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| Figura 01: Ilustração Jornal Rio de Flores |
Quem contou essa história, foi meu
colega de trabalho, nos tempos que eu ministrava aulas. Como recomeçaram as
coisas? Comentou comigo que, um certo cidadão, era para ser agricultor, mas
virou professor! Como assim?
Com 20 anos, tendo saído da Capital
do Estado, o rapaz foi viver na roça, numa fazendinha, lá pelas bandas do
córrego Cruzeiro, caminho da Vila Santa Maria. Na época, havia uma música de
grande sucesso que, no refrão popular, apregoava: “Não vou mais trabalhar; só
vou criar galinhas!” Coitado, parece que o rapaz acreditou na música! Isso
devia ser lá pelos idos de 1975.
Não foi fácil a adaptação! Tendo
saído da cidade grande, para viver distante do mar, clima frio, ambiente rural,
o rapaz sentia-se como o próprio “estranho-no-ninho”! Morando na área rural,
percebeu que muitos trabalhadores eram analfabetos. Chocado com a situação,
resolveu tentar uma solução, a melhor que lhe pareceu existir. Montou dentro de
velho galpão de madeira, no próprio sítio, uma “escolinha” noturna. Como não
havia luz elétrica, instalou poderosos lampiões a querosene; uma mesa grande e
bancos de tábuas de pinho, daquelas usadas nas obras; um quadro de giz; um mapa
bem grande e a bandeira do Brasil.
Segundo me contaram, foi assim! Considerando
a rusticidade do local, se iniciava, daquela forma bruta, a atuação do jovem,
como “professor”! Pretendia alfabetizar algumas pessoas que aceitassem fazer o
esforço de estudar à noite, vencendo o sono, ao final de um dia cansativo de
trabalho. Sua experiência pedagógica era..., nenhuma. Boa vontade? Isso sim, sobrava!
Aos trancos e barrancos, as aulas foram nascendo e crescendo. Aqueles
participantes que sabiam ler e escrever, mesmo que mal e porcamente, eram
designados “auxiliares” de ensino.
Como orientação para o projeto, o
jovem aprendiz de professor valeu-se da própria memória. Buscou nas suas lembranças
imagens da pequena escola pública, onde ainda menino havia estudado! Lembrava
de poucas referências, algumas típicas das antigas salas de aula.
Contudo, a principal referência
veio na figura da estimada professora, com quem, a duras penas, conseguiu
aprender a ler e escrever. Parece que, quando menino, ele seria um pouco
disléxico, porém bastante metódico e falante. Foi graças à dedicação e carinho
daquela querida mestra, paciente e amorosa, que ele havia vencido e, agora,
tentava ser um agricultor. A saudosa professorinha dera-lhe os ensinamentos
básicos, que o acompanharam por toda a vida. Ela era baixinha, voz estridente e
firme; tinha as feições delicadas e aparência muito jovem. Na face, ela sempre
apresentava um sorriso sincero; que, rapidamente, trocava por um olhar duro e
austero, quando a coisa esquentava e a bronca era certeira.
Diziam que, na escola, quando
ainda pequeno, era amigo de todos, conhecido por ser muito disciplinado; como
se dizia, garoto bem-comportado! Porém, bastante malandrinho, sempre inventava
alguma lorota, para justificar não ter feito os deveres de casa. Seu boletim,
sempre azul, nota máxima, embora isso acontecesse somente na avaliação do comportamento.
Andou repetindo de ano, uma ou duas vezes; passava raspando na média final. Com
tudo, vejam a ironia do destino! Naquela altura da vida na roça, o rapaz sonhava
ser um “docente”! Um professor de alfabetização!
Com toda dificuldade, natural ao
exercício do magistério, ainda mais sendo um “professor” improvisado, ele
enfrentava tudo, com muita coragem e força de vontade. Atuando numa “escola”
adaptada, com “métodos” pedagógicos inventados, o esforçado “professor” até
conseguiu bons resultados. Em pouco mais de seis meses, alguns de seus alunos
deixaram a condição de analfabetos, para chegar ao patamar de semianalfabetos.
