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| Figura 1: Ilustração Jornal Rio de Flores |
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| Figura 2: Quadro ”as crianças têm seu mundo!” por Rocha Maia |
As crianças possuem um mundo próprio, repleto de sonhos e de imaginações. Infelizmente, nem todas elas podem ter a sorte de encontrar alguém que as estimule a persistir na caminhada de amadurecimento, vencendo aquelas frustrações fatais, por sentirem que muito pouco daquilo que elas infantilmente sonhavam, um dia, irá se transformar em realidade nas suas vidas.
Quantos de nós tivemos família saudável,
com pais e avós, tios e irmãos conselheiros certos, que nos deram alertas do
tipo, “estude muito..., para ser alguém na vida”! Recentemente, a moda de Instagram
com vídeos curtos, me permitiu assistir a um jovem que, em tom de blague ou de
lamento disfarçado, fazia uma espécie de mea-culpa em relação ao fato de ele
não ter seguido os conselhos da mãe, para estudar bastante e, no futuro, poder ser
médico, fazer tratamentos de medicina. Ele naturalmente fazia alusão a uma
espécie de frustração, por ter deixado de ouvir os conselhos de sua mãe! O
vídeo mostrava, ao fundo da cena, a pérgola de uma bela piscina, com águas
tratadas e luminosas. Ao final o rapaz
dizia: - Pois é mãe! Eu entendi a senhora falar “tratamento de piscina”!
Aquela mensagem mexeu comigo! Não
pelo conteúdo pseudo-humorístico, mas por um aspecto que me fez lembrar a
história real que quero contar.
Nem sempre é possível seguir exatamente
aquelas recomendações, importantes, que nos são dadas, em casa, na escola ou na
igreja. A vida não é uma simples viagem! Não é uma caminhada de lazer ou algo
que se possa fazer sem planejamento, nem tampouco basta seguir algum mapa, com
alternativas de rotas melhores, para alcançarmos objetivos pré-determinados, transformando
a caminhada para a melhor experiência de peregrinação. Entretanto, sabemos o
valor que têm bons conselhos, vindos de pessoas mais experientes, que nos possam
indicar às alternativas de maior sucesso. Naturalmente que não compensa arriscar
aventuras de percursos, especialmente aquelas sabidamente perigosas. Nesse
aspecto, tenho certeza, a força de vontade, o desejar, o querer alguma coisa, torna-se
uma espécie de poder! A resiliência na marcha da vida é fundamental, na
capacitação de atingirmos nossos propósitos! Há que se estar preparado para corrigir
os erros durante a caminhada. Se cair, levanta-te, sacode a poeira, e “dê a
volta por cima”, quantas vezes for necessário!
A história que quero contar é
antiga. Lembro bem daqueles momentos, na zona rural de Teresópolis! Como se fosse
hoje! O ano, 1970! Eu tinha 24 anos, mas aparentava ser bem mais velho. A barba
grande, à moda Fidel, envelhecia a fisionomia! Minha função na Granja era a de
gerente, um tipo de capataz. Filho do proprietário, eu tinha total autoridade
para administrar o empreendimento, uma pequena agroindústria no ramo da
avicultura, atividade que, já naqueles tempos, se modernizava em todo o Brasil.
Nossa granja era considerada um padrão avançado de manejo; mantínhamos um
quadro de funcionários de mais de vinte pessoas; com equipamentos modernos.
Qualidade total já era nossa meta. Recebíamos muitas visitas de alunos de
faculdades de veterinária e agronomia, levados pelos professores, para
conhecerem um projeto de excelência, no manejo moderno de planteis de aves e de
suínos.

Figura 3: Foto Rocha Maia – 1970 – Teresópolis RJ
A nossa principal unidade de produção era o abatedouro de pequenos animais; bem equipado, dentro dos melhores padrões e normas de fiscalização sanitária. Por conta disso, necessitávamos de um profissional veterinário, responsável pela vistoria e fiscalização da qualidade do processo de criação e abate.
