sexta-feira, 7 de julho de 2023

 


Manuel Figueira nasceu em Trás os Montes. De lá, foi expulso pela pobreza. O pai, morrera jovem, de mal desconhecido. A mãe, vivia de trabalhos domésticos nas casas da burguesia decadente. A tia, que o obrigara a aprender a ler, morrera sem lhe mostrar onde estava “a riqueza que o saber traz”, conforme vivia lhe repetindo. Ele, já tinha barba e bigode e nunca tinha ganhado um Escudo sequer. Rumou para Lisboa, onde tinha um tio distante que, segundo sua mãe, poderia ajudá-lo. E não é que o tio o ajudou! À troca de dezesseis horas de trabalho na faxina de casa e na cozinha da taberna, onde recebia figuras madrugadoras - poetas, cantores, atores de teatro e outros boêmios - que ali permaneciam até o amanhecer. No início da noite, somente os literatos, que vinham buscar inspiração para seus futuros romances ou criticar os últimos lançamentos literários. Para estes, Manuel era destacado. Devia atendê-los com esmero e discrição - ordenara o tio. Foi servindo esta rodada de intelectuais, que ouviu, pela primeira vez, a palavra Brasil. Um deles, que estivera aqui por um curto período, como diplomata, contava em detalhes, o cotidiano da vida do Rio de Janeiro. Da sujeira, da falta de saneamento, do analfabetismo, da vida miserável da população negra, mesmo depois de ser libertada, da falta de leis, dos mosquitos, da licenciosidade. Mas exaltava as oportunidades de trabalho nos engenhos de açúcar e nas fazendas de café. E a vastidão das terras? É ter coragem, braço forte e “em se plantando tudo dá”, como dissera o nosso escriba d’além mar - enfatizava o intelectual como o dedo levantado. Manuel ouvia porque tinha ouvidos e não podia ficar longe daquele grupo. Aquelas histórias de terras do outro lado do mar pareciam conversa de mais de uma garrafa de vinho. Andar no mar semanas inteiras sem ver terra, é um Deus nos acuda, pensava.

Certo dia, foi ao cais do Sodré comprar o bacalhau para abastecer a taberna. Encontrou o fornecedor sentado em um baú, olhando atentamente para um navio cargueiro que já soltava as primeiras fumaças da partida.  “Hoje não tem bacalhau, meu caro...nem hoje nem nunca mais...estou indo para o Brasil” - disse, assustando Manuel.

À noite se interessou pela conversa daqueles a quem servia. Dias e dias se passaram e nada de voltarem ao assunto. Não teve coragem de perguntar, pois a ordem do tio era que dissesse apenas três palavras: sim, senhor e não, senhor. Nada de se intrometer em conversa de fregueses, principalmente daqueles ilustres.

- De jeito nenhum! Vai praquelas terras ser comido pelos índios? Ou servir de escravo praqueles aventureiros? - disse o tio, após uma pausa, também assustado com a ideia maluca do sobrinho, mas sobretudo com a possibilidade de perder um empregado barato e eficiente.

- Mas escravo eu já sou aqui - disse, para si, sem convicção do que é ser escravo, pois não era preto e o ilustre falou que os negros tinham sido libertados da escravidão.

- Louro que sou, só posso ser aventureiro naquelas terras. É isto: serei um aventureiro. Devia ter perguntado ao Miguel como é que se vai para o Brasil. E se eu aproveitar um descuido do tio e perguntar ao ilustre que já foi lá? - ruminava Manuel, enquanto esperava os primeiros fregueses. Chegaram os fregueses, beberam, conversaram e deixaram Manuel ruminado as suas dúvidas.

Quando voltava ao cais, não procurava apenas um fornecedor de bacalhau. Mas, também, quem o informasse de como se vai para o Brasil. E encontrou. Sairia, dentro de uma semana, um navio que estava precisando de trabalhadores da estiva. Com um, porém: tinha que começar a trabalhar imediatamente no carregamento do cargueiro - informou o comandante, a quem procurara, ansioso. Voltou para casa feliz da vida. O tio? Enfrentaria, primeiro, com uma mentira: viajaria para visitar a mãe; se ele não concordasse, diria a verdade. E foi a verdade que quase o mata.

Embarcou numa manhã de domingo. Na saída do rio Tejo, via terra em ambos os lados, depois somente atrás; uma terra que foi ficando pequena e baixa, até desaparecer, junto com a cidade que não chegou a amar, pois dela só conhecia o cais, o cheiro de bacalhau, e o catre da taberna que o recuperava da exaustão do trabalho madrugada adentro.

