Manuel Figueira nasceu em Trás os
Montes. De lá, foi expulso pela pobreza. O pai, morrera jovem, de mal
desconhecido. A mãe, vivia de trabalhos domésticos nas casas da burguesia
decadente. A tia, que o obrigara a aprender a ler, morrera sem lhe mostrar onde
estava “a riqueza que o saber traz”, conforme vivia lhe repetindo. Ele, já
tinha barba e bigode e nunca tinha ganhado um Escudo sequer. Rumou para Lisboa,
onde tinha um tio distante que, segundo sua mãe, poderia ajudá-lo. E não é que
o tio o ajudou! À troca de dezesseis horas de trabalho na faxina de casa e na
cozinha da taberna, onde recebia figuras madrugadoras - poetas, cantores,
atores de teatro e outros boêmios - que ali permaneciam até o amanhecer. No
início da noite, somente os literatos, que vinham buscar inspiração para seus
futuros romances ou criticar os últimos lançamentos literários. Para estes,
Manuel era destacado. Devia atendê-los com esmero e discrição - ordenara o tio.
Foi servindo esta rodada de intelectuais, que ouviu, pela primeira vez, a
palavra Brasil. Um deles, que estivera aqui por um curto período, como
diplomata, contava em detalhes, o cotidiano da vida do Rio de Janeiro. Da
sujeira, da falta de saneamento, do analfabetismo, da vida miserável da
população negra, mesmo depois de ser libertada, da falta de leis, dos
mosquitos, da licenciosidade. Mas exaltava as oportunidades de trabalho nos
engenhos de açúcar e nas fazendas de café. E a vastidão das terras? É ter
coragem, braço forte e “em se plantando tudo dá”, como dissera o nosso escriba
d’além mar - enfatizava o intelectual como o dedo levantado. Manuel ouvia
porque tinha ouvidos e não podia ficar longe daquele grupo. Aquelas histórias
de terras do outro lado do mar pareciam conversa de mais de uma garrafa de
vinho. Andar no mar semanas inteiras sem ver terra, é um Deus nos acuda,
pensava.
Certo dia, foi ao cais do Sodré comprar
o bacalhau para abastecer a taberna. Encontrou o fornecedor sentado em um baú,
olhando atentamente para um navio cargueiro que já soltava as primeiras fumaças
da partida. “Hoje não tem bacalhau, meu
caro...nem hoje nem nunca mais...estou indo para o Brasil” - disse, assustando
Manuel.
À noite se interessou pela conversa
daqueles a quem servia. Dias e dias se passaram e nada de voltarem ao assunto.
Não teve coragem de perguntar, pois a ordem do tio era que dissesse apenas três
palavras: sim, senhor e não, senhor. Nada de se intrometer em conversa de
fregueses, principalmente daqueles ilustres.
- De jeito nenhum! Vai praquelas terras
ser comido pelos índios? Ou servir de escravo praqueles aventureiros? - disse o
tio, após uma pausa, também assustado com a ideia maluca do sobrinho, mas
sobretudo com a possibilidade de perder um empregado barato e eficiente.
- Mas escravo eu já sou aqui - disse,
para si, sem convicção do que é ser escravo, pois não era preto e o ilustre
falou que os negros tinham sido libertados da escravidão.
- Louro que sou, só posso ser
aventureiro naquelas terras. É isto: serei um aventureiro. Devia ter perguntado
ao Miguel como é que se vai para o Brasil. E se eu aproveitar um descuido do
tio e perguntar ao ilustre que já foi lá? - ruminava Manuel, enquanto esperava
os primeiros fregueses. Chegaram os fregueses, beberam, conversaram e deixaram
Manuel ruminado as suas dúvidas.
Quando voltava ao cais, não procurava
apenas um fornecedor de bacalhau. Mas, também, quem o informasse de como se vai
para o Brasil. E encontrou. Sairia, dentro de uma semana, um navio que estava
precisando de trabalhadores da estiva. Com um, porém: tinha que começar a
trabalhar imediatamente no carregamento do cargueiro - informou o comandante, a
quem procurara, ansioso. Voltou para casa feliz da vida. O tio? Enfrentaria,
primeiro, com uma mentira: viajaria para visitar a mãe; se ele não concordasse,
diria a verdade. E foi a verdade que quase o mata.
Embarcou numa manhã de domingo. Na saída
do rio Tejo, via terra em ambos os lados, depois somente atrás; uma terra que
foi ficando pequena e baixa, até desaparecer, junto com a cidade que não chegou
a amar, pois dela só conhecia o cais, o cheiro de bacalhau, e o catre da
taberna que o recuperava da exaustão do trabalho madrugada adentro.