Já assinavam o nome e soletravam. Uma evolução e tanto! Alguns, um pouco mais
adiantados nas letras e números, conseguiam ler e interpretar pequenos textos,
que eram extraídos das únicas fontes disponíveis: artigos publicados nas
Revistas Seleções Rider’s Digest! Quem conheceu esse tipo de mídia mensal, pode
avaliar o grau de dificuldades que o “professor” e seus “alunos” enfrentaram
naquela época, por falta de material didático adequado à alfabetização de
adultos.
Como se costuma dizer: era o que
eles tinham para usar! E usaram muito, durante um bom tempo! Entretanto, como tudo
na vida, um dia, tem fim, a escolinha do sítio também acabou! Encerrou as
atividades! Já casado e com dois filhos para criar, ainda jovem, o “professor”
largou a agricultura e mudou-se!
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| Figura 02: Quadro “Meus tempos de criança”, Por Rocha Maia |
Quem me contou a história não
sabia dizer das razões! Quais motivos resultaram naquele retorno para a cidade.
Certamente, foi por coisas complicadas, difíceis de se entender! Fato é que o jovem
“professor”, retornou ao ambiente urbano. Ele próprio percebeu a necessidade de
obter mais instrução. Se possível, seria necessário ter algum curso superior.
Já maduro e cheio de responsabilidades familiares, foi buscar o que necessitava.
Juntando muita coragem, decidiu terminar o segundo grau, estudando à noite. Escolheu
um que mais lhe agradava: técnico de Administração de Empresas. Logo a seguir,
fez vestibular para a faculdade de Administração; e passou, no 11º lugar, entre
milhares de vestibulandos.
A luta diária de tantos anos na
roça, havia ajudar a embranquecer seus cabelos. Logo no primeiro semestre da
Faculdade, conheceu um grande mestre, de forma quase traumática. Aquela foi uma
experiência assaz extravagante, que muito lhe serviu de exemplo. Aliás, os bons
exemplos merecem ser lembrados. Aquele importante catedrático tinha um nome respeitado
no meio acadêmico. Dentre muitas matérias, ele ministrava aulas de Educação
Moral e Cívica, naqueles tempos, uma disciplina que se tornou muito discutida,
em razão de questões ideológicas e políticas.
Conhecido como sendo um Professor
muito enérgico, que não deixava aluno malandro passar de ano, era um homem temido
e admirado no tocante à inteligência, além da perspicácia didática e
empreendedora. Tinha uma dialética competente e calejada em grandes debates. Embora
tivesse um gênio muito forte, facilmente percebido quando atuava defendendo
suas convicções, especialmente quando num palco, o velho professor tinha personalidade
forte; sem qualquer dificuldade, saia do nível diplomático das discussões e
chegava às “grosserias”, sem titubear. Ele próprio se descrevia como sendo um
“casca-grossa”, embora tal definição escondesse um cérebro de inteligência
aguçada e velocidade de raciocínio sem igual, ali estava um coração humano
cheio de bondade e vontade de prestigiar os talentos humanas.
Aquele era um Professor que,
certamente, poderia ser a reencarnação perfeita do personagem Rowan, citado por
Elbert Hubbard, no artigo “Mensagem a Garcia”, publicado na Revista Philistine,
em 1899.
E foi exatamente aquele professor
“fera”, de nome tão singelo, Cordeiro, a quem, o corajoso calouro, resolveu
enfrentar, no seu primeiro debate na Faculdade. Alguns colegas ouvintes,
comentavam baixinho! “Louco!” Sim, talvez fosse realmente um calouro
desmiolado, considerando que o desafio seria realizado, em plena aula
inaugural, perante uma turma com mais de duas centenas de colegas. O clima
ficou aquecido, mas tão quente, tão quente, que, sem arredar pé do auditório,
nenhum dos presentes queria perder o final daquela contestação; era um fato
inédito na época. Eram anos de regimes militares no Brasil.
Aquele debate ficou tão comentado
que, no ano seguinte, o corajoso aluno foi eleito Presidente do grêmio estudantil
da Faculdade. Entretanto, o melhor de tudo, foi iniciativa do Professor Cordeiro.
