
Figura 01 - Ilustração Jornal Rio de Flores
Quando eu o conheci, já era um
senhor, meia idade, simpático, bem-falante, cujo sotaque denunciava a origem
lusitana. Apesar dos muitos anos vividos no Brasil, pelo modo dele dizer as
coisas, a distância da Santa-terrinha se encurtava; transpareciam familiaridades
na pronúncia típica daquela gente do Minho!
Contou-me que, ainda rapazito, acompanhando
os pais, veio morar no Brasil. Lembrando da infância, sentia saudades! Cresceu
e amadureceu distante do torrão natal. Nunca pode voltar! Com o passar dos anos,
foi se acostumando com a nova cultura; contudo, sempre que chegava o Natal,
mesmo estando no calor infernal do Rio de Janeiro, ele se enchia de recordações
daquela serra gelada onde nascera. À noite, muitas vezes, disfarçando, para que
ninguém percebesse, abraçado ao travesseiro, chorava mansinho. Vinham nos seus
sonhos as lembranças da infância, naquela pequena Aldeia, em Portugal.
Seu nome? Francisco Manuel! Nomes
mais lusitanos do que os dele, eu diria, impossível!
Lembrava-se da antiga casinha de dois pisos, toda feita em blocos de pedras, inclusive coberta com lajes de xisto no telhado. No rés-do-chão, recolhiam os animais, com espaço contado para a vaquinha malhada; algumas ovelhas; galinhas; e o pequeno Burro-de-Miranda. Assim reunidos, os animais ajudavam a manter aquecida a parte superior da casa, especialmente durante o rigoroso inverno na aldeia. Naturalmente, havia ainda um companheiro de quatro patas, um autêntico rafeiro do Alentejo, que se abrigava, com as pessoas, no andar de cima.

Figura 02 - “Um Dia de Inverno na Aldeia” - Por Rocha Maia
Recordava-se também de uma cachopa,
de nome Rita de Fátima, pele branquinha, tal como a neve na Aldeia. A garota,
moradora de casa próxima, era a companheira certa, com quem costumava caminhar,
para ir à igreja aos domingos. Seguindo antigas tradições, as meninas do
vilarejo imaginavam, um dia, poder trocar mensagens de amor, tal como já faziam
algumas espertinhas, precocemente despertas, para aventuras mais maduras
durante os bailaricos saloios.
Por tradição, quando a família
assim autorizava, as moças podiam bordar um lenço. Lenço...? Sim! Aquele
pequeno complemento, próprio dos trajos femininos. Alguns eram bordados com
mensagens; e tinham uma função social importante. Na ocasião certeira, o lenço seria
entregue ao mancebo flertado; propositalmente, era “esquecido”, aos pés d’algum
pretendido, num providencial “descuido”, servindo, portanto, caso o jovem o
recolhesse, como a indicação de que aceitaria o namoro. Por isso mesmo, o
pequeno pano bordado, ganhava significado maior e passava a ser chamado Lenço
de Compromisso.
Tanto ele, Francisco Manuel, como a
garota, Rita de Fátima, nasceram num Portugal antigo e rústico, aquele das
aldeias de xisto, de famílias muito pobres e de pouca instrução. Cresceram em
meio às dificuldades e carências da vida nos pequenos vilarejos. Ambos, eram
afeitos ao labor duro campesino; viviam e trabalhavam tanto como seus pais, autênticos
saloios! Só quem conheceu algum daqueles pictóricos vilarejos de xisto, em
Portugal, vai entender o sentido saudoso deste cenário descrito.
Entretanto, contou-me ele, antes mesmo
que os dois jovens pudessem perceber, o encaminhamento de suas vidas tomou rumo
inesperado. Os dois, sem perceber, tiveram desfeitos aqueles sonhos ingênuos de
infância. Um dia, sem maiores informações e justificativas, embarcaram com as
famílias para o Brasil. Aqui, o pai dele havia conseguido visto de entrada,
para trabalhar na agricultura, no interior do Rio de Janeiro, enquanto outros
imigrantes foram para lavouras de café em São Paulo.