- Terra à vista, terra à vista! Repetiam
os marujos comemorando a travessia. Olhe Manuel, naquela colina fica a cidade
de Olinda.
- E onde fica o Pão de Açúcar? E o morro
do Corcovado? Me disseram que são as primeiras terras que se avista no Brasil.
- Olhe Manuel, isso aí fica no Rio de
Janeiro. Nós estamos em Pernambuco. O Rio de Janeiro está muito distante daqui
e este navio não vai até lá.
- Mas me disseram que eu ia para o
Brasil.
Desembarcou, nem alegre, nem triste, nem
saudoso, nem aliviado, nem decepcionado nem esperançoso, nem medroso, nem
triunfante, nem curioso, nem indiferente. Aliás, quando chegou a Lisboa, a
sensação foi a mesma: sentia somente que estava em outra terra.
O cais do Recife era um
formigueiro de mascates, de comerciantes, de prostitutas, de estivadores, de
biscateiros, de marujos, de vadios de todos os tipos - como todo cais, em todos
os lugares daquela época. Naquele ambiente, certa noite, se sentiu gente por
inteiro: bebeu vinho - de boa qualidade - participou das rodadas de conversas e
foi cortejado pelas mulheres - putas, mas que o cortejaram. Ali, teve sua
primeira experiência sexual. E não foi desastrosa - nem ele temia. Pagou,
também, sua primeira conta, com seu próprio dinheiro. Acordou, no dia seguinte,
com o sol das dez horas entrando pela réstia do telhado e clareando a sua face
embevecida de prazer. O porto é um lugar de chegada ou um ponto de partida -
perguntava-se, confuso.
- No próximo domingo, de hoje a oito
dias, levantaremos âncora. Amanhã, começaremos a carregar o navio. É uma
partida de açúcar. Retornaremos doces, como doce é a cidade de Lisboa - avisou
o comandante a toda tripulação reunida.
Para Manuel, aquela foi uma semana
decisiva. Trabalharia a semana inteira, até o carregamento completo do navio.
Mas não embarcaria; isto estava decidido desde o anúncio da partida. O que
fazer daí em diante, debitaria à vida de aventureiro que se dispusera a ter.
Parecia que tudo estava resolvido, embora nunca tivesse, sequer, pensado nisso.
Na hora da partida não compareceria. A féria daquela última semana seria
dispensada. Uma semana só, para quem trabalhou tanto tempo sem nada receber,
nada representaria. Que o tio o perdoasse, mas somente voltaria a vê-lo se um
dia cá viesse. Tampouco mandaria lhe dizer aonde estava, já que tanto fora
esbravejado e renegado na partida. “É provável que ele não queira saber aonde
estou, já que se sentiu traído, quando lhe comuniquei a minha partida iminente”
- pensava Manuel, enquanto acomodava os últimos fardos de açúcar no porão do
navio, já abarrotado. Também não comunicou ao comandante que não voltaria.
Assistiu à partida do navio sentado em um quiosque, tomando uma caneca de
vinho, como se comemorasse a sua decisão. À partir de então, tinha que tomar
outras providências: onde dormir, em que trabalhar.
Seu primeiro emprego, foi na Cantina
Trás os Montes, na rua dos Judeus, uma mistura de bar, restaurante, dormitório
e facilitador de encontros fortuitos entre casais. Se apresentou ao patrício
Joaquim Carvalho como experiente naquela atividade, sobretudo como conhecedor
de vinhos e mestre cuca de bacalhoada. E mais: sabia ler e escrever. Aquela
imposição da tia, agora, valia a pena, pelo menos para fazer firula,
lembrava-se. Negociou uma féria semanal e um lugar para dormir. A própria
comida, preparava quando e se tivesse tempo, pois não conseguia comer bacalhau.
A bacalhoada foi um sucesso e o patrício
se deliciava com o aumento da freguesia. Atraiu fregueses endinheirados -
comerciantes, marinheiros, viajantes. Mas tudo lhe trazia tristes lembranças: o
cheiro de bacalhau, o catre miserável em que dormia, a bebedeira dos clientes
madrugada adentro, atestando que a boêmia é igual em todos os lugares. “Taberna
é tudo igual: uns mentem, outros enganam; há os que riem do que deveriam chorar
e os que choram do que deveriam rir... há os que vêm comemorar conquistas e os
que querem celebrar a vida; os que querem esquecer suas mazelas e os dominados
pelo vício” - dizia de si para si, enquanto o cansaço tornava a madrugada ainda
mais lenta. Certamente, não tinha mudado de vida, só de lugar.
