segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

 

Não basta ter coragem, tem de ter estômago, cuidado e se colocar à frente dos que gostam de ofender, magoar, até agredir. Como policial em meus anos de trabalho, vi e ouvi coisas de seres humanos, que jamais ousei ver ou ouvir. Crianças espancadas, abusadas fisicamente, por aqueles que deveriam lhes dar segurança, amor e cuidados. Mulheres que sofriam abusos físicos e psicológicos, vidas perdidas, ceifadas pela violência e uma vida de escravidão.

Nos anos sessenta, ainda menina, vi uma vizinha apanhar no meio da rua. O marido chegou, ela estava no quintal, debruçada no muro, falando com a vizinha do lado. A mulher sorria, não sei por que, a conversa de repente silenciou, foi quando vi o marido, puxou os cabelos da mulher com tanta violência que a mulher passou por cima do muro, caiu na calçada onde recebeu socos e chutes. Isso ficou gravado em minha memória.  Mudamos para outro bairro, depois de um ano ou menos, ouvi meu pai comentando que Fulano matou a mulher.

Ao me tornar policial, meu maior desejo era poder ajudar de alguma forma essas mulheres e as crianças maltratadas. Mas na rua a realidade é outra. Atendíamos ocorrências de brigas de casal, com o tempo percebi que o motivo maior para que essas mulheres fossem vitimizadas era a dependência financeira, de não ter aonde ir, sem família ou apoio emocional.

A grande maioria, quando chegávamos, estava com rosto inchado, olho roxo, até braço ou maxilar quebrado. O que podíamos fazer era algemar o agressor e apresentá-lo ao distrito. A vítima, se ela concordasse, seria levada ao pronto-socorro. Mas a grande maioria, quando nos aproximávamos do agressor, simplesmente falava:

— Não prendam meu marido, ele é quem sustenta a casa, sem ele não sei o que vou fazer. Tenho filhos, que precisam de um pai. Ficava furiosa com a situação, mas se não há queixa, não há crime, e a vida segue.

Invariavelmente, aqueles mesmos agressores e vítimas seriam figuras carimbadas em novos plantões. Quando envolviam crianças, querendo ou não prestar queixa, pelo menos eu levava o agressor, convocava outros policiais, que levariam a fera, que amansava assim que via a viatura chegar.

Fui xingada, chamada de machona, de mulher sem coração, de metida e muitos outros adjetivos que nem vale a pena mencionar. Não só pelos agressores, mas pelas vítimas que se atiravam em seus companheiros, para que nós não os agredíssemos ou machucássemos.

Sempre fui de falar, de tentar acalmar, mas por diversas vezes, queria me transformar no Hulk e detonar determinados elementos. Faço pesquisas, procuro informações, morrem mais mulheres e crianças em sua própria casa, assombradas pela violência doméstica, do que em outras formas de óbito.

Estamos no século XXI, vítimas, escravas sexuais, mulheres sem alfabetização, que desconhecem leis, que nunca tiveram, estudo ou trabalho. Mulheres que procriam como coelhos, mal alimentadas, sem lugar para estar ou viver. Atravessamos gerações, desde os primórdios da humanidade, onde a mulher sempre foi relegada a um segundo plano. Tanto na nobreza quanto na pobreza, esta última agravada pela ignorância cultural e monetária.

Somos as mães da terra, lavradoras, limpamos as latrinas, varremos as ruas, balconistas, diaristas, advogadas, médicas, cientistas. Mesmo assim, vez ou outra, somos manchetes sangrentas.

Mulheres que achamos lindas, ricas e poderosas, já apanharam de seus parceiros, já foram estupradas, seviciadas, roubadas em suas vidas, noticiadas como: fulana de tal, veio a público dizer que sofreu violência doméstica, essas são as que se mostram, após se cansar de anos de abuso, mesmo tendo dinheiro, advogados e apoio. Ainda passam anos sofrendo caladas, enquanto os abusadores desfrutam da vida de luxo. E as que não têm coragem, continuam acorrentadas ao inferno de existir.

Texto: Ivete Rosa de Souza
Ilustração: Jornal Rio de Flores

Edição e Direção Geral
Renato Galvão

 

 

 

 

 


Um comentário:

  1. Aqui é o Rocha Maia
    Magnífico relato, testemunho de vida profissional emocionante. Adoro !

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