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| Ilustração Jornal Rio de Flores |
Aquele era um menino a quem bem cabia a denominação de “miúdo”; parecia mesmo fraquinho! Na família, tinha o apelido carinhoso de Patinho Feio! Medroso, sentia-se frágil perante o mundo. Seu nome era Bertholdo, algo que não combinava com a figura daquele serzinho esquálido. Dá para se imaginar a cena? Alguém perguntando a ele: - “Hei garoto! Como é que tu te chamas?”; e o guri responde – “Eu não me chamo! Os outros é que me chamam de BERTHOLDOOOO!” No mínimo era incompatível!
Naquela época, as
crianças eram estimuladas a dormir, sonhando com personagens de contos infantis.
Muitas vezes, as narrativas fantasiosas, eram contadas como sendo verdadeiras,
como aquela do Negrinho do Pastoreio, “causo” que teria acontecido, há muito
tempo traz, lá para as bandas do Rio Grande do Sul.
Também havia historinhas
importadas! Faziam muito sucesso; quem não lembra daquelas criadas pelo genial Hans
Christian Andersen, escritor e poeta dinamarquês?
Nosso Bertholdo,
adorava a historinha “ O
Patinho Feio”. Talvez, porque fortalecia a autoestima de diversas maneiras. A
principal delas: ajudando na compreensão e aceitação das muitas diferenças, tão
comuns entre os seres humanos.
Aquele
conto, lido com todo o carinho pela avó, na hora de dormir, ensinava o pequeno Bertholdo
a aceitar aquela visível fragilidade, que o tornava muito diferente. Sentia-se
inferior, quase um nada, quando comparado aos outros meninos. Sua avó, todas as
noites, descansando as pernas do lufa-lufa diário, sentava-se num banco do
jardim e contava-lhe lindas historinhas. Ali, naquele cantinho fora da casa,
ela contava antigas fábulas; repetia, nos mínimos detalhes, pacientemente, aquelas
passagens cheias de fantasias e sonhos encantados. Aquilo fazia cocegas no cérebro
curioso do pequenino Bertholdo.
Ele
sempre foi muito criativo; adorava ouvir a contação de fábulas, ora sentado no
chão, ora deitado no colo da avó. O garoto sonhava ser alto, forte, atlético,
como seu pai. Em casa, todos sabiam que não gostava de ser miudinho; parecia
não entender a razão de ter nascido tão franzino. Diziam que puxara ao avô, um
baixinho chamado pelos mais íntimos de Mingote. Era o diminutivo carinhoso do
nome Domingos. O velho também não gostava nada daquele apelido; parecia que
ficava ainda mais baixinho!
O
garoto se perguntava: - “Teria eu sido trocado na maternidade?”, ou – “Seria eu
o tal filho da lavadeira Isaura; ou quem sabe da babá Eulina?” (uma preta da
carapinha grisalha, daquelas de raízes autênticas, antiga na casa e muito
querida da família! O garoto desconfiava não ser cria de Eulina, mas amava imaginar
que era sim, filho daquela mulher negra tão querida! As duas eram bastante
diferentes da sua mãe, mulher jovem, loura, de olhos azuis, que se parecia
muito com a avó Olga, a verdadeira matriarca da casa! A avó era aquele tipo de senhora
matrona, que, mesmo ralhando e dando alguma reprimenda severa, contava lindas
histórias e fazia cafuné, antes do menino dormir! Ela dava comida na boca, sem
contar que fazia os mais deliciosos papos-de-anjo, no aniversário do Bertholdo.
Ele amava as quatro “mamães”, loucamente!
Naqueles
tempos, ser chamado de “pingo-de-gente”, “pintor-de-rodapé”, e outros apelidos
que desancavam com os baixinhos, eram brincadeiras comuns entre irmão, primos ou
colegas da escola. As crianças costumavam fazer aquela zoação, só por implicância.
Havia, sim, por parte de alguns, uma pontinha de maldade, mas a garotada, na
maioria das vezes, só queria ser brincalhona e amiga. Ninguém sabia o que era esse
tal “Bouling”!
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| Figura 01 - Tela Título: "Contaçaõ de histórias" - Rocha Maia |
Berthold era desse jeito! Inseguro e emocionalmente frágil! Assim, ele vivia uma eterna dúvida!
