segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Figura 01 - Ilustração Jornal Rio de Flores

Quando eu o conheci, já era um senhor, meia idade, simpático, bem-falante, cujo sotaque denunciava a origem lusitana. Apesar dos muitos anos vividos no Brasil, pelo modo dele dizer as coisas, a distância da Santa-terrinha se encurtava; transpareciam familiaridades na pronúncia típica daquela gente do Minho!

Contou-me que, ainda rapazito, acompanhando os pais, veio morar no Brasil. Lembrando da infância, sentia saudades! Cresceu e amadureceu distante do torrão natal. Nunca pode voltar! Com o passar dos anos, foi se acostumando com a nova cultura; contudo, sempre que chegava o Natal, mesmo estando no calor infernal do Rio de Janeiro, ele se enchia de recordações daquela serra gelada onde nascera. À noite, muitas vezes, disfarçando, para que ninguém percebesse, abraçado ao travesseiro, chorava mansinho. Vinham nos seus sonhos as lembranças da infância, naquela pequena Aldeia, em Portugal.

Seu nome? Francisco Manuel! Nomes mais lusitanos do que os dele, eu diria, impossível!

Lembrava-se da antiga casinha de dois pisos, toda feita em blocos de pedras, inclusive coberta com lajes de xisto no telhado. No rés-do-chão, recolhiam os animais, com espaço contado para a vaquinha malhada; algumas ovelhas; galinhas; e o pequeno Burro-de-Miranda. Assim reunidos, os animais ajudavam a manter aquecida a parte superior da casa, especialmente durante o rigoroso inverno na aldeia. Naturalmente, havia ainda um companheiro de quatro patas, um autêntico rafeiro do Alentejo, que se abrigava, com as pessoas, no andar de cima. 



Figura 02 - “Um Dia de Inverno na Aldeia” - Por Rocha Maia

Recordava-se também de uma cachopa, de nome Rita de Fátima, pele branquinha, tal como a neve na Aldeia. A garota, moradora de casa próxima, era a companheira certa, com quem costumava caminhar, para ir à igreja aos domingos. Seguindo antigas tradições, as meninas do vilarejo imaginavam, um dia, poder trocar mensagens de amor, tal como já faziam algumas espertinhas, precocemente despertas, para aventuras mais maduras durante os bailaricos saloios.

Por tradição, quando a família assim autorizava, as moças podiam bordar um lenço. Lenço...? Sim! Aquele pequeno complemento, próprio dos trajos femininos. Alguns eram bordados com mensagens; e tinham uma função social importante. Na ocasião certeira, o lenço seria entregue ao mancebo flertado; propositalmente, era “esquecido”, aos pés d’algum pretendido, num providencial “descuido”, servindo, portanto, caso o jovem o recolhesse, como a indicação de que aceitaria o namoro. Por isso mesmo, o pequeno pano bordado, ganhava significado maior e passava a ser chamado Lenço de Compromisso.  

Tanto ele, Francisco Manuel, como a garota, Rita de Fátima, nasceram num Portugal antigo e rústico, aquele das aldeias de xisto, de famílias muito pobres e de pouca instrução. Cresceram em meio às dificuldades e carências da vida nos pequenos vilarejos. Ambos, eram afeitos ao labor duro campesino; viviam e trabalhavam tanto como seus pais, autênticos saloios! Só quem conheceu algum daqueles pictóricos vilarejos de xisto, em Portugal, vai entender o sentido saudoso deste cenário descrito.

Entretanto, contou-me ele, antes mesmo que os dois jovens pudessem perceber, o encaminhamento de suas vidas tomou rumo inesperado. Os dois, sem perceber, tiveram desfeitos aqueles sonhos ingênuos de infância. Um dia, sem maiores informações e justificativas, embarcaram com as famílias para o Brasil. Aqui, o pai dele havia conseguido visto de entrada, para trabalhar na agricultura, no interior do Rio de Janeiro, enquanto outros imigrantes foram para lavouras de café em São Paulo. 