- Terra à vista, terra à vista! Repetiam os marujos comemorando a travessia. Olhe Manuel, naquela colina fica a cidade de Olinda.

- E onde fica o Pão de Açúcar? E o morro do Corcovado? Me disseram que são as primeiras terras que se avista no Brasil.

- Olhe Manuel, isso aí fica no Rio de Janeiro. Nós estamos em Pernambuco. O Rio de Janeiro está muito distante daqui e este navio não vai até lá.

- Mas me disseram que eu ia para o Brasil.

Desembarcou, nem alegre, nem triste, nem saudoso, nem aliviado, nem decepcionado nem esperançoso, nem medroso, nem triunfante, nem curioso, nem indiferente. Aliás, quando chegou a Lisboa, a sensação foi a mesma: sentia somente que estava em outra terra.

O cais do Recife era um formigueiro de mascates, de comerciantes, de prostitutas, de estivadores, de biscateiros, de marujos, de vadios de todos os tipos - como todo cais, em todos os lugares daquela época. Naquele ambiente, certa noite, se sentiu gente por inteiro: bebeu vinho - de boa qualidade - participou das rodadas de conversas e foi cortejado pelas mulheres - putas, mas que o cortejaram. Ali, teve sua primeira experiência sexual. E não foi desastrosa - nem ele temia. Pagou, também, sua primeira conta, com seu próprio dinheiro. Acordou, no dia seguinte, com o sol das dez horas entrando pela réstia do telhado e clareando a sua face embevecida de prazer. O porto é um lugar de chegada ou um ponto de partida - perguntava-se, confuso.

- No próximo domingo, de hoje a oito dias, levantaremos âncora. Amanhã, começaremos a carregar o navio. É uma partida de açúcar. Retornaremos doces, como doce é a cidade de Lisboa - avisou o comandante a toda tripulação reunida.

Para Manuel, aquela foi uma semana decisiva. Trabalharia a semana inteira, até o carregamento completo do navio. Mas não embarcaria; isto estava decidido desde o anúncio da partida. O que fazer daí em diante, debitaria à vida de aventureiro que se dispusera a ter. Parecia que tudo estava resolvido, embora nunca tivesse, sequer, pensado nisso. Na hora da partida não compareceria. A féria daquela última semana seria dispensada. Uma semana só, para quem trabalhou tanto tempo sem nada receber, nada representaria. Que o tio o perdoasse, mas somente voltaria a vê-lo se um dia cá viesse. Tampouco mandaria lhe dizer aonde estava, já que tanto fora esbravejado e renegado na partida. “É provável que ele não queira saber aonde estou, já que se sentiu traído, quando lhe comuniquei a minha partida iminente” - pensava Manuel, enquanto acomodava os últimos fardos de açúcar no porão do navio, já abarrotado. Também não comunicou ao comandante que não voltaria. Assistiu à partida do navio sentado em um quiosque, tomando uma caneca de vinho, como se comemorasse a sua decisão. À partir de então, tinha que tomar outras providências: onde dormir, em que trabalhar.

Seu primeiro emprego, foi na Cantina Trás os Montes, na rua dos Judeus, uma mistura de bar, restaurante, dormitório e facilitador de encontros fortuitos entre casais. Se apresentou ao patrício Joaquim Carvalho como experiente naquela atividade, sobretudo como conhecedor de vinhos e mestre cuca de bacalhoada. E mais: sabia ler e escrever. Aquela imposição da tia, agora, valia a pena, pelo menos para fazer firula, lembrava-se. Negociou uma féria semanal e um lugar para dormir. A própria comida, preparava quando e se tivesse tempo, pois não conseguia comer bacalhau.

A bacalhoada foi um sucesso e o patrício se deliciava com o aumento da freguesia. Atraiu fregueses endinheirados - comerciantes, marinheiros, viajantes. Mas tudo lhe trazia tristes lembranças: o cheiro de bacalhau, o catre miserável em que dormia, a bebedeira dos clientes madrugada adentro, atestando que a boêmia é igual em todos os lugares. “Taberna é tudo igual: uns mentem, outros enganam; há os que riem do que deveriam chorar e os que choram do que deveriam rir... há os que vêm comemorar conquistas e os que querem celebrar a vida; os que querem esquecer suas mazelas e os dominados pelo vício” - dizia de si para si, enquanto o cansaço tornava a madrugada ainda mais lenta. Certamente, não tinha mudado de vida, só de lugar.

