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| Figura 01: Ilustração Jornal Rio de Flores - Tela Rocha Maia |
Não vou negar! Pouco sei de
culinária; minha especialidade é a “gororoba”! Entretanto, sou apaixonado pelo
tempero da comida portuguesa; talvez por força da genética. Entretanto, posso
afirmar, engana-se redondamente quem pensa que as delícias lusitanas são,
somente, aquelas preparadas com bacalhau, regadas ao bom vinho português. Tem
muito mais que isto! As sobremesas são igualmente fantásticas! Já provaste doces
conventuais? Depois eu explico a razão desse nome, que remete aos conventos de
freiras! São doces de ovos maravilhosos! Porém, mais deliciosos do que aqueles
feitos por minha avó, eu “du-vi-de-o-dó”! Refiro-me, especialmente, aos
papos-de-anjo!

Figura 02: Quadro: “Feliz Aniversário!” por Rocha Maia 2005
Nos meus aniversários, era o presente que eu gostava de ganhar! Uma porção generosa de papos-de-anjo, graúdos, amarelinhos, molhadinhos na calda, com sabor suave de tangerina, bem estufadinhos, deitados numa compoteira de vidro! Mas, tem um segredinho! Como evitar aquela murrinha dos ovos? Como tirar o odor desagradável, que, muitas vezes, afasta algumas pessoas das guloseimas? Meu avô, jocosamente, definia como sendo, aquele cheiro, “da bunda da galinha”! Aquilo obrigava vovó, em resposta, a perguntar ao velho: - “Ora pois, Mingote, diga lá, quando andaste a meter o nariz nos fundos das galinhas?”.
Não adianta pedir! Não posso
revelar o segredo agora! Trata-se de assunto que faz parte do projeto de um
outro livro! Qualquer dia, irei lançar! Serão pulicadas todas as
selecionadíssimas Receitas da Dona Olga! O que eu quero comentar, por agora, é
outro segredo da vovó, não apenas nas suas receitas, mas também de tantas
outras coisas boas que ela conquistou na vida.
Sabe o que é? Vovó escrevia muito
bem, porque lia muito! Naquela época, a mídia era mais do que tradicional; não renunciava
ao papel de bem informar ao público. O quê? Você quer saber se os veículos eram
isentos de tendenciosidade política? Eu digo que não! Isso, porém, não impedia
Dona Olga de ter e de apresentar as opiniões próprias, de forma convicta, com
argumentos bem justificados, no estilo daqueles editoriais, publicados pela
grande imprensa! A verdade é que, naquele tempo, a imprensa era menos
manipuladora; se alguém podia perceber a influência do poder econômico na mídia,
certamente notava que as coisas aconteciam dentro de limites éticos aceitáveis.
Jornalista era jornalista; fofoqueiro era fofoqueiro; colunista social era
bajulador mesmo!
Então é isso, vovó lia muito, e,
também, escrevia corretamente, redigia com maestria! Na poesia, ela gosta era
da declamação. Como dominava essa arte do idioma, vovó debatia muito bem, em
alto e bom som, qualquer assunto cotidiano. Creio que ela havia adotado o
estilo retórico de Carlos de Lacerda, de quem era fã. Estudou na escola
pública, dentro do padrão do velho e bom Colégio Pedro II, e formou-se
Professora pelo Instituto de Educação do Rio de Janeiro. Com grande gosto, ela escrevia sobre tudo
aquilo o que desejasse perpetuar, digamos assim, como sua opinião “pública”, em
família ou feira-livre! Na época, não
era tão fácil escrever e publicar textos. Não existia essa parafernália
tecnológica atual, que nos permite ter, em casa, uma central de redação, com
corretor ortográfico, tradutor, pesquisa de informações que desejarmos
multiplicar, mediante consulta direta, via Internet, no melhor estilo da
navegação por hipertextos e hiperlinks. No máximo, o que ela poderia ter era uma
máquina Remington portátil; mas nem isso ela usava. Abdicou da mecanografia!
Sim! Isso mesmo, nem máquina para datilografia!
Abro aqui pequeno parêntese, para comentar
sobre o vocábulo “publicação”! Essa palavrinha anda bastante desgastada,
por vícios no seu mal-uso. Vou ficar nos limites, entre significados, do “ato
ou efeito de publicar” e o de “tornar público um fato”!
