quinta-feira, 3 de agosto de 2023

 


Em diferentes áreas do conhecimento, nós tomamos contato com a “alegoria da caverna” ou “mito da caverna” ou “parábola da caverna”, que se encontra no livro “A República” do filósofo grego Platão, que viveu na Grécia Antiga, por volta de 400 a.C.

Grosso modo, o propósito da ideia forjada por Platão é demonstrar / exemplificar como o ser humano vive numa espécie de escuridão, mas que ele pode libertar-se dessa condição, que o aprisiona. Como isso aconteceria? Por meio da luz da verdade / esclarecimento sobre as coisas, sobre o mundo. Na prática, eu diria que há uma discussão muito clara sobre a importância do conhecimento, do domínio da linguagem e, evidentemente, da educação (Abro um parênteses para tecer uma consideração: a educação não acontece somente na escola, ela pode realizar-se, como propunha Paulo Freire, em espaços não-formais, como o chão de fábrica, o galpão de uma empresa lavoureira etc.).

Em síntese, a caverna, conforme Platão, é o mundo em que vivemos. Ele descreve alguns homens acorrentados desde a infância dentro de uma caverna, geração após geração, ouvindo as mesmas histórias, vendo as mesmas imagens. Esses homens aprisionados não conseguem mover-se, estão virados de costas para a entrada da caverna (não veem, portanto, a luz que vem de fora), apenas veem projeções que lhes são feitas no fundo da caverna – são sombras projetadas por uma fogueira, que mostram os homens lá fora, carregando coisas. Para os prisioneiros, aquelas sombras são tudo que existe no mundo.

Eis que, num determinado dia, um desses prisioneiros consegue libertar-se, tem dificuldade para enfrentar a claridade, mas segue em frente. Ele percebe que o mundo não é aquele que os homens dentro da caverna “conhecem”. Tomado de compaixão por aqueles que seguem prisioneiros, a tendência desse homem seria voltar à caverna para contar-lhes o que viu. Eles aceitariam como verdade o que lhes contaria aquele que saiu da caverna? No diálogo entre Sócrates e Glauco, dois filósofos gregos, Glauco chega a pensar que o homem liberto e que adquiriu o conhecimento poderia ser hostilizado ou até mesmo morto pelos outros que permaneceram as suas vidas inteiras presos na caverna, presos a mitos, a preconceitos e que não aceitam a luz do conhecimento, da educação. Agarram-se ao que creem, ao que consideram palpável, ao que aprenderam, mesmo que isso seja apenas uma sombra projetada, uma mentira.

A rejeição a tudo aquilo que é novo ou desconhecido é uma caraterística própria do ser humano. Em Literatura, costumo lembrar dois momentos emblemáticos. Em Portugal, a chamada Questão Coimbrã, que opôs os conservadores (autores românticos) e os novos (autores realistas), levou à consolidação, claro, do Realismo.

No Brasil, no início do século XX, delineava-se uma mudança nas Artes em geral, sobretudo, com a influência das chamadas Vanguardas Europeias (Futurismo, Cubismo, Expressionismo etc.), no entanto, foi um artigo escrito por Monteiro Lobato – cujo título era “Paranoia ou mistificação” -, uma dura crítica à exposição da artista plástica Anita Malfatti que desencadeou, a partir de 1917, os movimentos que culminariam na Semana de Arte Moderna: o velho escritor, representante das oligarquias rurais, conseguiu unir e fortalecer os jovens artistas.

Alguns sociólogos, antropólogos têm se debruçado sobre as relações humanas na atualidade e consideram que estamos involuindo, ou seja, regredindo a cavernas (imaginárias). Há muito conhecimento disseminado, sobretudo, via internet, mas há também pouquíssima vontade para aprender, sendo preferível receber informações “mastigadas” em correntes de redes sociais e aplicativos, repassando-as, sem refletir sobre o seu conteúdo. Há falta de questionamento, as supostas verdades são aceitas como incontestáveis, sem checar as informações.

Chegamos ao ponto de festejar a ignorância! Recentemente, numa roda de amigos, alguém “ressuscitou” o professor Astromar da telenovela “Roque Santeiro”, que usava um vocabulário extremamente rebuscado, era ovacionado pelas autoridades do pequeno município, mas ninguém o entendia, imaginavam que o “palavreado difícil” tivesse fundamento, tivesse validade. Há muitos professores Astromar no nosso meio, tentando demonstrar uma falsa erudição que desmorona ao primeiro questionamento. Quem é errado quando essa erudição desmorona? Sim, aquele que questiona. Estamos no cultivo das sombras, nem tanto aquelas projetadas no fundo da caverna, mas das sombras, das dobras de caráter.

Aquele que ousa opor-se a essa mediocridade reinante é considerado “fora da casinha”, porque está fora do espírito dominante, em que a alienação predomina. A pergunta que me faço sempre: O que acontecerá com os filhos e os netos dessa geração que optou pela caverna?

Texto: Elaine dos Santos

Ilustração: Jornal Rio de Flores

Elaine dos Santos. É natural de Restinga Seca/RS. Filha de Mario Cardoso dos Santos e Vilda Kilian dos Santos (in memoriam). Graduada em Letras, Mestre e Doutora em Estudos Literários, pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Possui formação em língua espanhola pela Universidad de La Republica, Montevidéu. É autora do livro “Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe”. Atuou como professora de Língua Espanhola, Literatura e Metodologia Científica no ensino médio, em cursos de graduação e pós-graduação. Foi Coordenadora do Curso de Letras e de Programas Sociais na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA/campus Cachoeira do Sul. Atuou como banca elaboradora de questões dos concursos PEIES e vestibular da UFSM e como avaliadora de redações dos mesmos concursos. É revisora de textos acadêmicos e parecerista ad hoc de revistas com classificação Qualis. Cronista, com publicações em jornais e em diversas antologias.


Edição e Direção Geral
Renato Galvão


Nenhum comentário:

Postar um comentário