sexta-feira, 23 de junho de 2023

 

Figura 01: Ilustração Jornal Rio de Flores 

Quem contou essa história, foi meu colega de trabalho, nos tempos que eu ministrava aulas. Como recomeçaram as coisas? Comentou comigo que, um certo cidadão, era para ser agricultor, mas virou professor! Como assim?

Com 20 anos, tendo saído da Capital do Estado, o rapaz foi viver na roça, numa fazendinha, lá pelas bandas do córrego Cruzeiro, caminho da Vila Santa Maria. Na época, havia uma música de grande sucesso que, no refrão popular, apregoava: “Não vou mais trabalhar; só vou criar galinhas!” Coitado, parece que o rapaz acreditou na música! Isso devia ser lá pelos idos de 1975.

Não foi fácil a adaptação! Tendo saído da cidade grande, para viver distante do mar, clima frio, ambiente rural, o rapaz sentia-se como o próprio “estranho-no-ninho”! Morando na área rural, percebeu que muitos trabalhadores eram analfabetos. Chocado com a situação, resolveu tentar uma solução, a melhor que lhe pareceu existir. Montou dentro de velho galpão de madeira, no próprio sítio, uma “escolinha” noturna. Como não havia luz elétrica, instalou poderosos lampiões a querosene; uma mesa grande e bancos de tábuas de pinho, daquelas usadas nas obras; um quadro de giz; um mapa bem grande e a bandeira do Brasil.

Segundo me contaram, foi assim! Considerando a rusticidade do local, se iniciava, daquela forma bruta, a atuação do jovem, como “professor”! Pretendia alfabetizar algumas pessoas que aceitassem fazer o esforço de estudar à noite, vencendo o sono, ao final de um dia cansativo de trabalho. Sua experiência pedagógica era..., nenhuma. Boa vontade? Isso sim, sobrava! Aos trancos e barrancos, as aulas foram nascendo e crescendo. Aqueles participantes que sabiam ler e escrever, mesmo que mal e porcamente, eram designados “auxiliares” de ensino.

Como orientação para o projeto, o jovem aprendiz de professor valeu-se da própria memória. Buscou nas suas lembranças imagens da pequena escola pública, onde ainda menino havia estudado! Lembrava de poucas referências, algumas típicas das antigas salas de aula. 

Contudo, a principal referência veio na figura da estimada professora, com quem, a duras penas, conseguiu aprender a ler e escrever. Parece que, quando menino, ele seria um pouco disléxico, porém bastante metódico e falante. Foi graças à dedicação e carinho daquela querida mestra, paciente e amorosa, que ele havia vencido e, agora, tentava ser um agricultor. A saudosa professorinha dera-lhe os ensinamentos básicos, que o acompanharam por toda a vida. Ela era baixinha, voz estridente e firme; tinha as feições delicadas e aparência muito jovem. Na face, ela sempre apresentava um sorriso sincero; que, rapidamente, trocava por um olhar duro e austero, quando a coisa esquentava e a bronca era certeira.

Diziam que, na escola, quando ainda pequeno, era amigo de todos, conhecido por ser muito disciplinado; como se dizia, garoto bem-comportado! Porém, bastante malandrinho, sempre inventava alguma lorota, para justificar não ter feito os deveres de casa. Seu boletim, sempre azul, nota máxima, embora isso acontecesse somente na avaliação do comportamento. Andou repetindo de ano, uma ou duas vezes; passava raspando na média final. Com tudo, vejam a ironia do destino! Naquela altura da vida na roça, o rapaz sonhava ser um “docente”! Um professor de alfabetização!