Figura 03 - “Bailarico Saloio” - Por Rocha Maia
Aquela sim, foi uma mudança radical,
de certa forma brutal, para os jovens. Dos antigos bailes saloios na aldeia, só
restava a saudade e a sonoridade dos ranchos folclóricos do Minho. Chegando ao
Brasil, sofreram ruptura maior, quando suas famílias, já em terra, seguiram
rumos diferentes. Do paradeiro de Francisco Manuel e dos seus pais ficaram
informações mais seguras. Arrendaram uma pequena área, localizada na zona rural
de Teresópolis, para onde se mudaram, levando “malas e cuias”, pouco tempo após
a chegada na Praça XV, no Rio de Janeiro.
Seguiram orientações certas, que
afirmavam ser o município possuidor de clima mais frio, topografia de serra,
com características próximas daquelas que eles estavam acostumados a viver em
Portugal. Infelizmente, sobre a família de Rita de Fátima, nenhum registro
ficou! Orientados para o trabalho rural no interior de São Paulo, deles ninguém
sabia dizer qual destino tiveram.
No desembarque, ainda a bordo do navio,
antes de serem levados para a Hospedaria da Ilha das Flores, no Rio de Janeiro,
Rita de Fátima teve oportunidade de entregar discretamente ao jovem Francisco
Manuel, o pequeno lenço, que havia bordado durante a viagem, com a seguinte
mensagem: “A Senhora da minha vida é Nossa Senhora mãe de Jesus Cristo”.
Completava o bordado com a frase: “Minha doce alegria sempre será, a tua
lembrança carinhosa e amorosa, noite e dia, para todo o sempre, com meu amor!”.
Desafortunadamente, nunca mais puderam se encontrar, para confirmar aquele
inocente compromisso!

Figura 04 - “Lenço de Compromisso” - Por Rocha Maia
Francisco Manuel, já rapaz, amadureceu
em Teresópolis, onde completou os estudos. Lá ele se firmou na vida. Todos o
chamavam de Chico! Anos depois, montou pequeno comércio; uma quitanda que
prosperou e obteve sucesso na cidade serrana.
O tempo passava rápido e, já sem
esperanças de reencontrar Rita de Fátima, Chico casou-se por procuração, com
uma senhora matrona, viúva portuguesa. Buscavam os dois a conveniência do
conhecido matrimônio por procuração! Com ela, teve um filho brasileiro, o
Joaquim, que todos conheciam pelo apelido de Quinzinho, filho do Chico!
Da pequena cachopa da Aldeia, ele nunca
mais teve notícias. Ficou aquela lembrança, eterna, de um amor que nunca pode
ser confirmado!
Da Rita, ele sempre lembrava,
cantarolando assim:

Figura 05 - “Mercado da Ribeira” - Por Rocha Maia
Luiz Roberto da Rocha Maia – nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e
Brasília e, atualmente, em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta
anos de atividade cultural.
Membro de diversas entidades
culturais, no Brasil e em Portugal, é Fundador da Associação Candanga de
Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da Academia Brasileira de Belas Artes –
ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de Letras e Artes ALEART, Região dos
Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos eventos de artes no Brasil, Cuba,
Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de setenta premiações e destaques em
salões de artes plásticas.
Citado em catálogos e sites,
possui obras expostas em galerias no Brasil e no exterior; bem como nos acervos
do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP; MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do
Château des Réaux; e do Museu Internacional de Arte Naïf de Vicq, na França.
Seus quadros estão presentes também em pinacotecas de diversas entidades e
coleções de aficionados por arte naïf no Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha,
Chile, Japão, Bolívia e Portugal.
Por três vezes foi selecionado
para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo recebido o prêmio aquisição 2006, em
Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o catálogo “Ingenuidade Consciente”,
Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro “O Diário de Lili Beth”, pela
editora Videu – 2021; e colaborou com a Coluna Arte Animal, da revista digital
Animal Business Brasil, escrevendo artigos versando sobre a presença de animais
como tema nas belas artes.
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| Edição e Direção Geral Renato Galvão |

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