Quando fiz a
seleção para o mestrado em Letras, eu tinha uma pesquisa quase pronta, desenvolvida
durante a graduação, como bolsista CAPES/CNPq. Havia estudado sobre a
Literatura e a História do Rio Grande do Sul, lera um sem-número de romances,
cujo protagonista era o homem nascido no Rio Grande e com características que
se diz tipicamente gaúchas.
Dedicara muito
tempo ao estudo do mito do gaúcho (ora chamado monarca das coxilhas, como se
fosse um rei que dominasse as planícies e as colinas; ora chamado centauro dos
pampas, a figura mitológica grega, meio homem, meio cavalo, uma vez que o
gaúcho tinha o cavalo como amigo e companheiro; servia-lhe como proteção, meio
de transporte etc.), a forma como surgira o mito, como ocorrera a sua
decadência no meio rural e como a Literatura interpretou essas diferentes
nuances do mundo real.
Faltava-me
escolher o romance para análise e optei por “Camilo Mortágua”,
de Josué Guimarães,
daqueles romances que só fazem sucesso no próprio Rio Grande do Sul (como se
diz por aqui, não conseguem passar o Mampituba, o rio que marca a divisa com
Santa Catarina).
Dois aspectos
precisavam ser considerados: a memória era o primeiro deles. A narrativa
passa-se nos cinco primeiros dias do ano de 1964, enquanto Camilo, o personagem
principal, reside numa velha pensão de bairro em Porto Alegre e, como distração, resolve assistir ao filme “Cleópatra, a rainha do Nilo” –
filme de 1945, cuja protagonista é Vivian Leigh ,
mas o que vê é a história, a lenta história de desagregação da sua família. Ele
só consegue recordar-se com a “ajudinha” da tela do cinema, a organização dos
fatos da sua vida pessoal somente se dá com um artifício mecânico, fora dele.
Que traumas, que faltas, que interdições não nos permitem lembrar?
Por outro lado,
ciente que Literatura e História lidam com temas muito próximos: a realidade, eu
ainda acreditava que a História se dedicava aos fatos “verdadeiros”, enquanto a
Literatura encarregava-se de reapresentá-los sob um viés mais lúdico. Confesso,
eu ainda era muito ingênua.
Um dos primeiros
livros teóricos que li, no mestrado, foi “Como se escreve a História”,
de Paul Veyne, que indica que, assim como o romancista preenche espaços vagos
deixados pela memória do fato, o historiador não tem todos os elementos que
aconteceram, por exemplo, no campo de batalha e compõe o seu texto com base em
indícios: documentos, depoimentos etc.
Paul Veyne, Peter
Burke, Jacques Le Goff, entre outros, mostraram-me algo que a minha “santa
ingenuidade” nunca imaginara. Veyne cita a batalha de Waterloo, em que Napoleão
é derrotado pelos ingleses e afirma que se trata de uma História: a derrota de
Napoleão, mas observa que não são contadas as Histórias dos soldados vencidos
ou dos soldados vencedores, o que se convencionou chamar a História de baixo.
A História conta,
de fato, uma verdade, porque nos escapam, assim como escapa ao historiador,
todos os pontos de vista sobre o mesmo fato. Naqueles conturbados dias de abril
de 1964, ainda que a narrativa do romance “Camilo Mortágua” deixe entrever a
agitação das ruas, o que importa ao velho senhor é um acerto de contas com o
seu passado, é a SUA História.
Essas ideias ocorreram-me com a proximidade das eleições municipais, quando surgem estórias, histórias, historietas, meias verdades. No período eleitoral, há pessoas nascendo, pessoas doentes, pessoas morrendo, pessoas rindo, pessoas chorando; enquanto alguns se engalfinham em lutas de poder, a vida segue o seu curso. Para a História, restarão os fatos a serem narrados pelos vencedores, se é que alguém vence uma luta de poder (lembremo-nos da tão exemplar tragédia grega “Antígona”).
Texto: Elaine dos Santos


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