- Isto aqui é uma terra de bugres; cruzamento da indolência com a ignorância; ninguém quer trabalhar; ninguém valoriza a arte - ouviu Manuel, quando se aproximava com a terceira garrafa de vinho para servir o espanhol Juan Rodriguez, dono de um circo que estava armado num terreno baldio próximo. Ele estava sozinho e parecia amargurado, não se sabendo se pelo público escasso nos seus espetáculos, pela solidão, ou pelas duas coisas. Falava para si e ria, amargurado, de seu próprio sarcasmo.

- Se o senhor quiser, posso trabalhar no seu circo. Não sei bem o que eu faria em um circo. Nunca entrei num deles. Mas é certo que precisa levantar e baixar lona, vigiar, carregar o caminhão - disse Manuel ao dono do circo, numa visita rápida que fez no dia seguinte.

- Você tem estampa de trapezista. Além do mais é um homem bonito. Tudo no circo deve ser belo e ilusório, para alimentar os sonhos das pessoas. Se quiser aprender a arte, levanta e baixa lona, vigia e carrega o caminhão, enquanto treina. Terá uma tenda para dormir, comida da nossa cozinha e uma féria semanal que dependerá da arrecadação dos espetáculos. Tenho um plano ambicioso: fazer todas as cidades daqui até Cimbres. Iremos de trem, pois temo que o Studbaker não suba a Serra das Russas. Será a primeira vez que um circo andará de trem.

- De jeito nenhum! Vai virar palhaço de circo? Vai praquelas terras ser atacado pelas cascavéis? Servir de escravo para esse aventureiro? Dizem que até índio tem lá - disse o patrão assustado com a possibilidade de perder um empregado eficiente e barato.

- Parece até que ele está combinado com meu tio...é a mesma conversa...me disseram que aqui só tinha escravo e aventureiro, mas tem também aproveitadores...escravizam sem ser o dono...posso até me arrepender, mas nunca mais vou sentir cheiro de bacalhau, nem ouvir conversa de bêbado, a não ser daqueles com quem me embriagarei; saudade, somente das rameiras, mas rameira tem em qualquer lugar - pensava Manuel, enquanto desatava nós e baixava a lona do circo.

Palhaço:  O palhaço o que é

Meninos: É ladrão de mulher?

Palhaço: Hoje tem espetáculo?

Meninos:  Tem, sim sinhô!

Palhaço:  Às oito horas da noite?

Meninos Tem, sim sinhô!

Palhaço:  O homem que engole fogo!

Meninos: Tem, sim sinhô!

Palhaço:  As mais belas bailarinas!

Meninos: Tem, sim sinhô!

Palhaço:  O palhaço Já Vem!

Meninos: Tem, sim sinhô!

Palhaço: Trapezistas voadores!

Meninos:  Tem, sim sinhô!

Palhaço:  Vamos cantar:

Palhaço:  Quebra, quebra guariroba

Meninos: Quero ver quebrar

Palhaço:  Quebra lá que eu quebro cá

Meninos: Quero ver quebrar.

Palhaço: Esta noite eu não dormi

Meninos: Só pensando em ti

Palhaço: Vou deixar de te amar

Meninos: Pra poder dormir

Sem maiores explicações aos companheiros de orgia, Zé Torebinha deixou de frequentar o puteiro, enrabichado que estava por sua prima Dulce.

Casar o neto com aquela devassa, nem passava pela cabeça de Mãe Zefa, pois ela, além de muito falada, tinha o dobro da idade dele. “Casamento de primo com prima, dizem, gera menino defeituoso...não confio no José, por mais que eu tenha avisado”, preocupava-se a avó. É verdade que a moça também era neta dela. Mas o neto tinha sua proteção, órfão que era por ela criado. A mãe dele, Lurdinha, pouco se importava, magoada que ficara com o pai desde a morte de Zé Vintém.

Dulce tinha sido despachada para a casa dos avós pelos próprios pais, que não aguentavam mais os seus escândalos. “Quem sabe, compadre Terto dá um jeito nela...ou, passados alguns anos, o povo daqui esquece tanta maluquice. ou, quem sabe, arranja um casamento...beleza não lhe falta” - conjeturava a mãe, quando lhe impôs o exílio.

Dulce já desceu do cavalo mostrando os fundilhos, para deleite de Zé Torebinha. “e que fundilhos!”, comentaria ele mais tarde na rodada de amigos. Por vários dias o movimento foi intenso na casa de Zé Terto. As moças, queriam copiar-lhe a beleza - no trajar e no andar; os rapazes para desejar-lhe a mesma beleza, em forma de coxas à amostra, peitos sem califom, saias transparentes e sem anágua – “quando ela passa na porta a gente vê a forquilha”; os mais velhos...bem, os mais velhos, somente para uma visitinha aos compadres. “Ela é o mais perfeito espécime do repetido cruzamento de índios, negros e brancos que este sertão já produziu” – disse, sobre ela, um Mendel que por lá apareceu.

