quarta-feira, 21 de junho de 2023

Figura 01: Ilustração Jornal Rio de Flores

Não adianta perder muito tempo com prosopopeias, para justificar a opção de dar voz humana aos animais, em fábulas, lendas e contos infantis. Na cultura de muitos povos, a contação de historietas visava educar crianças e jovens, quase sempre remetendo a lições de moral ou narrativas muito antigas da história ou da mitologia.

Em tempos de super-heróis e de jogos eletrônicos, falarmos do grego Esopo ou do francês La Fontaine; dos alemães irmãos Grimm ou do nosso brasileiríssimo Monteiro Lobato, parece coisa antiga, dos tempos de vovó contando historinha, para os netinhos. Contudo, com toda a tecnologia atual, esse gênero é importante, para exemplificar e transmitir, através da leitura, preceitos e valores morais aos mais jovens.

Como se fosse a coisa mais normal, nas fábulas e lendas, os animais falam e pensam tais qual ser humano. Os personagens mais “fortes”, quase sempre, animais ou insetos, tomam a narrativa de personagens imaginários, fantasiosos e mágicos, como uma pequena novela que comunica “fatos” ao público ingênuo. São gêneros muito usados na educação, muitas vezes destacando, ao final, lições de moral, para reflexão dos leitores e ouvintes. Figurativamente, pretendem ensinar algumas coisas por meio das figuras de linguagem, algumas metafóricas, outras apenas na forma de construções de sons. As formas sonoras, o comportamento social, na maioria das vezes, se dá transferindo aos animais, alguns tipos de sentimentos humanos que, podem ou não, ser estimulados ou condenados.

E AGORA, COMO DEVO CONTAR ESSAS HISTORIETAS?

Em tempos de “politicamente correto”, as lendas e fábulas parecem estar na mira das críticas, algumas ideológicas progressistas, confrontantes com valores antigos da educação tradicional das famílias. Não sabemos se, por essa razão, essas historietas estão pouco a pouco sendo esquecidas. Chegamos a ficar em dúvida, se devemos contar, atualmente, algumas daquelas historinhas; por exemplo “Chapeuzinho Vermelho e o Lobo”, “A cigarra e a Formiga” ou simplesmente o “Negrinho do Pastoreio”, na forma como nos foram contadas!

Nada contra a evolução da chamada humanidade; mas, por favor, respeitem os direitos autorais dos artistas que criaram aqueles conjuntos de fatos encadeados nas historinhas, e que constituem a obra de ficção na forma original. Não venham com essa moda de atualização de valores, desconstruindo aquilo que considerem estar fora do contexto das atuais “civilizações”! E se não aceitam a forma como a peça original foi artisticamente concebida, por favor, criem vocês uma nova historinha e tentem obter o mesmo sucesso.

Outro dia, alguém se propunha a reescrever a fábula “A Cigarra e a Formiga”! Imaginem isso, só porque entendia que as formigas eram umas malvadas, culpadas, porque teriam total responsabilidade na situação deplorável da “coitadinha” da espoliada cigarra, uma artista homóptera, cantante da natureza, vítima da exploração da “sociedade” insetívora capitalista das formigas empreendedoras. Tem louco para tudo!

Diante dessas coisas, eu me pergunto se, de forma inversa, isso fosse usado par recriar obras clássicas, mas nem por isso menos controversas! Como seria feito, para contar o episódio que deu origem à monumental escultura “O Rapto das Sabinas”? Seria narrado como algo condenável, por que teria envolvido violência sexual contra mulheres? E, como seria a releitura da pintura do realista Gustave Coubert, “L’Origine du monde”? Seria colocado um tapa sexo sobre a encomenda do diplomata turco, colecionador de imagens eróticas, por ser entendida como imagem pornográfica? Certamente essas não seriam as formas adequadas, para uma reinterpretação das referidas peças artísticas!