Ele ficou tão bem impressionado, pelo desempenho do aluno debatedor, que, na
primeira oportunidade, conversando pessoalmente com o calouro, convidou-o a
iniciar atividades em seu importante colégio. Convidou o aluno para
experimentar ser professor! Ofereceu uma vaga, como instrutor, no curso
profissionalizante daquele estabelecimento de ensino moderno, modelo,
verdadeiro padrão de qualidade de educação, frequentada por filhos das boas
famílias da cidade.
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| Figura 03: Quadro “Evolução e Relatividade”, por Rocha Maia |
Minha fonte de informação, aquele
meu ex-colega, contou que, sem perder tempo, reunindo todas as forças e
coragem, no dia combinado, o rapaz já se apresentava no gabinete do Diretor da
Escola, o Professor Cordeiro. Transcorrido o tempo necessário para os trâmites
legais de contratação, lá estava o nosso personagem, “entronizado” como
verdadeiro Professor, dando aula numa sala do colégio. Turma do mais alto
nível, com quarenta alunos adolescentes, terceiro ano do Segundo Grau. O aluno
mais novo teria uns quatorze anos, e o mais velho, já passava dos dezessete
anos.
Poucos anos depois, tendo
concluído o curso de Administração, nosso jovem ainda era apenas um projeto de
Professor! Despediu-se da escola do Professor Cordeiro e resolveu aceitar novo
desafio. Mudou-se novamente! Foi longe, chegando a Brasília, no início de 1979.
Foi trabalhar no Governo Federal, onde permaneceu por mais de trinta anos. Sempre
fazendo aquilo que ele denominava “terceiro turno”, de horário de trabalho ou
de estudos. Portanto, conseguiu ir além e terminar, pela Fundação Getúlio
Vargas, um curso de especialização em gestão, nível pós-graduação. Também dava
aulas, pelo Sistema SEBRAE, atendendo pequenos empreendedores; e, na Faculdade
de Administração, por seis anos, ministrou as disciplinas de Criação e
Desenvolvimento de Negócios, Chefia e Liderança, Qualidade no Atendimento etc.
Contou o meu informante que, nosso
personagem, era um apaixonado por tudo o que fazia, em especial pelo ambiente
da sala de aula. Amava alunos que valorizavam seu trabalho. Adorava muito
estudar! Lia! Como qualquer tipo de paixão na vida, aquela relação, um dia, esfriou!
Com base nas histórias que me contaram, eu resolvi registrar algumas cenas de
experiências, dentro de salas de aulas, deixando pincelados, em alguns quadros,
aspectos de um cotidiano muito intensamente vivido. Dizem que ele sempre recordava...,
Lia! Sempre Lia!
Aquela mesma fonte confidenciou-me:
“O nosso personagem, finalmente de fato e de direito um professor, conheceu
mentes brilhantes, muito inteligentes, com espiritualidade elevada, grande
afetividade e fé! Ele conheceu o verdadeiro amor, frutificado dos bons tempos nas
salas de aula. Gente marcante, edificante! Algumas, muito mais do que especiais!
Certamente, dessas pessoas, dizem que ele, até hoje, sente muitas saudades! Alunos,
professores, colegas, atendentes, estagiários. Difícil citar nomes de alguns, impossível
todos! Tinha até uma lista com esses nomes, mas...! Para terminar, basta dizer que
ele lia, eternamente agradecido a Deus!”
Lia!
Ilustrações: Jornal Rio de Flores
Luiz Roberto da Rocha Maia –
nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e Brasília e, atualmente,
em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta anos de atividade
cultural.
Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é
Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da
Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de
Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos
eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de
setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas.
Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil
e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP;
MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional
de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em
pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no
Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal.
Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo
recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o
catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro
“O Diário de Lili Beth”, pela editora Videu – 2021; e colaborou com a Coluna
Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos
versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes.
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| Edição e Direção Geral Renato Galvão |




Um texto belissimo e muito bem escrito. Parabéns e muito sucesso amigo!
ResponderExcluirMuito obrigado Jozy por suas palavras gentis e motivadoras.
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