Inicialmente, Zé Torebinha a olhava pelo buraco da fechadura. E descobriu que ela dormia nua. Depois, retirou uma telha de um ponto estratégico, onde montou seu posto de observação. Certo dia, sugeriu a ela que dormisse a noite inteira com o candeeiro aceso, pois ali costumava aparecer fantasma. Ela sorriu um sorriso maroto e, à noite inteira, o quarto permaneceu às claras. Às Claras e com a porta aberta. Dois meses depois, Mãe Zefa teve que convocar Mãe Joaquina para providenciar um aborto. Ficaria tudo em casa, ninguém saberia – concordaram também os pais dela, já sabedores do comportamento libidinoso da filha. Assim combinado, desse episódio somente Zé Fuinha e algumas pessoas da família tiveram conhecimento.

Dulce se recolheu. Pouco saía de casa, até o dia em que o circo chegou. Não aguentou a reclusão. Na primeira noite - sem a permissão dos avós, conforme combinado, lá estava ela no poleiro, com as pernas à mostra, sem califom, sorrindo e aplaudindo o trapezista. Muitos assistentes preferiram o espetáculo dela. E assim foi durante toda a temporada do circo, pois os avós lavaram as mãos e começaram a preparar o retorno dela à casa dos pais. Zé Terto esbravejou: “quem tiver suas quengas que cuide delas”. 

Quando o circo foi embora, Dulce também sumiu e dela nunca mais se ouviu falar. “Que alívio!” – dizia Mãe Zefa de si para si; “Preferia que ela tivesse voltado pra casa, mesmo com tanta maluquice” – dizia a mãe para as comadres; “melhor assim, do que uma filha quenga em casa” – conjeturava o pai, cofiando o bigode.

- Dulce, eu gostei muito daquele lugar. Parece, na pobreza e na distância, com a minha terra natal. Não, que eu tenha saudade de pobreza. Me parece uma terra promissora, onde tudo está por fazer. Poderíamos deixar esta vida de andarilho, de cidade em cidade e irmos viver lá, numa vida mais sossegada. Ademais, o circo, no Brasil, está em decadência. Juan Rodriguez morreu sem montar uma grande companhia circense. Lá do céu, ele testemunhou as dificuldades que tivemos para realizar o sonho que tivera. As grandes apresentações que fizemos deram prejuízo. Argumentou o antigo trapezista – e, então, dono do circo - que, um dia, arrebatou Dulce em uma paixão desvairada, que depois virou amor, que depois virou uma doce convivência.

- É um caso a pensar. Mas, primeiro, vamos cumprir os contratos que fizemos, mesmo com prejuízo, se for o caso. Temos que resolver o que faremos com o pessoal que trabalha conosco. Não podemos abandoná-lo à própria sorte. Tenho também o meu grande sonho: encerrar minhas atividades circenses encenando, em um grande picadeiro, um auto que conte a história do Reino dos Curibocas.

- Sr. Prefeito, estou aqui representando as Organizações Caribenhas de Entretenimento Ltda. Trata-se da mais completa companhia de arte circense da atualidade, com elenco internacional, formado nas mais famosas escolas de circo do mundo. Alguns artistas são egressos do Circo de Moscou. Eles desertaram, para fugir do regime comunista, quando a Companhia deles se apresentava no México. Nossa principal atração chama-se Carnaval no Gelo – um corpo de baile que encena, sobre patins, em pista de gelo, um documentário que conta a história dos Curibocas. O Senhor já deve ter visto coisa parecida no cinema, quando foi à Capital. Se não, verá ao vivo aqui na sua cidade. Para tanto, estou lhe entregando, em mãos, o pedido de alvará, para instalação provisória de nossa Companhia em vossa cidade.

