domingo, 8 de outubro de 2023


Zé Tamanduá! Era assim chamado porque fedia a tamanduá, visto que pouco tomava banho. Era carvoeiro. Se vai se sujar no dia seguinte, pra que tomar banho? – argumentava, perguntando. Aos domingos, sim, tomava banho no açude – com sabão de coco e bucha - e vestia sua domingueira, pois o domingo é dia reservado para os prazeres da vida: se embriagar, tomar caldo de cana com pão doce, ouvir as histórias de caçadas de seu Emetério, dançar no cabaré (sozinho, do lado de fora) ao som da sanfona de  Escramelino, alimentar a esperança de que alguma puta lhe fizesse um favorzinho (o que nunca acontecia), jantar caldo de mocotó, dormir no oitão da igreja sem ser incomodado, pois dormia ali, com autorização do padre - sabia a polícia.

Quando foi preso, porque levantou a saia de uma quenga, achou-se punido, não pela descompostura que o delegado lhe passou, mas porque a caftina lhe proibiu de frequentar o cabaré e ainda ameaçou mandar dar-lhe uma surra. Achou até confortável, a cadeia, pois era o único preso naquele dia e dormiu em um colchão, coisa que ele jamais tivera. Além do mais, se tivesse chovido não teria se molhado, como aconteceu no domingo anterior.

- Seu Teotônio, aquele pade qui veio aqui nas missão, é pade de verdade - perguntou, curioso.

- É padre sim, Zé.

- Igualzinho ao Pade Pedro?

- Sim, Zé...ele é espanhol.

-E por que ele não aprendeu a falar?

Certo dia, Zé Tamanduá tocava seu jumento, carregado de carvão, em direção à vila, quando, de repente, o animal empacou. Mesmo a toque de chicote, fogo no rabo, rabo torcido, o animal não se movia. Meteu-lhe os dedos no focinho – ponto vulnerável do animal – e puxou. O jumento deu três passos à frente. Zé comemorou:

-Você vem, que você não é mais ignorante do que eu!

Vivia assim. Na miséria para uns, na simplicidade para outros, no desprezo para muitos, na solidão para todos, mas sempre com seu sorriso contido, rindo para dentro, como se sua própria alma lhe pedisse sorrisos.

Morava na Serrinha, cultivando milho, feijão, mandioca, quando São Pedro permitia. Fazendo carvão, quando a seca esturricava a caatinga e ficava fácil queimá-la.  Na vila, já tinha sido tudo: varredor de rua, botador de água, servente de pedreiro, limpador de fossa, matador de bode, vigia. Só nunca aceitou lavar prato e varrer casa – serviços de mulher. Certa vez, meteu o dedo na garganta e vomitou, no meio da sala, o almoço que lhe tinham oferecido, quando exigiram que, em pagamento, ele lavasse os pratos da pensão.

Houve um ano dos bons. São Pedro abriu as torneiras do céu e o sertão explodiu num turbilhão de vida. (Você já viu o Sertão, na época das chuvas? Passe lá, pra você ver!)

No roçado de Zé Tamanduá tinha milho pendoando, feijão florando e imbuzeiro em pencas de imbu inchado. Zé, trabalhando, de aluguel, no roçado vizinho enquanto a colheita não vinha. Quando voltou à tardinha, lá estava o gado de seu Teotônio pastando no seu roçado. Por pouco não ficou sem sua sonhada safra. Ao reclamar, ouviu do dono do gado: “suas cercas é que não prestam... reforce os mourões”.  Foi ao Delegado, na vila e registrou uma queixa. O escrivão da delegacia debochou: “as coisas por aqui estão mudando... até Zé Tamanduá quer proteção da polícia... era só o que faltava... logo contra seu Teotônio...” Dias depois, o gado de seu Teotônio comeu o restante do seu roçado. Com uma lazarina carregada com chumbo fino, daqueles próprios para matar ribaçã, salpicou o pescoço e furou um olho de uma vaca malhada. As outras, espantou aos gritos. Nada adiantou: nem milho, nem feijão, nem mandioca.  Perdeu a safra e o sossego. Além do mais, teria que pagar a vaca de seu Teotônio. Como pagar, se não dá pra fazer carvão de lenha verde... se dinheiro de carvão não dá pra pagar vaca.