Com toda dificuldade, natural ao exercício do magistério, ainda mais sendo um “professor” improvisado, ele enfrentava tudo, com muita coragem e força de vontade. Atuando numa “escola” adaptada, com “métodos” pedagógicos inventados, o esforçado “professor” até conseguiu bons resultados. Em pouco mais de seis meses, alguns de seus alunos deixaram a condição de analfabetos, para chegar ao patamar de semianalfabetos. Já assinavam o nome e soletravam. Uma evolução e tanto! Alguns, um pouco mais adiantados nas letras e números, conseguiam ler e interpretar pequenos textos, que eram extraídos das únicas fontes disponíveis: artigos publicados nas Revistas Seleções Rider’s Digest! Quem conheceu esse tipo de mídia mensal, pode avaliar o grau de dificuldades que o “professor” e seus “alunos” enfrentaram naquela época, por falta de material didático adequado à alfabetização de adultos.

Como se costuma dizer: era o que eles tinham para usar! E usaram muito, durante um bom tempo! Entretanto, como tudo na vida, um dia, tem fim, a escolinha do sítio também acabou! Encerrou as atividades! Já casado e com dois filhos para criar, ainda jovem, o “professor” largou a agricultura e mudou-se!

 

Figura 02: Quadro “Meus tempos de criança”, Por Rocha Maia

Quem me contou a história não sabia dizer das razões! Quais motivos resultaram naquele retorno para a cidade. Certamente, foi por coisas complicadas, difíceis de se entender! Fato é que o jovem “professor”, retornou ao ambiente urbano. Ele próprio percebeu a necessidade de obter mais instrução. Se possível, seria necessário ter algum curso superior. Já maduro e cheio de responsabilidades familiares, foi buscar o que necessitava. Juntando muita coragem, decidiu terminar o segundo grau, estudando à noite. Escolheu um que mais lhe agradava: técnico de Administração de Empresas. Logo a seguir, fez vestibular para a faculdade de Administração; e passou, no 11º lugar, entre milhares de vestibulandos.

A luta diária de tantos anos na roça, havia ajudar a embranquecer seus cabelos. Logo no primeiro semestre da Faculdade, conheceu um grande mestre, de forma quase traumática. Aquela foi uma experiência assaz extravagante, que muito lhe serviu de exemplo. Aliás, os bons exemplos merecem ser lembrados. Aquele importante catedrático tinha um nome respeitado no meio acadêmico. Dentre muitas matérias, ele ministrava aulas de Educação Moral e Cívica, naqueles tempos, uma disciplina que se tornou muito discutida, em razão de questões ideológicas e políticas.

Conhecido como sendo um Professor muito enérgico, que não deixava aluno malandro passar de ano, era um homem temido e admirado no tocante à inteligência, além da perspicácia didática e empreendedora. Tinha uma dialética competente e calejada em grandes debates. Embora tivesse um gênio muito forte, facilmente percebido quando atuava defendendo suas convicções, especialmente quando num palco, o velho professor tinha personalidade forte; sem qualquer dificuldade, saia do nível diplomático das discussões e chegava às “grosserias”, sem titubear. Ele próprio se descrevia como sendo um “casca-grossa”, embora tal definição escondesse um cérebro de inteligência aguçada e velocidade de raciocínio sem igual, ali estava um coração humano cheio de bondade e vontade de prestigiar os talentos humanas.

Aquele era um Professor que, certamente, poderia ser a reencarnação perfeita do personagem Rowan, citado por Elbert Hubbard, no artigo “Mensagem a Garcia”, publicado na Revista Philistine, em 1899.

E foi exatamente aquele professor “fera”, de nome tão singelo, Cordeiro, a quem, o corajoso calouro, resolveu enfrentar, no seu primeiro debate na Faculdade. Alguns colegas ouvintes, comentavam baixinho! “Louco!” Sim, talvez fosse realmente um calouro desmiolado, considerando que o desafio seria realizado, em plena aula inaugural, perante uma turma com mais de duas centenas de colegas. O clima ficou aquecido, mas tão quente, tão quente, que, sem arredar pé do auditório, nenhum dos presentes queria perder o final daquela contestação; era um fato inédito na época. Eram anos de regimes militares no Brasil.

