segunda-feira, 2 de outubro de 2023

 

Figura 1 - Ilustração Rio de Flores - Tela Rocha Maia

Quando vejo pequenos prodígios infantis, nos vídeos da Internet, apresentando talentos musicais, na frente de plateias repletas de experts ou, algumas vezes, em logradouros públicos, parecendo experientes profissionais, fico admirado! Com que facilidade e domínio, aquelas criaturinhas desempenham suas performances. Parecem mini gênios! Fazem acontecer verdadeiros shows, têm a naturalidade própria de “calejados” artistas.

Sinto-me orgulhoso de ter nascido na espécie homo sapiens sapiens! Fico muito feliz de ver que, entre os ditos “humanos”, há aqueles que, ainda novinhos, superam os limites dos padrões da normalidade. Excedem níveis medianos de inteligência. Basta observar a maneira incomum como se apresentam. Com tão pouca idade, cantam, dançam, desenham, pintam, tocam instrumentos musicais, com grande intimidade. Impressionam, igualmente, alguns pequeninos atletas, excelentes na capacidade física apresentada; praticam ginástica com tamanha facilidade que poderiam participar de olimpíadas.

Tornam-se afamados, igualmente, os jovens que, acima da média da sua faixa etária, já dominam idiomas complexos, ou revelam extraordinários conhecimentos na matemática e outras áreas das ciências. Há inclusive uma pedagogia apropriada, para esses prodígios serem atendidos, com processos educacionais especializados e competentes. Esses casos são conhecidos e estudados, por serem característicos de crianças com inteligência acima da média. São considerados e observados pelo conceito de superdotados.

Não pretendo entrar nessa conceituação dos superdotados, porque, além de ser polêmica, está muito acima da minha capacidade e conhecimento. O que eu quero abordar é a questão cultural da nossa sociedade, em relação à maneira como pouco valorizamos, entre nós, algum tipo de talento superior juvenil que, na falta de uma melhor definição, vou denominar como “visão-de-negócios” ou, se preferirem, capacidade de gerar riquezas e ganhar dinheiro, com grande produtividade, ainda na adolescência.

Ficarei na simplória pergunta: por que não buscamos, logo cedo, entre nossos jovens, os mais talentosos para a criação de negócios? Negócios simples, que eles sejam capazes de empreender, com sucesso, tanto nas atividades comerciais como também de produção, desde pequeninos. Poucos, por exemplo, recebem noções básicas de economia doméstica!

Não pretendo levantar a discussão no sentido do trabalho infantil. Não é isso! Enveredar por esse rumo, leva o assunto para o campo da exploração da criança, como simples mão-de-obra. Também não quero fazer abordagem sociológica do trabalho injusto da criança, coisa que nada tem com o desenvolvimento de talento nato e inteligência privilegiada. Destaco apenas essa questão, no mesmo patamar, como são colocados jovens talentos, nas artes, nas ciências e demais áreas dos esportes, hoje tão demandadas pelas próprias políticas de valorização da capacidade intelectual e física das crianças. 

Por que nos preocupamos tanto, querendo oferecer boas oportunidades de experiências diversas aos nossos filhos? Por que estimulamos nossas crianças a experimentar momentos variados, nos estudos e práticas de conhecimentos, principalmente nas artes e nos esportes? Oferecemos, quando possível, cursos de idiomas, robótica ou informática! Seria apenas para despertar talentos ou denotar capacidades, físicas e intelectuais, acima da média humana? Não creio que seja somente por isso!

Fico deveras impressionado, por exemplo, com a profusão de escolinhas de futebol, academias de dança e cursinhos de idiomas, com especialização para público “kids”, espalhadas pelos bairros! Fico boquiaberto, também, com o poder do marketing digital, destinado à divulgação, por oportunistas, dos chamados influenciadores digitais; inundam as mídias sociais, infelizmente, dando ênfase para a maior diversidade de falsos talentos, besteirol infanto-juvenil, como jamais o mundo conheceu.

Fui durante alguns anos instrutor do SEBRAE, em Brasília. Colaborei muito, ministrando cursos destinados ao treinamento de microempreendedores e novos gestores de pequenas empresas. Posso afirmar que, as turmas de adultos, eram formadas por um público diferente, com grande diversidade de perfis humanos! Aparecia todo tipo de gente! Eu costumava dizer que era curso “sopa-de-letrinhas”! Naquela época, aprendi a me comunicar usando três ou quatro tipos diferentes de linguagem, para poder explicar a mesma coisa a todos os alunos presentes nas salas de aula. Começava com gente simples, pouca escolaridade, parco conhecimento de vocabulário, e chegava até o pessoal pós-graduados, com domínio de dois ou mais idiomas; encontrei todas essas pessoas, sentadas “lado-a-lado”, nas salas de treinamento do SEBRAE.

