O cidadão, protagonista da
historinha, estava saindo de um prédio, na Esplanada dos Ministério, em Brasília,
às dez da manhã. Devia cumprir importante missão, no outro lado daquela área
nobre, onde se abriga a cúpula política e administrativa do serviço público
federal. Ele, um humilde funcionário, levava, agarrada ao peito, a surrada
pasta executiva, cheia de documentos sigilosos. Papeis importantes, destinados
à tomada de decisões, por altas autoridades. Caminhava rápido, talvez
preocupado com a segurança dos documentos. Deveria atravessar a pé aquele enorme
gramado que divide a esplanada, separando os blocos dos ministérios, perfilados
lado a lado. Do outro lado da rua, destino daquele simples “barnabé”, ficava o
Ministério da Fazenda; ele iria entregar tudo nas mãos de um importante
assessor.
Ao sair do prédio, onde trabalhava
no Protocolo, passou na frente de um ponto de venda de revistas e jornais, conhecido
pelo nome sugestivo de “Banca da Primeira-Dama”. No local, clandestinamente, funcionava
“bicho” e loteria. A “moda”, naquela ocasião, era apostar nos Bolões de Sena,
uma nova forma irregular, mas tolerada, de se fazer apostas coletivas de grande
valor. Naquele ponto, os apostadores, igualados pela fezinha das apostas, eram
considerados absolutamente iguais perante a “lei” ..., “do bicho”. (Jogo do Bicho, considerado o mais
popular do País!) De mendigos a deputados, de soldados a generais, de graduados
funcionários a qualquer zé-povinho, todo mundo era absolutamente igual na “Banca
da Primeira-Dama”.
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Quadro: “A Capital de Todos Nós?” – autor Rocha Maia - 2006
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Voltando ao relato! Nosso
personagem, simples “barnabé”, cujo nome não nos foi revelado, usava paletó
azul-marinho, de Nycron Sudantex, coisa muito chique para o padrão de um
humilde servidor público. O tecido, extremamente popular, era preferido porque
não amarrotava e nunca perdia o vinco, fabricado nos “United-States-of-“ ...
Teresópolis/RJ! Calçava um famoso sapato, preto, indestrutível, da marca
Vulcabras. Garantia total de durabilidade e de chulé insuportável!
Ao passar na frente da Banca, ocorreu
um fato que lhe despertou grande interesse. Antes de atravessar a larga avenida,
cheia de carros, ouviu um convite gritado, vindo lá de dentro: “HOJE! É hoje! ÚLTIMA
OPORTUNIDADE! VENHA! Venha apostar no bolão da Federal!”. Num apelo
mercadológico, direcionado a ele, gritaram: - “HEI, AMIGO! Vai perder a chance
de ficar rico? Venha apostar no bolão da Sena!”
Aquele chamado ecoou, “...ficar RICOooo-ico-ico”,
e fez cócegas na vontade dele tentar a sorte! O sorteio seria no Natal! Sonhava:
- “Quem sabe? Um dia, poderei contar bravatas, sobre uma boa “gravatada”, com a
tal da “Primeira-Dama”?”. Como resposta, perguntando, gritou de longe: “Quanto
custa a aposta do Bolão?”. Nem parou para ouvir direito a resposta! Seguiu
caminhando acelerado, tinha missão a cumprir. Era um funcionário de carreira,
concursado, responsável. Muito desvalorizado e humilhado, daqueles que, aos
montes, existem no Brasil. Pensou assim: “Na volta..., eu vou ver se consigo
fazer a aposta!”
Dito e feito, documentos entregues,
“barnabé” apertou um pouco mais o passo. Já era quase hora do almoço, quando
atravessou de volta a Esplanada. Foi direto até a Banca. Já entrou perguntando:
- “Quanto é o jogo na Sena?”. Contou os trocados no bolso e viu que não tinha
dinheiro suficiente. Não podia escolher números. Restavam três cotas do Bolão
de Natal! Nem pensou duas vezes! Temia acabar ficando sem aquela “oportunidade”!
Resolveu que pagaria o jogo com um cheque. Na Caixa Econômica, onde mantinha
sempre pequena reserva, havia saldo. A Banca aceitou o pagamento! Porém, por
segurança, solicitou anotação, no verso, de dados pessoais do apostador e da
finalidade da emissão do cheque. Em troca, foram entregues três canhotos das
apostas na Sena. Eram as cotas 12, 13 e 14. Para concluir o negócio, bastava ao
apostador guardar os comprovantes e esperar o resultado. Era o tal jogo da Sena,
que oferecia chances de ganhar em três grupos de números apostados. Bastava
acertar seis dezenas na Sena principal; porém tinha também a possibilidade de
acertar as dezenas anteriores e as dezenas posteriores, além de premiações de
Quina e Quadra, com rateios menores. Do ponto de vista da emoção do sorteio,
era um tipo de jogo sem graça. Bastava aguardar o sorteio e, simplesmente,
conferir o resultado dos números. Só isso, nada mais!