- Nos antigamente, costumava aparecer por aqui um certo Circo Curupira. Era a alegria do lugar. Aliás, a única alegria, pois ele armava por ocasião da festa do padroeiro, misturando as duas alegrias numa só. Este circo deve ter se desmantelado...nunca mais voltou nem dele se ouviu falar. Por mal que lhe pergunte, quantos mastros tem o seu circo? Pelo jeito que vosmicê fala, não sei se minha cidade tem capacidade para receber um circo desse...os comerciantes vão ficar com raiva...eles dizem que os circos tiram o dinheiro do comércio...que essas companhias de divertimento não pagam nem impostos...que o prefeito recebe “um por fora”, além dos ingressos, gratuitamente, para ele, a família e os outros poderosos daqui...que só o povo, paga. Na época do Curupira, não pediam nem alvará. Quando a gente menos esperava, eles já estavam anunciando o primeiro espetáculo. Numa das vezes, o movimento foi tão pequeno, que o povo teve que fazer uma cota, em dinheiro e em mantimentos, para eles irem s’imbora. Foi um Deus nos acuda! Até uma grávida achou de parir aqui. Eles não tinham nem o que comer. Portanto, fica combinado que se o senhor tiver prejuízo, eu não posso fazer nada. De qualquer maneira, os permanentes – é assim que chamamos, aqui, os ingressos oficiais – eu não vou dispensar...pelo menos isso. Vou mandar lavrar o alvará hoje mesmo.

Foi impressionante a rapidez com que tudo ficou pronto. Enormes caminhões trouxeram as lonas e os quatro mastros. “Quatro mastros... dizem que tem elefante, leão, macaco, globo da morte, trapezistas, equilibristas e palhaços que só falam língua estrangeira, mas a gente entende tudo pelas roupas que usam e gestos que fazem... agora, nós vamos conhecer um circo de verdade” - repetiam os moradores, ansiosos.

– Hoje, nois vamo assistí o circo, Rosa. E vamo entrá pela porta da frente. Disse José Salustiano lembrando-se das vezes que não pôde assistir ao circo Curupira que, anualmente, aparecia por lá, sempre com o mesmo palhaço, a anunciar as mesmas atrações, do alto de suas pernas-de-pau. Recordava-se da humilhação de ter sido puxado pelas orelhas quando tentava entrar por baixo da lona e foi surpreendido pelo guarda. Pior ainda: de quando pareceu ser recusado para gritar o palhaço. “Saruê não serve pra gritar palhaço” – e a vaia da meninada por muito tempo lhe ecoou nos ouvidos. O palhaço, claro, queria somente brincar com ele. Mas quando o procurou para carimbar o seu braço, o que lhe franquearia a entrada no circo, ele já estava longe. O palhaço, com certeza, sofreu mais do que Zé Terto. “Que ele não deixe de gostar de palhaços...e que eu não mais ache uma criança feia...que me sirva a lição!” – teria ele pensado, amargurado.

Curiosamente, chegou o grande dia da estreia e somente a grande lona sustentada por quatro mastros estava armada. Nem elefante, nem leão, nem macaco. Somente os palhaços e os bailarinos se preparavam num dos caminhões transformado em camarim. No centro, ocupando tudo que seria um picadeiro, formara-se uma grande placa de gelo. Fora, a uma distância considerável, um grande e silencioso gerador alimentava de luz e energia o sonho que se tornaria realidade na noite daquele dia.

“Já posso morrer, depois de tanta beleza que vi” - dizia um. “Tenho certeza que foi um sonho...aquilo não existe...ainda mais aqui, nesta terra de Curibocas”, completava outro. “Por que será que eles não cobraram a entrada...vá ver, amanhã será o dobro”. Muitos não dormiram, tantos comentários tinham a fazer.

No dia seguinte, somente o barulho monótono do gerador de energia e a lona armada em seus quatro mastros, lembravam o espetáculo da noite anterior. Nas imediações e dentro do circo, silêncio total. Porém, todas as luzes permaneciam acesas. Dentro, tudo parecia mais iluminado do que fora, apesar do sol brilhante daquela manhã. Os caminhões, os palhaços, as bailarinas, tinham desaparecido.

Inconformados com aquele silêncio, temerosos de que aquele espetáculo não se repetisse, o Prefeito Zé Torebinha e seus quatro netos resolveram entrar no grande circo. Lá, encontraram no centro do picadeiro de gelo, uma estátua de Dulce - também de gelo e em tamanho natural - bela e provocante.  Sobre o busto desnudo, em diagonal, uma faixa onde se lia: CIRCO CURUPIRA – direção de Dulce Tolentino. 

Texto: Francisco Siqueira
Ilustração e Edição: Jornal Rio de Flores

Edição e Direção Geral
Renato Galvão



3 comentários:

  1. Grande Francisco Siqueira, mais uma belíssimo texto. Adorei e li com vontade de reler, coisa que certamente farei em breve. Sucesso garantido. Parabéns.

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  2. Siqueira, meu amigo, que alegria ler esse seu artigo Dulce. Além disso, duplamente feliz fiquei ao observar o quadro que está compondo o fundo da tua imagem de apresentação. Lembrei-me dele: "Um Rei do Sertão", ilustração da página 9 do livro Rumo Reverso, de tua autoria.

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