No dia seguinte, recebeu a intimação. Deveria comparecer à delegacia para se explicar. Pelo mesmo oficial de justiça, que trouxe a intimação, mandou dizer ao Delegado que não tinha nada a explicar. O oficial de justiça ainda argumentou que aquela atitude era um desrespeito à autoridade; que o delegado poderia mandar prendê-lo. “Diga a seu Delegado que a distância daqui na delegacia é a mesma da delegacia pra cá” – respondeu injuriado.

Resistiu às investidas do reles destacamento de polícia do lugar. E outros que lá chegaram, em diligente reforço, todos foram dizimados. Primeiro, matou um Cabo; em seguida, um Sargento; na terceira, um Coronel; na quarta, com um só tiro, um bando de General. Delegado, nem falar, morreu sujando as botas. Só não matou os soldados, porque nem para morrer, estas pestes valem mais que meia bala perdida – disse limpando o cano do mosquetão quase em brasa.

Correu mundo defendendo quem precisava de bala pra se fazer respeitado.

Inspirou-se em Jenipapo, conspirou em Juazeiro, defendeu Pau de Colher. Foi capanga de Silvino, coiteiro de Virgulino. Trocou tiro com milico no dia Nove de Julho. Acompanhou a Coluna, resistiu em Trinta e Sete. Lutou pela Intentona, foi preso do Estado Novo. Aliou-se a Julião e combateu com Lamarca.

Novamente, foi morar na Serrinha. Era mais temido do que respeitado. Tinha um uniforme verde, um branco e um azul - cada um com dois galões - que vestia em festas cívicas. Para a feira, aos sábados, tinha terno branco de linho e chapéu Panamá. Escondidos na caatinga, tinha uma metralhadora INA, um baú de balas, outro de granadas, botas, cantil, sabre, capacete, mochila e uniforme de campanha - diziam, sem que ele desmentisse ou confirmasse.

Certo dia, o Cabo Zé foi alertado de que somente aos integrantes das Forças Armadas era reservado o direito de uso de fardas e títulos próprios dos seus escalões. Os inquisidores da Revolução não tardariam a aparecer e ele teria que explicar, em um IPM, o seu arsenal militar e o seu passado de lutas. Ou ele achava que não tinha inimigos ocultos, que poderiam denunciá-lo?

- Quero saber qual o corno, filho-da-puta ou viado que virá no meu terreiro pra saber como e por que, confirmar se é legal, o título que eu ostento de honrado Cabo Zé. Não daria explicação, mesmo que eu soubesse o motivo e quando foi esta tal revolução. Me recuso a respeitar usurpador de poder.

E sumiu, o Cabo Zé.

Soube-se dele depois - muito tempo decorrido - no outro lado do Atlântico. Fez fileira na FRELIMO, lutou pelo Timor Leste, entrincheirou-se em defesa do MPLA, fez pose de homem bravo na Revolução dos Cravos. Só não foi nas Grandes Guerras, porque nunca na vida aprendeu a lutar por esses povos que não sabiam falar. Perderam-no, os que perderam aquelas guerras de lá.

Não voltou mais à Serrinha. Seu paradeiro, imaginem, quanta conversa gerou! Quanto mote de cordel sua história compôs!

Texto: Francisco Siqueira
Ilustração: Jornal Rio de Flores

Edição e Direção Geral
Renato Galvão


Um comentário:

  1. Mais uma genial! Como sou seu fã, fico pensando, como vou elogiar? Vão pensar que sou puxa-saco! Bolas..., que pensem! Você é genial mesmo! Maravilhoso texto de Francisco Siqueira, o Nego d'Água!

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