Abrimos um vaga para veterinário; e
logo recebemos a visita de um jovem candidato ao emprego. Chamava-se Francisco R.
Neto, a quem, logo depois, na intimidade, já chamávamos pelo apelidado Chico
Chicão! Jovem, bonachão, sorriso fácil e muitas histórias para contar, ele era
uma figura humana simpática; assim, ele escondia bem seus dramas de vida! Não
se dizia perfeito, porém ocultava as próprias fraquezas com boa fé; e um pouco
de malandragem. Coisas que a vida lhe havia ensinado. Quem sabe para sobreviver?
Morava em Niterói, porém era
nascido no interior do Estado do Espírito Santo! Formado em Veterinária, nos
foi apresentado por um importante professor da faculdade, sendo apontado como profissional
brilhante. Pouco tempo depois, por competência, Chico Chicão, já era professor.
Foram longos anos de parceria de trabalho na granja; e ele criou laços de
amizade muito fortes comigo. Nos tornamos compadres, quando eu o convidei a ser
o padrinho da minha primeira filha. Não apenas por isso, mas, talvez também por
isso, nos tornamos mais próximos e amigos.
Em poucas palavras, resumindo, tínhamos
mútua admiração, e encontrávamos muitos pontos de interesse e afinidade de
valores humanos. Ele era um pouco mais velho do que eu, mas na aparência
tínhamos a mesma idade. Com o tempo passando rápido, fomos nos conhecendo
melhor. A convivência no trabalho foi a maneira que fiquei sabendo de aspectos
mais íntimos de sua vida pessoal.
Órfão de pai, desde bem pequeno,
infelizmente ele pouco pode colher das atenções maternais, posto ser sua mãe
portadora de doença psíquica e dependência química grave. Criado ao Deus dará, por
favor na casa de parentes, Chico Chicão nutria um grande sonho, desde
garotinho. Queria estudar para ser médico de crianças! Era uma coisa que ele
nunca soube explicar, como surgiu na sua cabeça aquele desejo! Como conseguiu
realizar o “sonho”? Estudando sempre em escolas públicas, havia terminado o
segundo grau aos trancos e barrancos! Sabia que teria de tentar uma forma
heroica de superação, para passar no vestibular de medicina. Onde? Menino pobre
e sem perspectivas de herança, vivia de biscates e pequenos serviços, para
comerciantes da sua cidade natal. Não sobrava “grana” para pagar o cursinho
pré-vestibular, muito caro naquela época. Contudo, ele queria tentar fazer a
prova. Querer é poder!
A faculdade de medicina, que ele
queria cursar, ficava distante. Ouviu falar que havia a Federal, no Rio de
Janeiro, porém, como chegar lá? Ele estava decidido a buscar a estrada;
literalmente foi o que fez! Pediu emprestado uma velha mala, com poucas roupas
e com a pequena economia que havia juntado, procurou a mais importante estrada
de rodagem que passava bem perto da sua cidade. Resolveu arriscar! Com o gesto
universal de pedir carona à beira de uma estrada, apontou o polegar para a
direção que queria ir. Todo caminhão que passava, Chico Chicão balançava a mão.
Foram muitas horas pedindo boleia aos motoristas, até que um mais velho parou,
pensando ser aquele rapaz um candidato a “chapa”, auxiliar de carga.
Na cara-de-pau, rapidamente, antes
que a oportunidade da carona lhe fosse negada, subiu na cabine do abrutalhado caminhão
FNM. Nem falou muita coisa! Horas depois, já viajando, ele percebeu que o
destino do veículo era a cidade de Niterói, onde, quase pulando do caminhão em
movimento, acabou sua aventura. O motorista ainda gritou algumas coisas, talvez
como um conselho ou advertência para segurança, mas Chico Chicão nem ouviu
direito. No primeiro momento que a velocidade foi reduzida, ele abriu a porta,
rapidamente, e saltou para um mundo desconhecido e arriscado. Finalmente,
ganhou as ruas e foi se abrigar numa marquise, abraçado à surrada mala.
