Clarice, agora uma jovem senhora em seus cinquenta anos, cabelos
grisalhos, agora cheinha como ela mesma se dizia. Não tinha vaidade, a maior
parte do tempo escrevia, em sua velha máquina de escrever, presente que lhe
fora dado por seu falecido esposo.
Escrevia sobre
receitas, comidas que eram a causa daqueles quilos a mais. Sua família sempre
foi do ramo de restaurantes, só ela era a ovelha perdida. Após se casar com um
médico, e viver por anos com ele, resolveu escrever histórias divertidas sobre
sus família, conseguiu algum sucesso. Mas sempre lhe faltou algo, que não sabia
explicar o que era. Teve no casamento uma vida morna, sem grandes entusiasmos,
nem mesmo filhos tivera. Antes da morte de seu esposo, sua vida tinha sido
confortável e feliz.
Mas quando a tristeza
caiu sobre a terra, nada mais havia para ela naquele lugar. Tivera amor e mil
razões para ser feliz, mas agora tudo parecia sem sentido, tudo era trevas e
insatisfação. Juntou os cacos da vida que lhe restava e tomou rumo
incerto. Iria para onde ninguém a conhecesse, talvez algum dia reencontraria
paz. Deixou tudo para traz, nem a máquina de escrever quis levar, era pesada,
só algumas roupas em sua mala.
Pegou o primeiro trem
para nova vida. Quando chegou a cidade era pequena, olhares curiosos pareciam
perguntar quem é você? Ela conseguiu encontrar uma imobiliária com preços que
combinavam com sua pequena aposentadoria, era um pequeno apartamento no quinto
andar de um edifício antigo. Uma sala pequena, porém, bem mobiliada com uma
janela que dava para a rua com pouco movimento, um quarto com cama de casal e
uma pequena cozinha com armários azuis. Achou graça nos armários que pareciam
ter saído de um catálogo dos anos cinquenta.
Parou olhou pela janela
do quarto e viu que dava para outra janela a poucos metros do seu, tinha a
impressão de que se do outro lado alguém esticasse os braços, tocariam as suas
mãos. Ideia idiota, para quem não tinha mais ninguém no mundo, nem ousava ter o
toque de outro ser humano. Passou uma semana inteira varrendo e limpando, fazia
isso com gosto era uma distração, de seus pensamentos tristes e de sua
incapacidade de sentir felicidade.
Havia um pequeno
mercado na esquina, um casal simpático de meia idade, já haviam perguntado, de
onde viera, o que fazia, quais eram os seus planos, se era casada, se tinha
filhos? Ela sorriu e simplesmente disse que estava atarefada, em outro momento
conversaria, não era dada a conversas. Não voltou mais a aquele mercadinho.
Encontrou outro mais distante, onde ninguém a olhava com indagações. Passou um mês. Clarice estava acomodada em seu refúgio, voltou a escrever seus contos, histórias do cotidiano, porém notou que a cada vez que pegava a caneta, sua mão derramava sobre o papel centenas de palavras. seu cérebro parecia se apagar, como se uma outra mente a guiasse. Juntou os manuscritos e enviou a editora, em menos de um mês a responsável por seus textos veio lhe procurar super entusiasmada.
— Boa tarde Clarice.
— Boa tarde Alice, perdoe a demora em mandar os textos.
—Você, está brincando? Estes contos são maravilhosos, parece que você realmente conseguiu, deixar as velhas histórias de família, suas palavras são assustadoramente envolventes, seus personagens são cativantes.
— Do que você está falando Alice?
— Como assim, você não lê o que escreve querida?
Vamos publicar e quem
sabe você vai entender o que fez. Clarice não entendeu bem o que estava
acontecendo, mas como precisava de um dinheiro extra, deixou-se levar pelo
entusiasmo da amiga. Conseguiu até se sentir bem, até diria que estava feliz.
Deitou e a noite foi
tranquila, acordou depois das nove horas, por anos, não conseguia dormir tão
bem, não acordou no meio da noite, nem se levantou na madrugada silenciosa.
Estava bem e revigorada. Andou pela pequena cidade, encontrou em uma loja de
usados, uma máquina de escrever, mas que estava restaurada e funcionava bem.
Levou para casa sem sentir o peso. Nem aceitou que o homem da loja enviasse
para seu endereço.
Subiu as escadas quase correndo, entrou em casa e colocou a máquina na mesa de centro da sala. Foi a cozinha tomar um copo d'água, e ouviu alguém digitando na máquina. Veio correndo e viu um jovem moreno e magro que lhe sorriu.