O calendário de apostas era aberto
com bastante antecedência, para permitir que os montantes de premiação fossem
gordos! Foram quase dois meses esperando o tempo passar, para conferir os
números. Muita gente chegava a perder a oportunidade de conferir os resultados,
por puro esquecimento das datas e prazos. Muito dinheiro ficou esquecido nos
cofres da Loteria.
O tempo foi passando! Um dia,
sentado no seu posto de serviço, uma mesinha na repartição, o “barnabé” deu
início à limpeza das gavetas. Todos os finais de ano, aquele tipo de
providência era uma tradição. Pacientemente, abria as gavetas, uma por uma, e
separava coisas que ali ainda teimavam ficar escondidas O que ainda poderia ser
útil era separado sobre a mesa. Coisas que não iam para o lixo, voltavam para a
gaveta. Foi o que aconteceu com as três cotas de apostas do Bolão da Loteria.
Ainda tinha que esperar um pouco mais, até o dia do sorteio. O jogo voltou a
dormir na gaveta, por mais alguns dias, bem lá no fundo!
Por puro descuido, as três cotas só
vieram à baila dois dias após o sorteio. Com as mãos trêmulas, “barnabé” pegou
as cotas e começou a conferir rapidamente. Olhou inúmeras vezes, para ter
certeza. Nenhuma das dezenas principais constavam das suas apostas! Largou uma
praga e amassou os papéis com certa fúria, além de sentir grande decepção.
Decepção maior consigo, por ter gastado aquele dinheiro todo, sem
justificativa. A seguir jogou as apostas no cesto de lixo.
Decorridos mais dois dias, tendo
passado na frente da Banca, ouviu alguém chamar sua atenção, de forma acintosa:
- “Milionário, venha cá, não quer receber seu prêmio?” Aquele chamado lhe
sugeriu zombaria de péssimo gosto. Ficou aborrecido e resolveu responder com
grosseria, afinal, havia conferido o resultado. Terminou por fazer um gesto com
a mão, do tipo que indica contrariedade! O interlocutor não entendeu nada!
Mesmo assim, lá da Banca, alguém insistiu: - “Milionário, vamos conversar...?”
Virou as costas e seguiu em frente,
resmungando algumas palavras pouco educadas. Pensou: “Como era desagradável aquele
sujeitinho gritador, tentando novamente tirar proveito da ingenuidade alheia!” Já
tinha decidido, nunca mais apostaria em loteria. A decepção foi grande, ainda
mais que o dinheiro perdido tinha feito falta no Natal.
No dia seguinte, casualmente, “barnabé”
foi à agência da Caixa Econômica, para providenciar pagamentos rotineiros.
Preferiu ir ao terminal eletrônico! As filas nos caixas estavam muito
demoradas. Ao final, tirou um extrato da movimentação. Pretendia conferir,
também, a compensação daquele cheque do pagamento do jogo. Sim, havia sido
debitado! Naquele dia, sem maiores razões, fez uma coisa diferente. Raramente,
alguém olha minuciosamente aquela “tripa” de papel, que a máquina “cospe”, ao
final da operação, após solicitada a emissão do documento! Naquele momento,
talvez embalado pelo arrependimento do que havia feito, resolveu ler tudo. Leu
até aquelas mensagens de letrinhas ridiculamente pequenas, que completam os
extratos.
Leu e releu! Lá embaixo, estava
escrito assim: PARABÉNS BANCA ... PELO PRÊMIO DA SENA DE NATAL! Em fração de
segundos, foi tomado por um sentimento de fúria! Ficou tão transtornado que
resolveu passar pela Banca. Foi! E foi embalado, com a cabeça fervendo de raiva,
um monte de palavrões! Queria despejar no primeiro que estivesse naquele
“maldito” lugar. No caminho, refletiu melhor, felizmente a cabeça foi
esfriando. Estava a poucos metros do local, quando pensou: - “Paciência! Não
era pra mim esse prêmio! Deus abençoe os sortudos que receberam a “bolada” do
prêmio!”
No passo em que vinha, “barnabé”
gritou lá para dentro da Banca: - “Bom proveito, amigos ganhadores da Loteria
de Natal! Deus abençoe vocês!” E seguiu em direção ao Ministério onde
trabalhava. Poucos metros andados, ele percebeu que uma senhora estava correndo
para alcançar seus passos. Ela queria falar alguma coisa! Para seu espanto, era
a “Primeira-Dama”, aquela, a famosa dona da Banca. Com suavidade feminina, ela
segurou seu braço por trás, obrigando-o a parar.
Cantarolando, ao estilo Wanderléa,
ela foi direta: - “Por favor! Senhor..., milionário! Pare, agora!” E completou,
- “O senhor não quer resgatar seu prêmio? Por quê? Vamos conversar?”