Muito bem! Então, como prometido, vou narrar “O Negrinho do Pastoreio”, tal qual foi contada por minha avó!

 

Figura 02: Quadro “O Negrinho do Pastoreio” Por Rocha Maia

Muitos artistas ilustram livros infantis, com pinturas e desenhos de animais, para melhor estimular o imaginário das crianças.

Vamos ver o caso da lenda “O Negrinho do Pastoreio”! Uma típica e antiga historinha contada lá pelas coxilhas gaúchas. Inspirado nessa lenda, surgiu interessante interpretação pictórica. Após lê-la, o artista intuiu que o cavalo ficaria destacado, no mesmo plano do personagem principal. Usando tela de tamanho pequeno, o pintor representou o menino com asas de anjo, cavalgando um pequeno baio, pelas coxilhas floridas, acompanhado por borboletas coloridas, como mensageiras de alegria, bem-estar, felicidade, alegria e prosperidade. Simbolizam elas, também, a renovação, e anunciam mudanças de vida.

A LENDA ERA CONTADA NOS PAMPAS GAÚCHOS, ASSIM:

Havia um estancieiro malvado que, certo dia, muito frio, mandou que um menino fosse juntar animais recém comprados. Ao entardecer, quando o pequeno escravo voltou, o fazendeiro disse que faltava um baio. Com o chicote, surrou o menino, até ele ficar sangrando. Ameaçado e sofrendo, o menino foi buscar o bicho. Logo ele achou o animal. Infelizmente, o cavalo fugiu novamente.

Ao retornar, encontrou o estancieiro mais nervoso; o garoto apanhou novamente. Amarrado nu, foi colocado sobre um formigueiro. No dia seguinte, o menino estava sem as marcas da chibata. Ao lado dele, a Virgem Maria, e mais adiante o baio fujão. Depois, o guri beijou a mão da Santa Mãe, montou o cavalinho e desapareceu. O tempo passou! Andarilhos, comerciantes e cavaleiros, passaram a noticiar terem visto um menino, montando um cavalo baio, pelos campos floridos do Sul. O imaginário popular logo associou o Negrinho, com crenças religiosas e superstição, dando a ele o poder de encontrar coisas perdidas, desde que o pedido fosse feito à Nossa Senhora.

Ainda hoje, no Sul, acredita-se, o Negrinho do Pastoreio pode ajudar a encontrar objetos perdidos. Basta acender uma vela perto de um formigueiro e pedir! Pedir com fé; e o objeto sumido será encontrado! Salve o Negrinho do Pastoreio!

Aqui em casa, lamento informar, já aposentamos, faz algum tempo, o santo da Igreja Católica, o renomado São Longuinho!  

Texto e Tela: Rocha Maia
Ilustração e Edição: Jornal Rio de Flores

Luiz Roberto da Rocha Maia – nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e Brasília e, atualmente, em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta anos de atividade cultural.

Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas.

Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP; MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal.

Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro “O Diário de Lili Beth”, pela editora Videu – 2021; e colaborou com a Coluna Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes. 


Edição e Direção Geral
Renato Galvão







Um comentário:

  1. Meu pai contava essa lenda e, antes dele, a minha avó havia contado para ele. A minha avó era mestiça: português, africano, indígena eram parte do seu sangue, carrego isso comigo - e a vertente alemã da minha mãe. Parece incrível, a menos que nos sentemos com vovôs e vovós com idade já bem avançada, não ouvimos mais as crenças, as lendas, as tradições de nossa gente. Lamento demais que, na região central do Rio Grande do Sul, por exemplo, tenha se perdido a tradição do Terno de Reis - que ainda se mantém na região litorânea. O estilo estadunidense de ser e viver parece que, de fato, apossou-se da nossa terra (é incrível, às vezes, olho para a televisão e penso: qual foi a última vez que nos olhamos, qual foi a última vez que te liguei? Ah, mas eu também já estou velha e olho, com outros olhos, para o mundo.

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