Zé
Tamanduá! Era assim chamado porque fedia a tamanduá, visto que pouco tomava
banho. Era carvoeiro. Se vai se sujar no dia seguinte, pra que tomar banho? –
argumentava, perguntando. Aos domingos, sim, tomava banho no açude – com sabão
de coco e bucha - e vestia sua domingueira, pois o domingo é dia reservado para
os prazeres da vida: se embriagar, tomar caldo de cana com pão doce, ouvir as
histórias de caçadas de seu Emetério, dançar no cabaré (sozinho, do lado de
fora) ao som da sanfona de Escramelino,
alimentar a esperança de que alguma puta lhe fizesse um favorzinho (o que nunca
acontecia), jantar caldo de mocotó, dormir no oitão da igreja sem ser
incomodado, pois dormia ali, com autorização do padre - sabia a polícia.
Quando
foi preso, porque levantou a saia de uma quenga, achou-se punido, não pela
descompostura que o delegado lhe passou, mas porque a caftina lhe proibiu de
frequentar o cabaré e ainda ameaçou mandar dar-lhe uma surra. Achou até
confortável, a cadeia, pois era o único preso naquele dia e dormiu em um
colchão, coisa que ele jamais tivera. Além do mais, se tivesse chovido não
teria se molhado, como aconteceu no domingo anterior.
-
Seu Teotônio, aquele pade qui veio aqui nas missão, é pade de verdade -
perguntou, curioso.
-
É padre sim, Zé.
-
Igualzinho ao Pade Pedro?
-
Sim, Zé...ele é espanhol.
-E
por que ele não aprendeu a falar?
Certo
dia, Zé Tamanduá tocava seu jumento, carregado de carvão, em direção à vila,
quando, de repente, o animal empacou. Mesmo a toque de chicote, fogo no rabo, rabo
torcido, o animal não se movia. Meteu-lhe os dedos no focinho – ponto
vulnerável do animal – e puxou. O jumento deu três passos à frente. Zé
comemorou:
-Você
vem, que você não é mais ignorante do que eu!
Vivia
assim. Na miséria para uns, na simplicidade para outros, no desprezo para
muitos, na solidão para todos, mas sempre com seu sorriso contido, rindo para
dentro, como se sua própria alma lhe pedisse sorrisos.
Morava
na Serrinha, cultivando milho, feijão, mandioca, quando São Pedro permitia.
Fazendo carvão, quando a seca esturricava a caatinga e ficava fácil
queimá-la. Na vila, já tinha sido tudo:
varredor de rua, botador de água, servente de pedreiro, limpador de fossa,
matador de bode, vigia. Só nunca aceitou lavar prato e varrer casa – serviços de
mulher. Certa vez, meteu o dedo na garganta e vomitou, no meio da sala, o
almoço que lhe tinham oferecido, quando exigiram que, em pagamento, ele lavasse
os pratos da pensão.
Houve
um ano dos bons. São Pedro abriu as torneiras do céu e o sertão explodiu num
turbilhão de vida. (Você já viu o Sertão, na época das chuvas? Passe lá, pra
você ver!)
No
roçado de Zé Tamanduá tinha milho pendoando, feijão florando e imbuzeiro em
pencas de imbu inchado. Zé, trabalhando, de aluguel, no roçado vizinho enquanto
a colheita não vinha. Quando voltou à tardinha, lá estava o gado de seu
Teotônio pastando no seu roçado. Por pouco não ficou sem sua sonhada safra. Ao
reclamar, ouviu do dono do gado: “suas cercas é que não prestam... reforce os
mourões”. Foi ao Delegado, na vila e
registrou uma queixa. O escrivão da delegacia debochou: “as coisas por aqui
estão mudando... até Zé Tamanduá quer proteção da polícia... era só o que
faltava... logo contra seu Teotônio...” Dias depois, o gado de seu Teotônio
comeu o restante do seu roçado. Com uma lazarina carregada com chumbo fino,
daqueles próprios para matar ribaçã, salpicou o pescoço e furou um olho de uma
vaca malhada. As outras, espantou aos gritos. Nada adiantou: nem milho, nem
feijão, nem mandioca. Perdeu a safra e o
sossego. Além do mais, teria que pagar a vaca de seu Teotônio. Como pagar, se
não dá pra fazer carvão de lenha verde... se dinheiro de carvão não dá pra
pagar vaca.
