quinta-feira, 25 de julho de 2024

 


Há alguns capítulos em “Memórias póstumas de Brás Cubas” , romance de Machado de Assis, que eu sempre destaquei para os meus alunos de ensino médio e de graduação pela acurácia com que refletem sobre a condição humana, “sob a pena da galhofa (ironia), tão peculiar ao autor.

Brás Cubas, o defunto-autor ou o autor-defunto, recorda-se que, ainda menino, na verdade, o menino-diabo, cuja mãe intenta colocar alguns preceitos de fraternidade e orações, sobre ter quebrado a cabeça de uma escrava, que lhe negara um doce; e sobre o menino Prudêncio, filho de outra escrava, usado como cavalo, fustigado com uma varinha.

Há um trecho peculiar, ainda referindo-se à infância: “Outrossim, afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclinei-me a atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la por partes, a entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares” (1992, p. 33). Um mau caráter segundo os padrões da moralidade ocidental. Os seus julgamentos seguiam os seus interesses, mesmo que isso ferisse interesses alheios, fizesse sofrer pessoas.

Brás Cubas cresceu e, no capítulo 68, “O vergalho” (chicote), reencontramos o menino Prudêncio, já adulto, que recebera a sua carta de alforria anos antes por parte do pai do protagonista.

A caminhar pela cidade, Brás Cubas ouve as súplicas de um negro, que estava sendo chicoteado por seu senhor. Quanto mais o homem supliciado gemia e suplicava, mais apanhava. Prudêncio comprara um escravo e repetia no corpo do homem, que ele chamava “bêbado”, “besta”, os mesmos sacrifícios que lhe foram impostos enquanto vivera a escravidão.

Brás Cubas manda que o escravo seja poupado, Prudêncio, por respeito, libera o homem para que se trate das feridas e Brás Cubas segue o seu caminho. Em seu pensamento, vai avaliando que Prudêncio teria motivos para chicotear o homem, também negro como ele, afinal, fora inúmeras vezes supliciado, vingava-se no corpo do outro das dores que sofrera: “comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!” (1992, p. 101). Sem compaixão pelo escravo que apanhara, ainda acha graça da atitude de Prudêncio.

O episódio de “O vergalho” ocorreu-me, dias atrás, quando se brincou com um estagiário: “Não te preocupa, um dia, haverá outro estagiário”, ou seja, todas as dificuldades que tu enfrentas agora serão impostas a outra pessoa. “Quem sabe tu podes te vingar?”

Na obra “Discurso da servidão voluntária”, o filósofo francês Étienne de La Boétie  (sim, ele foi objeto dos meus estudos na pós-graduação) associaria o caso de Prudêncio ao hábito de uma sociedade pautada pela imoralidade e pela ignorância, que proporciona disposição entre homens comuns a atos tirânicos, violentos. Muitos seres humanos quando se sentem oprimidos tendem a alinhar-se ao opressor para poderem demonstrar (parecer ter) a força do opressor. Vale a surrada citação usada e reusada de Simone de Beauvoir: “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplice entre os oprimidos”.

Difícil é o oprimido ter a capacidade cognitiva, o conhecimento necessário, numa sociedade como a brasileira, marcada pela educação de baixa qualidade, conseguir perceber a situação de opressão e miserabilidade que vive.

O meu professor de Sociologia Política, no Curso de Economia, costumava dizer que nenhum brasileiro se reconhece como pobre, ele sempre responderá: “Rico de saúde, graças a Deus”, mesmo que fique 12 horas sentado num banco desconfortável numa central de atendimento médico qualquer ou passe dias no corredor de um hospital público.

Enquanto não nos dermos conta das práticas normalizadas, cotidianamente, que oprimem, que segregam, não haverá mudanças, o pobre humilhará o miserável, o pardo humilhará o negro, o branco humilhará o negro e o pardo. As vilas, as invasões, as péssimas condições de transporte urbano, a falta de esgoto e saneamento, os discursos preconceituosos que emanam da boca de certos políticos contra pretos, indígenas, mulheres, população não heterossexual serão sempre os vergalhos, os chicotes a supliciar a nossa condição humana. Meninos diabos seguem atuando...se não quebram cabeças, eles matam, chacinam.

 
Texto: Prof. Dra. Elaine dos Santos
Ilustração: Jornal Rio de Flores

Elaine dos Santos. É gaúcha, filha de Mario Cardoso dos Santos e Vilda Kilian dos Santos (ambos falecidos). Professora universitária aposentada. Revisora de textos acadêmicos (dissertações e teses). Cronista e antologista.

Possui doutorado em Letras, área de concentração Estudos Literários, autora do livro “Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe”, adaptação da sua tese. Deve lançar, ainda no primeiro semestre, o livro de crônicas “Coisas minhas e outras histórias”, cujo enfoque principal é a narrativa memorialista.

Participa das antologias “Encantos da Lua”, “Elas São Flores” (Prefácio, Revisão dos Textos e Coautora), “Natureza, Fonte de Vida”, “As Faces do Amor”, “Vida”, “Velhice, Vida ou Morte?”, “Palavras Libertas”, “A Arte de Escrever”, “Aos Pés das Letras” (Prefácio), “Reflexões... Histórias e Revelações” e “Homenagens”, publicações da Rio de Flores Editora.

 

 

Edição e Direção Geral
Renato Galvão


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