- Isto aqui é uma terra de bugres;
cruzamento da indolência com a ignorância; ninguém quer trabalhar; ninguém
valoriza a arte - ouviu Manuel, quando se aproximava com a terceira garrafa de
vinho para servir o espanhol Juan Rodriguez, dono de um circo que estava armado
num terreno baldio próximo. Ele estava sozinho e parecia amargurado, não se sabendo
se pelo público escasso nos seus espetáculos, pela solidão, ou pelas duas
coisas. Falava para si e ria, amargurado, de seu próprio sarcasmo.
- Se o senhor quiser, posso trabalhar no
seu circo. Não sei bem o que eu faria em um circo. Nunca entrei num deles. Mas
é certo que precisa levantar e baixar lona, vigiar, carregar o caminhão - disse
Manuel ao dono do circo, numa visita rápida que fez no dia seguinte.
- Você tem estampa de trapezista. Além
do mais é um homem bonito. Tudo no circo deve ser belo e ilusório, para
alimentar os sonhos das pessoas. Se quiser aprender a arte, levanta e baixa
lona, vigia e carrega o caminhão, enquanto treina. Terá uma tenda para dormir,
comida da nossa cozinha e uma féria semanal que dependerá da arrecadação dos
espetáculos. Tenho um plano ambicioso: fazer todas as cidades daqui até
Cimbres. Iremos de trem, pois temo que o Studbaker não suba a Serra das Russas.
Será a primeira vez que um circo andará de trem.
- De jeito nenhum! Vai virar palhaço de
circo? Vai praquelas terras ser atacado pelas cascavéis? Servir de escravo para
esse aventureiro? Dizem que até índio tem lá - disse o patrão assustado com a
possibilidade de perder um empregado eficiente e barato.
- Parece até que ele está combinado com
meu tio...é a mesma conversa...me disseram que aqui só tinha escravo e
aventureiro, mas tem também aproveitadores...escravizam sem ser o dono...posso
até me arrepender, mas nunca mais vou sentir cheiro de bacalhau, nem ouvir
conversa de bêbado, a não ser daqueles com quem me embriagarei; saudade,
somente das rameiras, mas rameira tem em qualquer lugar - pensava Manuel,
enquanto desatava nós e baixava a lona do circo.
Palhaço: O palhaço o que é
Meninos: É ladrão de mulher?
Palhaço: Hoje tem
espetáculo?
Meninos: Tem, sim sinhô!
Palhaço: Às oito horas da noite?
Meninos Tem, sim sinhô!
Palhaço:
O homem que engole fogo!
Meninos: Tem, sim sinhô!
Palhaço: As mais belas bailarinas!
Meninos: Tem, sim
sinhô!
Palhaço: O palhaço Já Vem!
Meninos: Tem, sim
sinhô!
Palhaço: Trapezistas
voadores!
Meninos: Tem, sim sinhô!
Palhaço: Vamos cantar:
Palhaço: Quebra, quebra guariroba
Meninos: Quero ver
quebrar
Palhaço: Quebra lá que eu quebro cá
Meninos: Quero ver
quebrar.
Palhaço: Esta noite eu
não dormi
Meninos: Só pensando em
ti
Palhaço: Vou deixar de
te amar
Meninos: Pra poder
dormir
Sem
maiores explicações aos companheiros de orgia, Zé Torebinha deixou de
frequentar o puteiro, enrabichado que estava por sua prima Dulce.
Casar
o neto com aquela devassa, nem passava pela cabeça de Mãe Zefa, pois ela, além
de muito falada, tinha o dobro da idade dele. “Casamento de primo com prima,
dizem, gera menino defeituoso...não confio no José, por mais que eu tenha
avisado”, preocupava-se a avó. É verdade que a moça também era neta dela. Mas o
neto tinha sua proteção, órfão que era por ela criado. A mãe dele, Lurdinha,
pouco se importava, magoada que ficara com o pai desde a morte de Zé Vintém.
Dulce
tinha sido despachada para a casa dos avós pelos próprios pais, que não
aguentavam mais os seus escândalos. “Quem sabe, compadre Terto dá um jeito
nela...ou, passados alguns anos, o povo daqui esquece tanta maluquice. ou, quem
sabe, arranja um casamento...beleza não lhe falta” - conjeturava a mãe, quando
lhe impôs o exílio.
