Havia
já algum tempo que eu ouvira, uma narrativa, sobre certa carta! Alguém me falou!
Dava
notícias de um filho vivendo na Capital. Casualmente, tomei conhecimento da
existência dela. Vou lhes revelar o que ela contava, mas não darei detalhes de
pessoas. Prefiro segredo! Dar muitas dicas sobre gente incita fofoca!
O
quadro que pintei dá algumas pistas! Deixo aos leitores o exercício da
imaginação; assim poderão completar esta narrativa, da forma como melhor lhes
aprouver.

Quadro “A Carta”, de Rocha Maia - 2002
Antes de comentar sobre a “carta”, vou apresentar o argumento do que estou a escrever. Pela manhã, saindo de casa, para levar meu filho ao curso de desenho e pintura, deparei-me, na esquina, com cena bizarra. Tinha ares de tragédia! Meu menino ficou igualmente espantado, fez muitas perguntas sobre o que tinha visto. Nem sei o que eu respondi!
Era
um carro escarranchado, de frente, com um poste enorme. Até parecia ser um
daqueles abraços, bem apertados, dados por saudosos amigos, que há muito tempo
não se encontram! Lá estava o carro, agarrado ao poste, pra valer! Não tinha
ninguém dentro, mas imaginei, na hora, se tivesse alguém, estaria num frangalho
só! Não paramos para ver. Não gosto desse tipo de espetáculo mórbido!
Ao
deixar meu filho na aula, comentei com as professoras. Uma delas havia visto o
mesmo acidente. Na volta para casa, tive de passar pelo lugar. Talvez, por lá, já
estivesse alguma autoridade de trânsito. Para minha surpresa, não havia ninguém!
O veículo permanecia no mesmo local. Pensei com meus botões, numa forma de
descontrair meu estresse momentâneo, “...deve ter sido..., amor à primeira
vista!”.
Mais
à frente, encontrei o vigia do bairro, com quem rapidamente comentei, quase sem
parar meu carro: “Caramba! Mas que “porrada” feia aquela ...!”. Com a
velocidade reduzida, ainda pude ouvir a resposta dele: “Cachaça! Um f.d.p.
cheio de cana!” Não pude parar na portaria. Seguindo meu caminho; fui matutando
sobre aquela informação recente; e pedi, a Deus, misericórdia ao acidentado e
sua família.
Humor
sem graça, eu sei! Porém, não me contive! Logo a seguir, cantarolei aquela
música imortalizado na voz de Inezita Barroso -“Com a marvada pinga, É que eu
me atrapaio, Eu entro na venda e já dou meu taio, Pego no copo e dali num saio,
Ali memo eu bebo, ali memo eu caio, Só pra carregar é que eu dô trabaio ...!
Não
sei por que, mas, naquele instante, lembrei do quadro “A Carta”. Antes de falar
sobre ele, quero fazer referência a um outro momento, que marcou muito a minha
vida. Um bom exemplo a ser seguido.
Ouvi,
certa ocasião, durante transmissão de rádio, um daqueles programas populares,
de entrevistas de pessoas que contam mazelas vividas. Era o “causo” de uma jovem.
O entrevistador perguntava a ela, porque continuava a perdoar e suportar o pai,
que a havia feito sofrer dissabores e carências na vida, em função do vício do
álcool. Era um alcoólatra, que havia cometido barbaridades, todo tipo violência,
tendo, daquela forma, ferido os sentimentos da jovem! Perguntava o repórter: “Eu
não entendo! Por que você não largou seu pai na sarjeta? Por que você o perdoa;
e ainda sustenta o velho, se nem a esposa, sua mãe, ficou com ele?” A moça
respondeu, de forma serena e absolutamente convicta: “Todos os dias, eu dou
Graças a Deus, por ter um pai! Mesmo sendo ele quem é! O pai que o Senhor Deus
me deu nesta encarnação foi esse!”.
O
restante da entrevista seguiu a mesma linha, tentando demover a moça da sua
atitude de perdoar o pai alcoólatra. Ela não arredava o pé da posição, e
confirmava sempre o perdão e as razão simples do seu amor pelo velho pai! Não
ouvi a entrevista até o final! Mudei a sintonia no rádio!