Sua primeira noite em Niterói foi ali
mesmo, no chão frio e duro, pertinho do porto das barcas. Distante, do outro
lado da Baía de Guanabara, o rapaz olhava ao anoitecer o Rio de Janeiro,
brilhando suas luzes. Elas refletiam em seu olhar a esperança de realizar
aquele sonho de menino!
Daquele dia em diante, até quando
eu o conheci na Granja, passaram-se talvez oito anos. Se havia uma faceta muito
positiva na personalidade do Chico Chicão, reconheço, era sua capacidade de
comunicação e de fazer amizades. Graças a ela, o jovem foi conseguindo vencer
as dificuldades e, embora não tenha passado no vestibular para medicina humana,
conseguiu entrar para Veterinária; só Deus sabe como! Foi aluno brilhante; e
professor admirado e benquisto. Nunca renunciou ao seu sonho de vida!
Alguns anos após ter trabalhado
para o empreendimento avícola, em Teresópolis, os caminhos de nossas vidas
tomaram rumos diferentes. Mesmo distantes, mantivemos contato constante, com mensagens
que davam conta das novidades. Uma dessas novidades era quase inacreditável:
Chico Chicão, um convicto solteirão, mulherengo, havia se casado e já era
papai. Mas a melhor de todas as novidades! Ele havia conseguido entrar para uma
faculdade de medicina humana, de excelente qualidade e já era um Doutor, com
especialização em Pediatria. Foram muitos anos de aguerridas batalhas, para
completar tão sonhado vaticínio.
Uma pergunta eu fiz a ele, para
matar a minha curiosidade: - “por que Pediatria?”
Sua resposta foi de cristalina
obviedade! Para diagnosticar problemas de saúde dos animais, os veterinários
devem desenvolver capacidade sensorial diferenciada, porque os bichos não sabem
falar a linguagem dos humanos. Igualmente, essa mesma dificuldade existe na
comunicação entre o pediatra e a criança, quando da formulação de uma
competente anamnésia. Outra característica semelhante é que as crianças, muitas
vezes, dependem da presença dos responsáveis, para falar sobre o problema
ocorrido com o paciente. Da mesma forma, os bichos dependem de seus cuidadores,
para facilitar ao veterinário a compreensão de algum fenômeno que possa ter gerado
determinada situação de risco à saúde do animal.
Devoto de Nossa Senhora Aparecida,
Chico Chicão era a representação perfeita da fé católica aplicada a um ser
comum e humilde. Sem jamais pretender ser um hipócrita de santidade, ele foi
simplesmente humano! Por isso, também, foi um grande médico!
Final da história: Chico Chicão, já
falecido, deixou o legado do bom exemplo de vida e força de vontade na
conquista de ideais! Querer é Poder!
Quadro e Foto (Figura 2 e 3: Rocha Maia
Ilustração (Figura 1): Jornal Rio de Flores
Luiz Roberto da Rocha Maia. Nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e Brasília e, atualmente, em
Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta anos de atividade cultural. Membro de diversas entidades
culturais, no Brasil e em Portugal, é Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro
da Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de Letras e Artes ALEART,
Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e
Bulgária. Recebeu mais de setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas.
Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil e no exterior; bem como nos acervos
do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP; MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do
Museu Internacional de Arte Naïf de Vicq, na França.
Seus quadros estão presentes também em pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por
arte naïf no Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal.
Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo recebido o prêmio aquisição 2006, em
Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora –
2010; o livro “O Diário de Lili Beth”, pela editora Videu – 2021; e colaborou com a Coluna Arte Animal, da
revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos versando sobre a presença de animais como
tema nas belas artes.
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| Edição e Direção Geral Renato Galvão |



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