No
dia seguinte, recebeu a intimação. Deveria comparecer à delegacia para se
explicar. Pelo mesmo oficial de justiça, que trouxe a intimação, mandou dizer
ao Delegado que não tinha nada a explicar. O oficial de justiça ainda
argumentou que aquela atitude era um desrespeito à autoridade; que o delegado
poderia mandar prendê-lo. “Diga a seu Delegado que a distância daqui na
delegacia é a mesma da delegacia pra cá” – respondeu injuriado.
Resistiu
às investidas do reles destacamento de polícia do lugar. E outros que lá
chegaram, em diligente reforço, todos foram dizimados. Primeiro, matou um Cabo;
em seguida, um Sargento; na terceira, um Coronel; na quarta, com um só tiro, um
bando de General. Delegado, nem falar, morreu sujando as botas. Só não matou os
soldados, porque nem para morrer, estas pestes valem mais que meia bala perdida
– disse limpando o cano do mosquetão quase em brasa.
Correu
mundo defendendo quem precisava de bala pra se fazer respeitado.
Inspirou-se
em Jenipapo, conspirou em Juazeiro, defendeu Pau de Colher. Foi capanga de
Silvino, coiteiro de Virgulino. Trocou tiro com milico no dia Nove de Julho.
Acompanhou a Coluna, resistiu em Trinta e Sete. Lutou pela Intentona, foi preso
do Estado Novo. Aliou-se a Julião e combateu com Lamarca.
Novamente,
foi morar na Serrinha. Era mais temido do que respeitado. Tinha um uniforme
verde, um branco e um azul - cada um com dois galões - que vestia em festas
cívicas. Para a feira, aos sábados, tinha terno branco de linho e chapéu
Panamá. Escondidos na caatinga, tinha uma metralhadora INA, um baú de balas,
outro de granadas, botas, cantil, sabre, capacete, mochila e uniforme de
campanha - diziam, sem que ele desmentisse ou confirmasse.
Certo
dia, o Cabo Zé foi alertado de que somente aos integrantes das Forças Armadas
era reservado o direito de uso de fardas e títulos próprios dos seus escalões.
Os inquisidores da Revolução não tardariam a aparecer e ele teria que explicar,
em um IPM, o seu arsenal militar e o seu passado de lutas. Ou ele achava que
não tinha inimigos ocultos, que poderiam denunciá-lo?
-
Quero saber qual o corno, filho-da-puta ou viado que virá no meu terreiro pra
saber como e por que, confirmar se é legal, o título que eu ostento de honrado
Cabo Zé. Não daria explicação, mesmo que eu soubesse o motivo e quando foi esta
tal revolução. Me recuso a respeitar usurpador de poder.
E
sumiu, o Cabo Zé.
Soube-se
dele depois - muito tempo decorrido - no outro lado do Atlântico. Fez fileira
na FRELIMO, lutou pelo Timor Leste, entrincheirou-se em defesa do MPLA, fez
pose de homem bravo na Revolução dos Cravos. Só não foi nas Grandes Guerras, porque
nunca na vida aprendeu a lutar por esses povos que não sabiam falar.
Perderam-no, os que perderam aquelas guerras de lá.
Não
voltou mais à Serrinha. Seu paradeiro, imaginem, quanta conversa gerou! Quanto
mote de cordel sua história compôs!
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| Edição e Direção Geral Renato Galvão |


Mais uma genial! Como sou seu fã, fico pensando, como vou elogiar? Vão pensar que sou puxa-saco! Bolas..., que pensem! Você é genial mesmo! Maravilhoso texto de Francisco Siqueira, o Nego d'Água!
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