Voltando
ao assunto, sobre a “carta”! O primo de um amigo meu contou a história! Com
base na narrativa, inspirei-me para pintar o quadro. Dizia ele que, certamente,
algum mascate, vindo da cidade grande, foi o portador que entregou o envelope
ao destinatário, um tal de Zé, morador de um casebre, numa roça bem distante no
interior.
Foi
rabiscada por quem pouco sabia escrever. Aquela missiva chegou ao destino,
quase por milagre, depois de longa viagem. O velho, já bastante idoso, era ali o
único que sabia ler um pouco. Com os olhos cheios de lágrimas, ele pegou o
papel, as mãos calejadas, trêmulas, e passou a ler, para a mulher, exclamando:
“É do nosso fio, muié!”
Ali
mesmo, na pequena sala da casinha de taipa, chão de barro, seu Zé começou a ler,
conforme ainda podia enxergar. Cataratas toldavam seus olhos. Ficou mais fácil
de ver quando se aproximou da janela. A mulher curiosa, aflita, foi atrás.
Queria ouvir melhor!
O
velho pai, trôpego, também nas palavras, começou a ler lentamente: -“A sua bença
painho e mainha, acuma tão ocês? Puraqui eu vai indo. Imprego num tem, mais vô
fazeno uns bico! Passamo arguma difircuidade, mais nois vai indo! Casemo, eu
mais Creidiceia, qui tá cum bucho de nenê, cum seize meis. Tamém, foi assim,
nois cunsegiu pará de bebe cachaça! Quero adividi com ocês essas nuvidade! Si
vié machinho, vai chamá acuma ocê, Zé; si vié muié vai tê o nome di mãe. Entonces
ô é Zé ô é Maria! Nois chegô a falá em botá o causo prafora, o tar diabortá!
Creidiceia, qui é mutio catóca, falô... “Deus nus livra disso! Nunca! Disconjuro...,
cruzcredo!”
“Eita,
oh pai e mainha? Ocês, já parô de intorná mutia pinga? Ségui aí nossu ezempru.
Nois espera que sim! Pormoi di que, com a chegada du nosso nenê, eu num vai
mais pudê mandá dinhero procês! Osseis sê vira poraí! Tá? Tébrevi! Deus proteja
nois tudo! Bença pai, bença mãe! Vô termina aqui pidindu a Deus saudi e muita
felicidade! Acuma diz a Creidiceia, mia muié: ocês receba todus nossu
inocxidavi abraço e bêjus”.
Passado
algum tempo, aconteceu um milagre. A novidade precisava ser contada! Mas como,
se os velhos eram analfabetos? Seu Zé e Dona Maria pediram ajuda a um amigo bem
letrado, para escrever ao filho, contando as novidades lá da roça. Foram poucas
linhas! Eles até pagaram o serviço; deram uma galinha gorda ao amigo.
-“Filho,
pedi ao Severino, lembra dele? Pedi para escrever essa cartinha que lhe mando! E
vocês como estão? O nosso netinho já nasceu e está com saúde? Já deve estar
andando, né! Manda notícias! Aqui, sem o dinheiro que você nos mandava, findamos
por diminuir o consumo de cachaça. Pode acreditar, nunca mais bebemos da
branquinha, como antes nós bebíamos! Só, de vez em quando, uns goles de
garrafada forte, que eu pedi para a benzedeira preparar. Então, sua mãezinha
ficou mais forte, e eu também! Com mais vigor e saúde, aconteceu um milagre! Se
puder, manda novamente aquele dinheirinho de ajuda que antes você mandava? Sabe?
Então vou terminando essas mal traçadas linhas com a notícia! Sua mãezinha
Maria embuchou! Receba nossa bênção! Nosso PIX é 22999684543!”
Milagre
ou não, quando a velha Maria completou o nono mês, nasceu um Zé! O Zezinho!
Ilustração e Edição: Jornal Rio de Flores
Luiz Roberto da Rocha Maia –
nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e Brasília e, atualmente,
em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta anos de atividade
cultural.
Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é
Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da
Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de
Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos
eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de
setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas.
Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil
e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP;
MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional
de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em
pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no
Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal.
Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo
recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o
catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro
“O Diário de Lili Beth”, pela editora Videu – 2021; e colaborou com a Coluna
Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos
versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes.
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| Edição e Direção Geral Renato Galvão |


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