— Quem é você? Como entrou aqui? Ele continuou digitando sem papel na máquina só digitando.
— Por favor saia da minha casa, ou chamo a polícia.
— Fique tranquila eu moro aqui, meu nome é Antônio.
— Como assim mora aqui? Não lhe farei mal, estive a sua espera por longos anos, enfim você voltou para casa. Ela ficou calma, de repente sentiu paz. Ela o reconhecia, mas não sabia dizer de onde, ou quem era aquele homem que fazia suas pernas tremerem e seu coração disparar.
— Eu te conheço, mas não me lembro de onde.
— Não se preocupe Clarice tudo vai se encaixar. E simplesmente desapareceu. Ela quase desmaiou.
O que estava
acontecendo? Quem era aquele fantasma, sim um fantasma. Resolveu sair e comprar
papel para a máquina, encontrou fita que serviam e voltou, não viu o jovem por
dias, demorou para voltar a escrever. Não era eximia datilografa, catava milho
como se diz quando não se tem a destreza, digitava com dois dedos. Depois do
almoço que foi preparado com capricho, que há muito tempo não tinha. Comeu
devagar e saboreou o bife com prazer inesperado.
Sentou-se à mesa da
cozinha com a máquina já devidamente equipada com a nova fita, colocou papel na
máquina e novamente se sentiu tomada de uma vontade imensa de escrever, sobre
os campos e o romance de um jovem casal, não era só uma história era vivida e apaixonante,
suas mãos agiam rápidas no teclado com firmeza. Então entendeu tudo, era
Antônio que ditava as palavras, porque ela em seus cinquenta e tantos anos se
sentia jovem e apaixonada.
Queria vê-lo queria
tocar aquele rosto moreno e ouvir sua voz. Não percebeu que a noite já estava
alta, e quase uma centena de páginas estavam empilhadas, ao lado da máquina.
Estranhamente não estava cansada, estava faminta e com sede. Levantou-se e foi
ver se a havia sobrado algo do almoço, juntou tudo em um pão e com um copo de
suco na mão sentou-se no sofá, comeu olhando pela janela.
O céu estava claro era
noite de lua cheia, dava para ver as estrelas brilhando como pontinhos azuis no
céu. Não soube dizer, que horas adormeceu, sonhou com Antônio, ele era seu par
no baile da escola. Estavam felizes e naquele baile aconteceu o primeiro beijo.
Acordou com o coração aos pulos, alguma coisa dentro de seu peito mudou, estava
apaixonada como uma colegial e feliz. Conseguiu publicar em tempo recorde
aquele romance, sucesso imediato. Nunca havia vendido tantos livros, nunca fora
reconhecida por seu trabalho, mas ao mesmo tempo sentia que estava traindo
alguém, todas as palavras o enredo eram de Antônio. Ela pedia que ele
aparecesse que falasse com ela. Mas nada acontecia só o silêncio. Passou mais
de um ano. Conseguiu ganhar dinheiro suficiente para comprar uma casa em um
bairro mais afastado para ter mais tempo para se dedicar a escrita. E então
Antônio apareceu veio se despedir e disse que seu lugar era o pequeno
apartamento da Rua Monteiro, que agora ela poderia ser a escritora que havia despertado
sua nova vida. Ela recusa-se a deixá-lo partir, mas ele disse que não partiria,
porque jamais se esqueceriam e esvaiu-se como fumaça no ar.
Depois de 15 anos ela
teve um ataque cardíaco e se viu novamente no pequeno apartamento da Rua
Monteiro com Antônio, os dois enfim estavam juntos e desta vez alcançaram o
outro plano. Haviam sido um casal na vida setenta anos antes, ela morrera antes
dele, e ele definhou em meses para reencontrá-la. Mas ela já havia reencarnado,
e tornado a viver entre humanos, ele esperou por ela, foi sua decisão esperar
sua amada por anos, ela veio desta vez para sempre.
Ilustração: Jornal Rio de Flores
Ivete
Rosa de Souza nasceu em Santo André, no ano de 1955, canceriana apaixonada por
histórias. Adora poesia, crônicas e contos. Tem muitas histórias na cabeça, e a
poesia que adorna os dias veio para ficar. Dois livros de poesia publicados:
Coração Adormecido e Ainda dá Tempo. E em 2022. Participações em 40 Antologias
físicas, inclusive pela Rio de Flores Editora, e mais de 10 ebooks. Vou aonde
me levar a poesia.
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| Edição e Direção Geral Renato Galvão |
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Aqui é o Rocha Maia. Parabéns Ivete, adorei e li com grande prazer. Maravilhoso.
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