Dulce
já desceu do cavalo mostrando os fundilhos, para deleite de Zé Torebinha. “e
que fundilhos!”, comentaria ele mais tarde na rodada de amigos. Por vários dias
o movimento foi intenso na casa de Zé Terto. As moças, queriam copiar-lhe a
beleza - no trajar e no andar; os rapazes para desejar-lhe a mesma beleza, em
forma de coxas à amostra, peitos sem califom, saias transparentes e sem anágua
– “quando ela passa na porta a gente vê a forquilha”; os mais velhos...bem, os
mais velhos, somente para uma visitinha aos compadres. “Ela é o mais perfeito
espécime do repetido cruzamento de índios, negros e brancos que este sertão já
produziu” – disse, sobre ela, um Mendel que por lá apareceu.
Inicialmente,
Zé Torebinha a olhava pelo buraco da fechadura. E descobriu que ela dormia nua.
Depois, retirou uma telha de um ponto estratégico, onde montou seu posto de
observação. Certo dia, sugeriu a ela que dormisse a noite inteira com o
candeeiro aceso, pois ali costumava aparecer fantasma. Ela sorriu um sorriso
maroto e, à noite inteira, o quarto permaneceu às claras. Às Claras e com a
porta aberta. Dois meses depois, Mãe Zefa teve que convocar Mãe Joaquina para
providenciar um aborto. Ficaria tudo em casa, ninguém saberia – concordaram
também os pais dela, já sabedores do comportamento libidinoso da filha. Assim
combinado, desse episódio somente Zé Fuinha e algumas pessoas da família
tiveram conhecimento.
Dulce
se recolheu. Pouco saía de casa, até o dia em que o circo chegou. Não aguentou
a reclusão. Na primeira noite - sem a permissão dos avós, conforme combinado,
lá estava ela no poleiro, com as pernas à mostra, sem califom, sorrindo e
aplaudindo o trapezista. Muitos assistentes preferiram o espetáculo dela. E
assim foi durante toda a temporada do circo, pois os avós lavaram as mãos e
começaram a preparar o retorno dela à casa dos pais. Zé Terto esbravejou: “quem
tiver suas quengas que cuide delas”.
Quando
o circo foi embora, Dulce também sumiu e dela nunca mais se ouviu falar. “Que
alívio!” – dizia Mãe Zefa de si para si; “Preferia que ela tivesse voltado pra
casa, mesmo com tanta maluquice” – dizia a mãe para as comadres; “melhor assim,
do que uma filha quenga em casa” – conjeturava o pai, cofiando o bigode.
-
Dulce, eu gostei muito daquele lugar. Parece, na pobreza e na distância, com a
minha terra natal. Não, que eu tenha saudade de pobreza. Me parece uma terra
promissora, onde tudo está por fazer. Poderíamos deixar esta vida de andarilho,
de cidade em cidade e irmos viver lá, numa vida mais sossegada. Ademais, o
circo, no Brasil, está em decadência. Juan Rodriguez morreu sem montar uma
grande companhia circense. Lá do céu, ele testemunhou as dificuldades que
tivemos para realizar o sonho que tivera. As grandes apresentações que fizemos
deram prejuízo. Argumentou o antigo trapezista – e, então, dono do circo - que,
um dia, arrebatou Dulce em uma paixão desvairada, que depois virou amor, que
depois virou uma doce convivência.
- É um caso a pensar. Mas, primeiro,
vamos cumprir os contratos que fizemos, mesmo com prejuízo, se for o caso.
Temos que resolver o que faremos com o pessoal que trabalha conosco. Não
podemos abandoná-lo à própria sorte. Tenho também o meu grande sonho: encerrar
minhas atividades circenses encenando, em um grande picadeiro, um auto que
conte a história do Reino dos Curibocas.
-
Sr. Prefeito, estou aqui representando as Organizações Caribenhas de
Entretenimento Ltda. Trata-se da mais completa companhia de arte circense da
atualidade, com elenco internacional, formado nas mais famosas escolas de circo
do mundo. Alguns artistas são egressos do Circo de Moscou. Eles desertaram,
para fugir do regime comunista, quando a Companhia deles se apresentava no
México. Nossa principal atração chama-se Carnaval no Gelo – um corpo de baile
que encena, sobre patins, em pista de gelo, um documentário que conta a
história dos Curibocas. O Senhor já deve ter visto coisa parecida no cinema,
quando foi à Capital. Se não, verá ao vivo aqui na sua cidade. Para tanto,
estou lhe entregando, em mãos, o pedido de alvará, para instalação provisória
de nossa Companhia em vossa cidade.