Figura 03 - “Bailarico Saloio” - Por Rocha Maia

Aquela sim, foi uma mudança radical, de certa forma brutal, para os jovens. Dos antigos bailes saloios na aldeia, só restava a saudade e a sonoridade dos ranchos folclóricos do Minho. Chegando ao Brasil, sofreram ruptura maior, quando suas famílias, já em terra, seguiram rumos diferentes. Do paradeiro de Francisco Manuel e dos seus pais ficaram informações mais seguras. Arrendaram uma pequena área, localizada na zona rural de Teresópolis, para onde se mudaram, levando “malas e cuias”, pouco tempo após a chegada na Praça XV, no Rio de Janeiro.

Seguiram orientações certas, que afirmavam ser o município possuidor de clima mais frio, topografia de serra, com características próximas daquelas que eles estavam acostumados a viver em Portugal. Infelizmente, sobre a família de Rita de Fátima, nenhum registro ficou! Orientados para o trabalho rural no interior de São Paulo, deles ninguém sabia dizer qual destino tiveram.

No desembarque, ainda a bordo do navio, antes de serem levados para a Hospedaria da Ilha das Flores, no Rio de Janeiro, Rita de Fátima teve oportunidade de entregar discretamente ao jovem Francisco Manuel, o pequeno lenço, que havia bordado durante a viagem, com a seguinte mensagem: “A Senhora da minha vida é Nossa Senhora mãe de Jesus Cristo”. Completava o bordado com a frase: “Minha doce alegria sempre será, a tua lembrança carinhosa e amorosa, noite e dia, para todo o sempre, com meu amor!”. Desafortunadamente, nunca mais puderam se encontrar, para confirmar aquele inocente compromisso!


Figura 04 - “Lenço de Compromisso” - Por Rocha Maia

Francisco Manuel, já rapaz, amadureceu em Teresópolis, onde completou os estudos. Lá ele se firmou na vida. Todos o chamavam de Chico! Anos depois, montou pequeno comércio; uma quitanda que prosperou e obteve sucesso na cidade serrana.

O tempo passava rápido e, já sem esperanças de reencontrar Rita de Fátima, Chico casou-se por procuração, com uma senhora matrona, viúva portuguesa. Buscavam os dois a conveniência do conhecido matrimônio por procuração! Com ela, teve um filho brasileiro, o Joaquim, que todos conheciam pelo apelido de Quinzinho, filho do Chico!

Da pequena cachopa da Aldeia, ele nunca mais teve notícias. Ficou aquela lembrança, eterna, de um amor que nunca pode ser confirmado!

Da Rita, ele sempre lembrava, cantarolando assim:

“No mercado da Ribeira 
Há um romance de amor
Entre a Rita que é peixeira
E o Chico que é pescador
Sabem todos os que lá vão
Que a Rita gosta do Chico
Só a mãe dela é que não
Consente no namorico
Namoram de manhãzinha
E da forma mais diversa


Dois caixotes de sardinha
São dois dedos de conversa
Quando ele passa por ela
Ela sorri descarada
Porém o Chico à cautela
Não dá trela nem diz nada
Que a mãe dela quando calha
Ao ver que o Chico se abeira
Por dá cá aquela palha
Faz tremer toda a Ribeira”

 

Figura 05 - “Mercado da Ribeira” - Por Rocha Maia



Texto e Telas (Figuras: 02, 02, 04, 05): Rocha Maia
Ilustração (Figura 01): Jornal Rio de Flores
Nota do editor: Cachopa - menina, rapariga, moça da província (do Norte de Portugal).

Luiz Roberto da Rocha Maia – nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e Brasília e, atualmente, em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta anos de atividade cultural.

Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas.

Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP; MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal.

Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro “O Diário de Lili Beth”, pela editora Videu – 2021; e colaborou com a Coluna Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes. 


Edição e Direção Geral
Renato Galvão






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