia os homens-memória, anciãos encarregados de preservar as histórias do grupo, do clã; vieram estátuas, moedas e, finalmente, a memória escrita, que, hoje em dia, já é substituída pela memória cibernética e outras tantas “máquinas”.

Resido numa cidade interiorana – no coração do Rio Grande do Sul -, em que se verifica uma mescla de açorianos, negros, alemães, italianos; lecionei em escola de ensino médio e é possível verificar, no discurso cotidiano, certa aversão à leitura: ler cansa, ler dá sono (certamente, o quadro se replica em todo o país. O brasileiro lê, em média, quatro livros por ano. Evito discutir, argumentar. Considero sempre uma experiência subjetiva e um esforço individual que precisa ser feito por cada sujeito que deseja emancipar-se.

Recentemente, tive a grata satisfação de saber que um conhecido está lendo livros, porque cansou de ler manchetes e acreditar que sabia tudo sobre o assunto. As pessoas modificam-se, identificam os seus próprios limites, não?!

Como treinarmo-nos, como exercitarmos a memória e a criticidade se não retemos as informações, se não lemos, se não pesquisamos? As memórias são fartas, os registros são fartos.

Ao chegar à conclusão da dissertação de mestrado, eu tinha conhecimento de boa parte da História oficial e da história oficiosa, por um esforço pessoal de pesquisa. Não sou melhor nem pior por causa disso.

O sargento de milícias de Manuel Antônio de Almeida traz o barbeiro, a comadre, o padre, traz gente comum, como todos nós, no universo dos bairros cariocas do século XIX, em qualquer tempo somos gente, temos sentimentos. Há muito para dialogar com aqueles personagens, incluindo as “tretas”, as manhas do protagonista.

Brás Cubas exige um pouco mais de maturidade, certo conhecimento de ironia – gosto muito da passagem “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”, ou seja, o amor limitou-se ao capital, ao dinheiro existente para ser gasto. O jogo de interesses entre os seres humanos é uma constante em qualquer sociedade.

Sempre que há um edital para uma nova antologia, faço a sua leitura e penso: que obra da Literatura brasileira dialoga com essa proposta. A leitura literária amplia a minha diversidade temática, as minhas formas de abordagem e, como tal, enriquece o universo de significações.

Não diria que ler é preciso, há pessoas que preferem viver distanciadas desse mundo que nos abre portas, inclusive, para a compreensão das ações humanas, mas diria que é um grande e saboroso desafio a ser posto em prática.

Atribuída a George Martin a máxima: “Um leitor vive mil vidas antes de morrer. O homem que nunca lê vive apenas uma”, sintetiza um pouco do que tentei expressar aqui.

Texto: Prof. Dra.Elaine dos Santos

Edição e Ilustrações: Jornal Rio de Flores

Elaine dos Santos. Filha de Mario Cardoso dos Santos e Vilda Kilian dos Santos (in memoriam). Professora universitária aposentada, cronista, antologista, revisora de textos acadêmicos (artigos, dissertações, teses). Participação em mais de 100 antologias. Doutora em Letras, ênfase em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), autora do livro “Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro itinerante”, adaptação de sua tese de doutorado, e “Coisas minhas e outras histórias” (no prelo). Participante de várias academias literárias estaduais (Rio Grande do Sul) e nacionais. Laureada com a Comenda Cícero Pedro Melo, honraria concedida pela Câmara Literária de Pomerode, alusiva ao seu quinto aniversário; a Comenda Barão de Mauá, honraria concedida pela Academia de Letras e Artes de Arroio Grande – ALAAG; a Comenda Maria Firmina dos Reis, honraria concedida pela Editora Mundo Cultural World; Medalha Destaque Cultural Hilda Ferreira da Cunha, honraria concedida pela Academia de Letras e Artes de Arroio Grande – ALAAG.

Edição e Direção Geral
Renato Galvão


 

2 comentários:

  1. Muito bem! Muitos parabéns pelo seu ponto de vista.

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    1. Eu costumo dizer que todo ponto de vista é válido, desde que a argumentação seja consistente.

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