Dentre aqueles que frequentavam, havia sempre um grupo que se sobressaia; era formado por pessoas com altíssimo grau de interesse e comprometimento. Existia também um grupo, felizmente pequeno, constituído por alunos que eu classificava como do gênero “Ets”; estavam ali somente para cumprir a obrigação de frequentar e receber certificado de conclusão. O grupo que se destacava, pra valer, era formado por empreendedores, por gestores e por pessoas que buscavam ensinamentos factíveis, algum tipo de conhecimento mínimo, porém prático e eficaz, obviamente necessário ao sucesso de suas empresas. Não se importavam com certificados ou o saber livresco!

Outra característica daquele grupo: estava longe de ser formado por fracassados! Nada disso! Eram pessoas de sucesso, que haviam percebido ter a necessidade de obter conhecimento, capaz de manter o sucesso já conquistado! Necessitavam de mais conhecimentos práticos, de fácil aplicação, especialmente sobre gestão de negócios! Conheci casos deveras emocionantes, de grande valor, verdadeiros exemplos de força de vontade e alto poder de persistência, frente aos obstáculos na lida diária dos empreendimentos. Sou capaz de apostar que, nenhum daqueles alunos, jamais pensou em entrar numa fila, de algum programa social, para receber, mensalmente, valores de bolsas “auxílio-isso-ou-aquilo”.

Um detalhe, porém, sempre me despertou a curiosidade. Praticamente, todos eles eram pessoas que, desde a infância, haviam convivido com ambientes de pequenos ou médios negócios. Traziam de berço a cultura do trabalho familiar. Alguns haviam trilhado, com brilhantismo, carreiras técnicas ou de profissionais liberais. Alguns haviam ingressado, por concurso, no serviço público, mas jamais deixaram de sonhar em empreender por conta própria. Na primeira oportunidade de participar de algum programa de demissão voluntária, não pensaram duas vezes, pularam fora, e iniciaram atividades de risco, empreendendo com capital próprio.

Foi dessa forma, por esse detalhe, que eu percebi, a questão da importância de se oferecer aos nossos filhos, oportunidades, para experimentarem suas potencialidades como futuros empreendedores. Igualmente, no grupo de alunos do SEBRAE, eu notei que, para ser um bom empresário, a maturidade do indivíduo pode ser um requisito interessante, mas não obrigatório. Existem outras qualidades necessárias de serem estimuladas, além do talento e características próprias do indivíduo, que nasce com capacidade empreendedora.

Justamente, na época das aulas no SEBRAE, eu lembrei do caso do Juca, um menino a quem eu conheci pessoalmente. Era um rapazito comum, como tantos outros que existem no campo, afeitos ao trabalho duro desde cedo, para ajudar na renda familiar.  Muitas vezes, usei aquele personagem, que eu conheci na roça, para exemplificar os modelos teóricos preconizados pelo SEBRAE, no tocante às características de um bom empreendedor.

Em 1970, quando trabalhei como gerente de uma granja, muitas pessoas da região procuravam-me, para pedir emprego temporário. Uns pretendiam, simplesmente, ganhar apenas alguns trocados, para engordar a graninha da cerveja ou da pinga no final de semana. Certo dia, apareceu um menino magrinho, fracote mesmo, candidatando-se a uma vaga de servente de pedreiro. Notei que o tipo de trabalho não combinava com o biotipo do garoto. Olhei de banda o tipinho; e pensei: - “Não vai servir! Deve ter 10 anos de idade.” Perguntei pelo seu nome, ele respondeu firme: - “Juca!” Quando perguntei pela idade, tomei um susto; ele respondeu: - “15 anos”! Inacreditável! Conferi os documentos do moleque e, não é que o danadinho estava com a razão, tinha mesmo a idade declarada?

A seguir, passei ao teste de aptidão física. Fomos ao barraco da obra, onde estavam os sacos de cimento! Eu não acreditei novamente, quando o garoto ergueu um daqueles sacos de cimento, com 50 Kg, e conseguiu colocar no ombro direito. O próximo teste achei desnecessário fazer, mas Juca fazia questão de mostrar que poderia encher o carrinho-de-mão com areia peneirada, andar cinco metros e colocar a areia na betoneira. Fiquei com dó do garoto! Foi aprovado e contratado. Força de vontade e persistência!