Vovó tinha uma caligrafia perfeita
e a usava com sabedoria. Eu me lembro dela compilando, vários exemplares do próprio
livro de receitas, na forma manuscrita. Assim procedia, simplesmente, pelo
prazer de presentear pessoas queridas. Haja paciência! Escrevia; melhor
dizendo, desenhava daquela forma! Assim ela fazia a publicação de suas
receitas. O que ela queria? Coisa simples! Valendo-se do suporte chamado
“caderno”, com páginas a serem manuscritas, “ca-li-gra-fa-das”, ela fazia com
que as informações das suas receitas culinárias, liberadas aos poucos, alcançassem
mais pessoas, até mesmo fora da esfera das amizades pessoais, quase no estilo “papo
de comadres”, à moda antiga!
Entretanto, Dona Olga não se
dedicava apenas a escrever receitas culinárias. Lia muito, como lhes falei! Para a sua época, ela era uma mulher bastante
politizada. Parecia o paradoxo lançado na propaganda Tostines! Lembra? Não sei
se vovó escrevia bem por que sempre lia muito; ou se lia muito, por que sempre
escrevia bem? Não sei dizer a razão! Estava constantemente bem-informada! Talvez,
por ter o hábito da leitura, ela escrevia com grande correção ortográfica, além
de bastante conteúdo, inclusive nos casos de informações de interesse mais
geral. Escrever cartas e enviar pelos correios, por exemplo, era um típico
hábito de comunicação da sua época; que remonta eras muito antigas das
civilizações. No ocidente, sabemos que a mecanografia superou a arte de
manuscrever; no Japão, contudo, ainda persistem ensinamentos da arte de desenhar
ideogramas, manualmente, conhecida como “Shodō”!
Vovó sempre enviava pequenas
mensagens, por meio dos chamados “bilhetes”, uma influência do ex-presidente
Jânio Quadros, acompanhando presentes ou saudando pessoas por datas festivas.
Mesmo com o advento do telefone, ela fazia questão de enviar um cartão social
comemorativo. Revendo papeladas antigas e fotografias amareladas, encontrei
alguns daqueles mimos sociais que Dona Olga escrevia. São mensagens de cunho
privado, com grande valor sentimental particular. Não divulgarei em respeito à
intimidade dos amigos.
No caso das receitas, não terei
problemas de as revelar. Certamente irei publicá-las. Aguardem!
Por ter convivido bastante tempo
com Dona Olga, cheguei a ter o apelido de “criado-com-vó”! Assim, pude observar
bem seu método de escrever. Não penso que seja o melhor e mais completo exemplo,
aplicado à redação literária; porém, é excelente no aspecto da libertação, no processo
de comunicação coloquial, coisa que eu adoto para meus artigos. Tento seguir as
recomendações contidas nas máximas daquela velha mestra, que um dia profetizou:
- “Comunique-se sempre, meu neto! Sempre que possível, escreva suas ideias,
mesmo que elas sejam discutíveis ou passíveis de revisão; contudo, ao fazê-lo, “rosne”
convicto!”
Como assim? “Rosnar”, até “boçalidades”?
“Exatamente!”, era o que ela respondia: - “Sim, isso mesmo, seja convicto em
dizer o que pensa, até mesmo “besteiras”; porém, diga com muita convicção! Tenha
grande crença naquilo que vai pregar! Opiniões firmes, escudadas nas suas
razões de fé íntima, tornam-se verdades inabaláveis; ao menos irão prevalecer
até que surjam argumentos contrários fortes, diferentes, contudo, mais
convincentes. Então, quando isso acontecer, recicle e reformule seus
pensamentos. Errar é humano; persistir no erro é burrice!”
Assim, aprendi que a leitura deve
ser constante, se possível, de bons textos! Leia alguns clássicos da literatura
brasileira. Não se preocupe em ler, somente, visando fazer demonstração de
sabedoria livresca! Nada disso! Seja humilde, ao demostrar o que leu dos
grandes escritores e pensadores. Leia também textos de autores sérios, menos
divulgados, pouco “badalados”, mas que podem melhorar a sua compreensão e
ajudar no seu desenvolvimento intelectual.