Aquele debate ficou tão comentado que, no ano seguinte, o corajoso aluno foi eleito Presidente do grêmio estudantil da Faculdade. Entretanto, o melhor de tudo, foi iniciativa do Professor Cordeiro. Ele ficou tão bem impressionado, pelo desempenho do aluno debatedor, que, na primeira oportunidade, conversando pessoalmente com o calouro, convidou-o a iniciar atividades em seu importante colégio. Convidou o aluno para experimentar ser professor! Ofereceu uma vaga, como instrutor, no curso profissionalizante daquele estabelecimento de ensino moderno, modelo, verdadeiro padrão de qualidade de educação, frequentada por filhos das boas famílias da cidade.      

 

Figura 03: Quadro “Evolução e Relatividade”, por Rocha Maia

Minha fonte de informação, aquele meu ex-colega, contou que, sem perder tempo, reunindo todas as forças e coragem, no dia combinado, o rapaz já se apresentava no gabinete do Diretor da Escola, o Professor Cordeiro. Transcorrido o tempo necessário para os trâmites legais de contratação, lá estava o nosso personagem, “entronizado” como verdadeiro Professor, dando aula numa sala do colégio. Turma do mais alto nível, com quarenta alunos adolescentes, terceiro ano do Segundo Grau. O aluno mais novo teria uns quatorze anos, e o mais velho, já passava dos dezessete anos.

Poucos anos depois, tendo concluído o curso de Administração, nosso jovem ainda era apenas um projeto de Professor! Despediu-se da escola do Professor Cordeiro e resolveu aceitar novo desafio. Mudou-se novamente! Foi longe, chegando a Brasília, no início de 1979. Foi trabalhar no Governo Federal, onde permaneceu por mais de trinta anos. Sempre fazendo aquilo que ele denominava “terceiro turno”, de horário de trabalho ou de estudos. Portanto, conseguiu ir além e terminar, pela Fundação Getúlio Vargas, um curso de especialização em gestão, nível pós-graduação. Também dava aulas, pelo Sistema SEBRAE, atendendo pequenos empreendedores; e, na Faculdade de Administração, por seis anos, ministrou as disciplinas de Criação e Desenvolvimento de Negócios, Chefia e Liderança, Qualidade no Atendimento etc.

Contou o meu informante que, nosso personagem, era um apaixonado por tudo o que fazia, em especial pelo ambiente da sala de aula. Amava alunos que valorizavam seu trabalho. Adorava muito estudar! Lia! Como qualquer tipo de paixão na vida, aquela relação, um dia, esfriou! Com base nas histórias que me contaram, eu resolvi registrar algumas cenas de experiências, dentro de salas de aulas, deixando pincelados, em alguns quadros, aspectos de um cotidiano muito intensamente vivido. Dizem que ele sempre recordava..., Lia! Sempre Lia!

Aquela mesma fonte confidenciou-me: “O nosso personagem, finalmente de fato e de direito um professor, conheceu mentes brilhantes, muito inteligentes, com espiritualidade elevada, grande afetividade e fé! Ele conheceu o verdadeiro amor, frutificado dos bons tempos nas salas de aula. Gente marcante, edificante! Algumas, muito mais do que especiais! Certamente, dessas pessoas, dizem que ele, até hoje, sente muitas saudades! Alunos, professores, colegas, atendentes, estagiários. Difícil citar nomes de alguns, impossível todos! Tinha até uma lista com esses nomes, mas...! Para terminar, basta dizer que ele lia, eternamente agradecido a Deus!”

Lia!

Texto e Telas: Rocha Mai
Ilustrações: Jornal Rio de Flores

Luiz Roberto da Rocha Maia – nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e Brasília e, atualmente, em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta anos de atividade cultural.

Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas.

Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP; MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal.

Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro “O Diário de Lili Beth”, pela editora Videu – 2021; e colaborou com a Coluna Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes.


Edição e Direção Geral
Renato Galvão

2 comentários:

  1. Um texto belissimo e muito bem escrito. Parabéns e muito sucesso amigo!

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  2. Muito obrigado Jozy por suas palavras gentis e motivadoras.

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