-
Nos antigamente, costumava aparecer por aqui um certo Circo Curupira. Era a
alegria do lugar. Aliás, a única alegria, pois ele armava por ocasião da festa
do padroeiro, misturando as duas alegrias numa só. Este circo deve ter se
desmantelado...nunca mais voltou nem dele se ouviu falar. Por mal que lhe
pergunte, quantos mastros tem o seu circo? Pelo jeito que vosmicê fala, não sei
se minha cidade tem capacidade para receber um circo desse...os comerciantes
vão ficar com raiva...eles dizem que os circos tiram o dinheiro do
comércio...que essas companhias de divertimento não pagam nem impostos...que o
prefeito recebe “um por fora”, além dos ingressos, gratuitamente, para ele, a
família e os outros poderosos daqui...que só o povo, paga. Na época do
Curupira, não pediam nem alvará. Quando a gente menos esperava, eles já estavam
anunciando o primeiro espetáculo. Numa das vezes, o movimento foi tão pequeno,
que o povo teve que fazer uma cota, em dinheiro e em mantimentos, para eles
irem s’imbora. Foi um Deus nos acuda! Até uma grávida achou de parir aqui. Eles
não tinham nem o que comer. Portanto, fica combinado que se o senhor tiver
prejuízo, eu não posso fazer nada. De qualquer maneira, os permanentes – é
assim que chamamos, aqui, os ingressos oficiais – eu não vou dispensar...pelo
menos isso. Vou mandar lavrar o alvará hoje mesmo.
Foi
impressionante a rapidez com que tudo ficou pronto. Enormes caminhões trouxeram
as lonas e os quatro mastros. “Quatro mastros... dizem que tem elefante, leão,
macaco, globo da morte, trapezistas, equilibristas e palhaços que só falam
língua estrangeira, mas a gente entende tudo pelas roupas que usam e gestos que
fazem... agora, nós vamos conhecer um circo de verdade” - repetiam os
moradores, ansiosos.
–
Hoje, nois vamo assistí o circo, Rosa. E vamo entrá pela porta da frente. Disse
José Salustiano lembrando-se das vezes que não pôde assistir ao circo Curupira
que, anualmente, aparecia por lá, sempre com o mesmo palhaço, a anunciar as
mesmas atrações, do alto de suas pernas-de-pau. Recordava-se da humilhação de
ter sido puxado pelas orelhas quando tentava entrar por baixo da lona e foi
surpreendido pelo guarda. Pior ainda: de quando pareceu ser recusado para
gritar o palhaço. “Saruê não serve pra gritar palhaço” – e a vaia da meninada
por muito tempo lhe ecoou nos ouvidos. O palhaço, claro, queria somente brincar
com ele. Mas quando o procurou para carimbar o seu braço, o que lhe franquearia
a entrada no circo, ele já estava longe. O palhaço, com certeza, sofreu mais do
que Zé Terto. “Que ele não deixe de gostar de palhaços...e que eu não mais ache
uma criança feia...que me sirva a lição!” – teria ele pensado, amargurado.
Curiosamente,
chegou o grande dia da estreia e somente a grande lona sustentada por quatro
mastros estava armada. Nem elefante, nem leão, nem macaco. Somente os palhaços
e os bailarinos se preparavam num dos caminhões transformado em camarim. No
centro, ocupando tudo que seria um picadeiro, formara-se uma grande placa de
gelo. Fora, a uma distância considerável, um grande e silencioso gerador
alimentava de luz e energia o sonho que se tornaria realidade na noite daquele
dia.
“Já
posso morrer, depois de tanta beleza que vi” - dizia um. “Tenho certeza que foi
um sonho...aquilo não existe...ainda mais aqui, nesta terra de Curibocas”,
completava outro. “Por que será que eles não cobraram a entrada...vá ver,
amanhã será o dobro”. Muitos não dormiram, tantos comentários tinham a fazer.
No
dia seguinte, somente o barulho monótono do gerador de energia e a lona armada
em seus quatro mastros, lembravam o espetáculo da noite anterior. Nas
imediações e dentro do circo, silêncio total. Porém, todas as luzes permaneciam
acesas. Dentro, tudo parecia mais iluminado do que fora, apesar do sol
brilhante daquela manhã. Os caminhões, os palhaços, as bailarinas, tinham
desaparecido.


Grande Francisco Siqueira, mais uma belíssimo texto. Adorei e li com vontade de reler, coisa que certamente farei em breve. Sucesso garantido. Parabéns.
ResponderExcluirSiqueira, meu amigo, que alegria ler esse seu artigo Dulce. Além disso, duplamente feliz fiquei ao observar o quadro que está compondo o fundo da tua imagem de apresentação. Lembrei-me dele: "Um Rei do Sertão", ilustração da página 9 do livro Rumo Reverso, de tua autoria.
ResponderExcluirParabéns! Belíssima obra.
ResponderExcluir