“Cuidado com os modismos
intelectuais!”, alertava ela! Como exemplo, temos o aparecimento da literatura
de autoajuda, verdadeira febre de consumo de ideias estrambólicas. Algumas
publicações visavam, puramente, o aumento da venda de livros, destinados a “energizar”
mentes, de maneira positiva, mediante, macetes, dicas e mudanças de
comportamento, cientificamente pouco comprovadas, mas ofertadas pelo marketing
dos falsos milagres.
Foi assim que pude ver como minha
avó era uma sábia mulher; já naqueles tempos, recomendando cautela na seleção
do que adotar para leitura. Os livros que ela possuía, todos, eram
cuidadosamente grifados a lápis, para facilitar a busca posterior de significados,
bem como pesquisas de trechos que haviam causado maior interesse, que
necessitavam de melhor reflexão.
Lembro quando ela comentava, numa
analogia simplória, que as palavras escritas são como bailarinos, se
apresentando no palco do teatro. Quando todos os dançarinos se harmonizam,
entram no ritmo e no tempo da música, mesmo que alguma sapatilha desamarre ou
um laço de cabelo caia ao chão, o show será garantido. A assistência saberá
perdoar!

Figura 03: Quadro “Uma apresentação no teatro!” por Rocha Maia
Entretanto, basta um par de dançarinos ficar inseguro, escorregar, tropeçar e cair ao chão, bem no meio da apresentação, ou ficar desgarrado dos demais, a plateia inteira acabará por manifestar de alguma forma a insatisfação. Serão ouvidas interjeições, enchendo o ar, com aqueles sons característicos do desagrado do público! Arrrreê! Ah! Oh! Ai! Uauu! Eita! Vixe! Eia! Uhu!... Quiçá, algumas vaias sejam oferecidas!
Outra característica que ela
recomendava: - “Só escreva sobre assuntos que domine bem! Não se atreva a ir
além das sandálias! Conhece essa expressão? – Remendão, atenha-se às sandálias?”
(Há controvérsias sobre essa frase, porém o sentido é sempre o mesmo, isto é,
não vá além da sua competência para criticar alguma coisa.)
Com a experiência de alguém que
falava inglês, sueco e alemão, além do português, ela sabia perfeitamente a
importância de uma correta redação, capaz de sustentar a atenção do leitor, num
ritmo confortável, para a interpretação do texto. Assim, vovó sempre fazia uma
primeira anotação dos textos; era um rascunho, feito na forma como as ideias
vinham chegando. Logo depois, lendo em voz alta, ela percebia os gargalos de
pontuações imperfeitas, equívocos de ortografia e as desagradáveis “cascas de
banana”, aquelas pegadinhas terríveis, muito comuns no nosso idioma português.
No caso, uma nova etapa de redação era executada, para localizar e corrigir os
“acidentes” e as garatujas.
Recomendava assim: - “Sempre que
possível, deixe o texto em “banho maria”, para, logo a seguir, levá-lo a “fermentar”,
no fundo de uma gaveta escondida!”
Vovó cuidava, nesse meio tempo, de
aprimorar novas abordagens ao tema tratado. Gostava de sonhar suas histórias. Eram
ideias que surgiam durante o sono. Vovó dizia, no seu estilo doméstico, que “era
para o texto crescer, fermentar e ganhar sabor!” Justificava ser o tempo
suficiente ao aperfeiçoamento dos parágrafos, usando três critérios: 1-
redundâncias devem ser apagadas; 2- palavras complicadas devem ser
substituídas; 3- as frases muito longas podem ser simplificadas e as muito
curtas alongadas.
Como uma competente mestra nas
artes culinárias, vovó dizia: - “Se a receita desandar e solar, jogue fora!
Assim também é com textos redigidos, se “desandarem”, comece tudo novamente. As
ideias, para serem bem escritas, são como massa de bolo; se não crescer de
forma correta é porque “solou”, joga fora!”. Assim era a minha velhinha, vovó
Olga! Sempre atenta a detalhes, visando aos melhores resultados, em tudo!
Luiz Roberto da Rocha Maia nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e Brasília e, atualmente, em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta anos de atividade cultural. Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas. Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP; MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal. Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro “O Diário de Lili Beth”, pela editora Videu – 2021; e colaborou com a Coluna Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes.
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| Edição e Direção Geral Renato Galvão |


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