segunda-feira, 29 de maio de 2023

 

Ilustração Jornal Rio de Flores

Aquele era um menino a quem bem cabia a denominação de “miúdo”; parecia mesmo fraquinho! Na família, tinha o apelido carinhoso de Patinho Feio! Medroso, sentia­-se frágil perante o mundo. Seu nome era Bertholdo, algo que não combinava com a figura daquele serzinho esquálido. Dá para se imaginar a cena? Alguém perguntando a ele: - “Hei garoto! Como é que tu te chamas?”; e o guri responde – “Eu não me chamo! Os outros é que me chamam de BERTHOLDOOOO!” No mínimo era incompatível!

Naquela época, as crianças eram estimuladas a dormir, sonhando com personagens de contos infantis. Muitas vezes, as narrativas fantasiosas, eram contadas como sendo verdadeiras, como aquela do Negrinho do Pastoreio, “causo” que teria acontecido, há muito tempo traz, lá para as bandas do Rio Grande do Sul.

Também havia historinhas importadas! Faziam muito sucesso; quem não lembra daquelas criadas pelo genial Hans Christian Andersen, escritor e poeta dinamarquês?

Nosso Bertholdo, adorava a historinha “ O Patinho Feio”. Talvez, porque fortalecia a autoestima de diversas maneiras. A principal delas: ajudando na compreensão e aceitação das muitas diferenças, tão comuns entre os seres humanos.

Aquele conto, lido com todo o carinho pela avó, na hora de dormir, ensinava o pequeno Bertholdo a aceitar aquela visível fragilidade, que o tornava muito diferente. Sentia-se inferior, quase um nada, quando comparado aos outros meninos. Sua avó, todas as noites, descansando as pernas do lufa-lufa diário, sentava-se num banco do jardim e contava-lhe lindas historinhas. Ali, naquele cantinho fora da casa, ela contava antigas fábulas; repetia, nos mínimos detalhes, pacientemente, aquelas passagens cheias de fantasias e sonhos encantados. Aquilo fazia cocegas no cérebro curioso do pequenino Bertholdo.

Ele sempre foi muito criativo; adorava ouvir a contação de fábulas, ora sentado no chão, ora deitado no colo da avó. O garoto sonhava ser alto, forte, atlético, como seu pai. Em casa, todos sabiam que não gostava de ser miudinho; parecia não entender a razão de ter nascido tão franzino. Diziam que puxara ao avô, um baixinho chamado pelos mais íntimos de Mingote. Era o diminutivo carinhoso do nome Domingos. O velho também não gostava nada daquele apelido; parecia que ficava ainda mais baixinho!  

O garoto se perguntava: - “Teria eu sido trocado na maternidade?”, ou – “Seria eu o tal filho da lavadeira Isaura; ou quem sabe da babá Eulina?” (uma preta da carapinha grisalha, daquelas de raízes autênticas, antiga na casa e muito querida da família! O garoto desconfiava não ser cria de Eulina, mas amava imaginar que era sim, filho daquela mulher negra tão querida! As duas eram bastante diferentes da sua mãe, mulher jovem, loura, de olhos azuis, que se parecia muito com a avó Olga, a verdadeira matriarca da casa! A avó era aquele tipo de senhora matrona, que, mesmo ralhando e dando alguma reprimenda severa, contava lindas histórias e fazia cafuné, antes do menino dormir! Ela dava comida na boca, sem contar que fazia os mais deliciosos papos-de-anjo, no aniversário do Bertholdo. Ele amava as quatro “mamães”, loucamente!  

Naqueles tempos, ser chamado de “pingo-de-gente”, “pintor-de-rodapé”, e outros apelidos que desancavam com os baixinhos, eram brincadeiras comuns entre irmão, primos ou colegas da escola. As crianças costumavam fazer aquela zoação, só por implicância. Havia, sim, por parte de alguns, uma pontinha de maldade, mas a garotada, na maioria das vezes, só queria ser brincalhona e amiga. Ninguém sabia o que era esse tal “Bouling”!

Figura 01 - Tela Título: "Contaçaõ de histórias" - Rocha Maia


Berthold era desse jeito! Inseguro e emocionalmente frágil!  Assim, ele vivia uma eterna dúvida!