O nosso personagem ficou sem ação!
Só conseguiu balbuciar, meio gago, afirmando: - “Eu..., uai, eueueuu conferi os
números todos! Eu não ganhei!”; e completou dizendo – “Até joguei fora os
comprovantes do jogo!”.
A “Primeira-Dama”, muito paciente e
em tom maternal, passou a explicar didaticamente as regras do jogo. – “Realmente,
o Bolão de Natal, premiado nos seis números principais, não foi o nosso! Nosso
Bolão foi premiado pela aproximação das seis dezenas anteriores! Como o senhor
conferiu somente os números sorteados na série principal, acabou enganado; e
jogou fora os comprovantes. No rateio do prêmio, os apostadores da cota 14, já
estão recebendo, o equivalente a vinte e seis mil dólares...cada um!”
Pela primeira vez na vida,
“barnabé” teve a impressão de que iria desmaiar! As vistas escureceram, as
pernas bambearam; sentou-se no chão. Sem os papéis das apostas, como ele
poderia receber a sua cota-parte? Correu até a garagem do Ministério. Foi
direto falar com o encarregado da limpeza, na vã esperança de encontrar os
sacos de lixo. Bobagem! Perda de tempo! O caminhão havia retirado o lixo, fazia
um bom tempo! Infelizmente, lá no Ministério não estava mais. Fazer o que?
Reuniu amigos, familiares e até voluntários para tentar uma catação seletiva,
nos monturos no Lixão da Estrutural. Aquela, sim! Seria a missão impossível!
A “Primeira-Dama” havia dito que,
em razão do tipo de premiação do Bolão, caso aparecesse alguma pessoa, portando
o documento da cota 14, por questão lógica, dentro das regras do jogo, a Banca
iria pagar, ao portador, o valor do rateio do prêmio. Contudo, ela prometeu
que, numa excepcionalidade, caso, em noventa dias, ninguém se apresentasse
cobrando o prêmio, “barnabé” deveria provar ter ele mesmo feito a aposta. Só
assim poderia ser reconhecido como ganhador. Teve início a contagem do tempo; a
mais angustiante na vida do “barnabé”. Como
ele poderia fazer aquela comprovação? A hipótese de que alguma pessoa pudesse
encontrar aquele pedacinho de papel, amarrotado, numa montanha do Lixão, era
uma suposição impossível. Como comprovar ter feito o jogo?
Pesadelos terríveis assaltavam as noites
do pobre “barnabé”. Nos sonhos, surgiam catadores de lixo que corriam, em
direção da Banca, na Esplanada dos Ministérios, gritando: - “Ganhei, ganhei,
ganhei!”. Os dias foram passando; havia terminado o Ano Velho. Conversando com
o gerente da Caixa Econômica, “barnabé” contou detalhes do drama que estava
vivendo. Num lance de pura sorte, com base em competência técnica, o gerente rapidamente
encontrou a solução. Solicitou o desarquivamento do cheque já pago. Com a cópia
autenticada, frente e verso! Naquela xérox, simples pedaço de papel, constavam
todas as referências necessárias à comprovação da emissão e compensação do
bendito cheque, inclusive aqueles detalhes que a Banca havia solicitado ao
apostador.
Lembra? Cheque é um documento, por meio do qual o titular de uma contracorrente, emite ordem, nominal ou ao portador, para que o Banco pague certa quantia, em favor de outra pessoa. Poucos dias após o Ano Novo, “barnabé” botou a mão na grana! Moral da história? Quem não sabe o que é um cheque, arrisca ficar sem receber a bolada do prêmio! “Senhor Juiz, Pare Agora! Por favor, pare agora!”
Luiz Roberto da Rocha Maia – nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e
Brasília e, atualmente, em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta
anos de atividade cultural.
Membro de diversas entidades
culturais, no Brasil e em Portugal, é Fundador da Associação Candanga de
Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da Academia Brasileira de Belas Artes –
ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de Letras e Artes ALEART, Região dos
Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos eventos de artes no Brasil, Cuba,
Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de setenta premiações e destaques em
salões de artes plásticas.
Citado em catálogos e sites,
possui obras expostas em galerias no Brasil e no exterior; bem como nos acervos
do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP; MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do
Château des Réaux; e do Museu Internacional de Arte Naïf de Vicq, na França.
Seus quadros estão presentes também em pinacotecas de diversas entidades e
coleções de aficionados por arte naïf no Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha,
Chile, Japão, Bolívia e Portugal.
Por três vezes foi selecionado
para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo recebido o prêmio aquisição 2006, em
Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o catálogo “Ingenuidade Consciente”,
Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro “O Diário de Lili Beth”, pela
editora Videu – 2021; e colaborou com a Coluna Arte Animal, da revista digital
Animal Business Brasil, escrevendo artigos versando sobre a presença de animais
como tema nas belas artes.
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| Edição e Direção Geral Renato Galvão |



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