 

Figura 2 - Quadro: “Arranca-toco x Cata-cavaco” – Por Rocha Maia

Entretanto, surpresa maior estava guardada. Foi num domingo, no campo improvisado do pasto onde, como a gente falava, “nóis sirreunia” para um jogo de bola, estilo “Arranca-toco” contra “Cata-cavaco”.  Com sorte, sempre aparecia a quantidade de jogadores suficiente para os dois times. Quando não, jogávamos com quem estivesse lá. No começo era fácil de organizar. Os “sem-camisa” contra os “de-camisa”.

O tempo foi passando; eu notei, o Juca nunca era escalado! Ficava na beira do campo, como gandula oficial! No final de alguns meses, resolveram dar um nome para o time local, homenagem ao lugarejo e marca de força e raça: Cruzeiro Futebol, cor azul celeste! Fui convidado a ser o padrinho do time. Adivinhem por quê? Eu era o único que podia patrocinar as camisas, chuteiras e a bola para os jogos. Fiz mais! Me autointitulei preparador-físico! Sendo assim, eu tinha poderes para nomear os titulares e os reservas, bem como, sem perder tempo, indiquei e aprovei o Juca, como meu auxiliar.

Com o tempo, observei que o Juca era um tremendo empreendedor. Ele conseguia conciliar as atividades de auxiliar; gandula oficial; e guardador do material esportivo, com as atividades de sua própria iniciativa: a venda de pipocas, balinhas, salgadinhos, refrigerantes e mais algumas coisinhas, que ele oferecia; primeiro era dentro de sacolas e depois num carrinho de ambulante. Nunca tive tempo de verificar o que era tudo aquilo que ele vendia, mas pelo tipo do público, percebi que devia ser alguma coisa de interesse também para mulheres. Na parte comercial que o Juca explorava, eu nunca me meti, porém, certa ocasião, vi que ele conseguia as mercadorias e os equipamentos, com o dono da vendinha local, o respeitado e conhecido Manuel Salomão.

Não era uma sociedade! O dono da vendinha não se expunha a nenhum problema na comercialização, apenas abria crédito, para o Juca assumir o risco. No final do dia, se Juca vendia alguma coisa, pagava ao Salomão, se não vendia, devolvia a mercadoria, desde que estivesse em bom estado, com a embalagem perfeita. Portanto, em termos práticos, o Juca era um empreendedor perfeito e completo.  

O tempo foi passando! Juca deixou as atividades de auxiliar de preparador físico; e transformou-se numa espécie de fornecedor oficial da torcida, nos jogos de futebol do Cruzeiro. No início, ele acompanhava o time no caminhão fretado pelo Cruzeiro, pegando carona com a tralha de seu comércio. Tão logo ele pode, tirou carteira de motorista e comprou a camionete Rural Willys, um calhambeque, verde alface, ganhando então total autonomia de transporte que necessitava. Inclusive, passou a cobrar pelo transporte de algumas das meninas, já conhecidas na época como “Marias-chuteiras”. Elas só queriam acompanhar os namorados, nos jogos realizados mais distantes. Para os padrões locais, Juca já era um empresário de sucesso! Quando não havia jogo, ele fazia fretes, mais baratos, para passageiros da roça, desejosos de ir fazer compras na cidade. Sem saber, ele foi pioneiro no serviço de “Uber” rural! Precoce nos negócios, logo juntou dinheiro e, logicamente, casou-se antes de fazer 19 anos, com uma moreninha fogosa, um pouco mais velha que ele!

Anos mais tarde, relembrando dos meus tempos de vida na agricultura, pintei alguns quadros que destacavam temas, relativos ao assunto que estou a lhes narrar neste momento. Os campos de futebol na roça, pintados por mim, sempre tiveram, em algum cantinho da tela, personagens que rememoravam o jovem empreendedor Juca! 

Que o Bom Deus tenha iluminado e abençoado os caminhos daquele menino! Juca, um prodígio na arte de empreender com sucesso e gerar riquezas para o nosso povo!

Figura 3 - Quadro: “As Andorinhas Voltaram” por Rocha Maia

Texto e Telas: Rocha Maia
Edição e Ilustração: Jornal Rio de Flores

Luiz Roberto da Rocha Maia nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e Brasília e, atualmente, em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta anos de atividade cultural. Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas. Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP; MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal. Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro “O Diário de Lili Beth”, pela editora Videu – 2021; e colaborou com a Coluna Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes.


Edição e Direção Geral
Renato Galvão



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