Ser filho de Dona Isaura, a lavadeira, ele não acreditava. Avia a lorota de que, num descuido inexplicável, ela havia deixado o seu próprio bebê, esquecido dentro da trocha de roupas lavadas? Aquilo não colava para o guri; era impossível acreditar no que lhe contavam! Demorou um bom tempo tendo pesadelos. Algumas vezes, acordava abafado, enrolado num monte de roupas da cama! Coitadinho! Aquilo, no fundo, só prestava para reforçar a sua descrença! Depois, usando de um mínimo de racionalidade e maturidade, notou que tudo parecia ser conversa fiada das boas! Foi crescendo com algumas dúvidas, “traumas de infância”, mas ora bolas (!), quem nunca os teve? Já mais crescido, pode entender que, realmente, tudo não passava de brincadeira da molecada.  

De um possível trauma de infância, passando pela historinha do Patinho Feio, bem contada pela avó Olga, o menino criou argumentos próprios; passou a ver aquilo como um trunfo: ser baixinho! Aquelas dúvidas de antes se transformaram positivamente; possibilitaram a conquistas de muitas vitórias. Afinal, ser parecido com o vovô Mingote, até que era legal! Estava decidido! Ele não seria como o papai, militar, mas sim vendedor, no melhor estilo do excelente profissional, tal como era avô.

Aprendeu a não julgar as pessoas por suas diferenças, entendendo que as diversidades nunca devem servir para apartá-las do convívio social. Tampouco, por ser diferente, se pode justificar deixar uma pessoa à margem da vida. Aceitar as diferenças, buscando perceber as belezas dos seres humanos, lhe haviam ensinado desde muito cedo. Lembrava-se daquele “patinho” que, de feio, havia descoberto ser um belo Cisne!

Talvez, por ser fisicamente um menino miúdo, parecido com o pai de sua mãe, Bertholdo sentia grande afinidade com a figura do avô. O senhor Domingos, era muito querido por todos da família. Igualmente, ele era uma figura bem quista pelos clientes; um verdadeiro profissional, vendedor pracista, que havia se acostumado a trabalhar, desde a adolescência, no ramo de cordoaria. Com quatorze anos de idade, o avô Domingos descobriu na pintura algum talento; com isso se tornou um pintor amador a mancheias.

Mesmo para o padrão masculino brasileiro, aquele vovô era mesmo um homem bem baixinho. Não chegava a um metro e quarenta e cinco centímetros de altura! Fisicamente contrastava com as atitudes; tinha um espírito forte, mandão, genioso e austero, embora fosse do tipo simpático. Humilde, contudo, sem dar espaço às intimidades. Filho de luso-brasileiros, tendo lá, nos seus antepassados, como se diz “à boca pequena”, “os pés nas aldeias e senzalas”, o velhote gostava de dar provas da sua origem portuguesa! Aos fins de semana, preparava, como poucos, um completo cozidão lusitano; ou um bacalhau à moda do Porto. Pratos deliciosos, coisas que combinavam, totalmente, com o sobrenome dele: Gomes de Carvalho!  Ele adorava cantarolar fados, enquanto bebia um cálice do bom vinho do Porto.

O velho Mingote não era de frequentar clubes e associações da cultura lusitana, ainda que no Rio de Janeiro existissem muitas. Não lhe sobrava tempo para qualquer tipo de luxo social! Para o velho, sair cedo, para muito trabalhar, todos os dias, visitando clientes no centro da cidade ou subúrbios da cidade do Rio de Janeiro, era suficiente motivo para alimentar a alegria de viver. Além das atividades do ganha pão, baixinho era famoso por ser uma “máquina” de consertar coisinhas, organizar trecos, cuidar do pequeno jardim e da horta, como também, era mestre nos reparos da casa. Um pouco pão-duro? Não, apenas muito econômico, isso é certo! Jamais foi um avarento! Isso tudo, sem contar que, sempre, encontrava algum tempo para pintar lindos quadrinhos. Seu estilo? Realista, amador! Copiava gravuras de folhinhas de antigos calendários. Os seus quadros de gatinhos, eram os mais famosos..., disputadíssimos! Também eram muito desejadas as paisagens, especialmente aquelas que reproduziam a natureza da paradisíaca Ilha de Paquetá. 

Mas, voltemos ao menino! Bertholdo tinha também, pelo lado materno, confirmadas ligações de laços de sangue com origens irlandesas e suecas! Porém, a sua preferência recaia sobre aquela que a curiosidade mais lhe aguçava conhecer: a descendência portuguesa! Por suecos e irlandeses ele não se interessava nada! Podemos compreender: povos de gente corpulenta, grandalhona, características que acendiam aquele sentimento de ser “baixinho”!

Ainda bem novo, lhe contaram sobre a ligação do velho Domingos com o além-mar. Quando solteiro, o avô foi morar em Portugal. Lá ele chegou a empreender..., era um negócio no ramo de cordoaria. Anos depois, voltou ao Brasil, visando retomar o trabalho na antiga fábrica da Cordoaria Brasileira Ltda., localizada no histórico bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. A volta foi motivada por uma questão muito séria! Naquela época; o homem, quando estava no “limite” de idade para casar-se, fatalmente era declarado solteirão! Rótulo social que complicava muito arrumar esposa. Na época, a esperança de vida era muito curta; aos quarenta e cinco anos já era classificado como um idoso.  Escolheu Da. Olga Elizabeth McDermott Tjader, uma jovem “senhorinha”, carioca, órfã de pais estrangeiros; moça que arriscava ficar para titia, caso também não contraísse matrimônio rapidinho! Na época, casamentos assim eram comuns; chamavam de “casamento por conveniência”!  

Bertholdo, portanto, foi crescendo sob a predominante influência do avô Mingote; mesmo porque, o pai, por ser militar, muitas vezes estava distante, a serviço, nas asas da recém-criada FAB – Força Aérea Brasileira, desbravando os mais distantes rincões da Amazônia, em missões, pioneiras, abrindo campos de pouso no interior do Brasil.

Se consultado fosse, certamente, o menino teria preferido seguir os passos do pai, de quem se orgulhava muito, porém, era tão bem acolhido e acarinhado na casa do avô e da avó, que a distância dos pais, não chegava a magoá-lo. Já adolescente, muitas vezes, acompanhava o avô na lida diária de vendedor pracista, sendo por ele apresentado aos clientes como “o-meu-secretário”! Bertholdo ficava, na sua inocência, super envaidecido e feliz!

Por ajudar a transportar a preciosa malinha de vendedor, aquela que continha os mostruários de barbantes e cordinhas, na época, usadas para amarrar embrulhos e caixas, Bertholdo recebia do avô a “compensação” como auxiliar! Ganhava um bilhete, meia-entrada, para assistir, no CINEAC Trianon, comédias seriadas do Gordo e o Magro, além de alguns filmes de “bang-bang”, gênero faroeste, febre de preferência popular da época, atualmente ridículos e de gosto duvidoso. Na entrada, recebia sempre um generoso saco de pipocas, naturalmente, sob o patrocínio do vovô Mingote.

O “Patinho Feio” desta história, cresceu! Já aos 15 anos, foi trabalhar como vendedor/entregador de assinaturas do Jornal do Brasil. O JB, durante anos, foi um dos mais importantes veículos de comunicação no Brasil. Aos domingos, tornava-se o jornal mais volumoso da cidade, obrigando a distribuição ser feita por meio de triciclo cargueiro. Pedalar aquele trambolho, carregado de jornais, não era para qualquer um! Na mesma ocasião, o jovem adolescente passou por radical transformação física. A partir dos 13 anos, cresceu muito. Rapidamente passou de esquálido a gorducho. Chegou a pesar mais de 85 kg; e tinha quase 1,80cm de altura. Os moleques, na rua ou na escola, já não faziam graça com o Bertholdo! Passou a ser respeitado! Temido!

Por força da influência do avô Mingote, tão querido, o jovem aprendeu a pintar os primeiros quadros a óleo. Porém, foi graças à vovó Olga, tão amada, com suas contações de fábulas, que a pequena história infantil, “O Patinho Feio”, cumpriu sua função na vida do Bertholdo!

Os clássicos da literatura infantil são eternos. Cada um de nós, os mais velhos, terá guardado na lembrança algumas dessas histórias, ouvidas à noite, como acalanto para dormir. Foram muitos os sonhos iniciados, durante contos infantis, especialmente fábulas, protagonizadas por animais que, tanto como os super-heróis de hoje, tinham poderes mágicos, que marcaram, quase sempre, de forma positivamente nossa infância. Você lembra? Qual era a sua historinha preferida? Quem as contava para você?

Um dia, eu prometo, vou lhes narrar aquela lá do Sul, a do “Negrinho do Pastoreio”!

Leia mais em: https://pinceisletras.blogspot.com/2023/05/primeiro-de-maio.html?m=1

Texto e Tela (Figura 01): Rocha Maia
Ilustração: Jornal Rio de Flores

 Luiz Roberto da Rocha Maia – nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e Brasília e, atualmente, em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta anos de atividade cultural.

Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas.

Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP; MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal.

Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro “O Diário de Lili Beth”, pela editora Videu – 2021; e colaborou com a Coluna Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes. 


Edição e Direção Geral
Renato Galvão


 

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