Ser
filho de Dona Isaura, a lavadeira, ele não acreditava. Avia a lorota de que,
num descuido inexplicável, ela havia deixado o seu próprio bebê, esquecido dentro
da trocha de roupas lavadas? Aquilo não colava para o guri; era impossível acreditar
no que lhe contavam! Demorou um bom tempo tendo pesadelos. Algumas vezes, acordava
abafado, enrolado num monte de roupas da cama! Coitadinho! Aquilo, no fundo, só
prestava para reforçar a sua descrença! Depois, usando de um mínimo de
racionalidade e maturidade, notou que tudo parecia ser conversa fiada das boas!
Foi crescendo com algumas dúvidas, “traumas de infância”, mas ora bolas (!),
quem nunca os teve? Já mais crescido, pode entender que, realmente, tudo não
passava de brincadeira da molecada.
De
um possível trauma de infância, passando pela historinha do Patinho Feio, bem
contada pela avó Olga, o menino criou argumentos próprios; passou a ver aquilo
como um trunfo: ser baixinho! Aquelas dúvidas de antes se transformaram
positivamente; possibilitaram a conquistas de muitas vitórias. Afinal, ser
parecido com o vovô Mingote, até que era legal! Estava decidido! Ele não seria como
o papai, militar, mas sim vendedor, no melhor estilo do excelente profissional,
tal como era avô.
Aprendeu
a não julgar as pessoas por suas diferenças, entendendo que as diversidades nunca
devem servir para apartá-las do convívio social. Tampouco, por ser diferente,
se pode justificar deixar uma pessoa à margem da vida. Aceitar as diferenças,
buscando perceber as belezas dos seres humanos, lhe haviam ensinado desde muito
cedo. Lembrava-se daquele “patinho” que, de feio, havia descoberto ser um belo
Cisne!
Talvez, por ser
fisicamente um menino miúdo, parecido com o pai de sua mãe, Bertholdo sentia grande
afinidade com a figura do avô. O senhor Domingos, era muito querido por todos
da família. Igualmente, ele era uma figura bem quista pelos clientes; um
verdadeiro profissional, vendedor pracista, que havia se acostumado a trabalhar,
desde a adolescência, no ramo de cordoaria. Com quatorze anos de idade, o avô
Domingos descobriu na pintura algum talento; com isso se tornou um pintor
amador a mancheias.
Mesmo para o
padrão masculino brasileiro, aquele vovô era mesmo um homem bem baixinho. Não
chegava a um metro e quarenta e cinco centímetros de altura! Fisicamente contrastava
com as atitudes; tinha um espírito forte, mandão, genioso e austero, embora
fosse do tipo simpático. Humilde, contudo, sem dar espaço às intimidades. Filho
de luso-brasileiros, tendo lá, nos seus antepassados, como se diz “à boca
pequena”, “os pés nas aldeias e senzalas”, o velhote gostava de dar provas da
sua origem portuguesa! Aos fins de semana, preparava, como poucos, um completo
cozidão lusitano; ou um bacalhau à moda do Porto. Pratos deliciosos, coisas que
combinavam, totalmente, com o sobrenome dele: Gomes de Carvalho! Ele adorava cantarolar fados, enquanto bebia um
cálice do bom vinho do Porto.
O velho Mingote
não era de frequentar clubes e associações da cultura lusitana, ainda que no
Rio de Janeiro existissem muitas. Não lhe sobrava tempo para qualquer tipo de
luxo social! Para o velho, sair cedo, para muito trabalhar, todos os dias,
visitando clientes no centro da cidade ou subúrbios da cidade do Rio de
Janeiro, era suficiente motivo para alimentar a alegria de viver. Além das
atividades do ganha pão, baixinho era famoso por ser uma “máquina” de consertar
coisinhas, organizar trecos, cuidar do pequeno jardim e da horta, como também, era
mestre nos reparos da casa. Um pouco pão-duro? Não, apenas muito econômico,
isso é certo! Jamais foi um avarento! Isso tudo, sem contar que, sempre, encontrava
algum tempo para pintar lindos quadrinhos. Seu estilo? Realista, amador! Copiava
gravuras de folhinhas de antigos calendários. Os seus quadros de gatinhos, eram
os mais famosos..., disputadíssimos! Também eram muito desejadas as paisagens,
especialmente aquelas que reproduziam a natureza da paradisíaca Ilha de Paquetá.
Mas, voltemos ao
menino! Bertholdo tinha também, pelo lado materno, confirmadas ligações de
laços de sangue com origens irlandesas e suecas! Porém, a sua preferência
recaia sobre aquela que a curiosidade mais lhe aguçava conhecer: a descendência
portuguesa! Por suecos e irlandeses ele não se interessava nada! Podemos
compreender: povos de gente corpulenta, grandalhona, características que acendiam
aquele sentimento de ser “baixinho”!
Ainda bem novo,
lhe contaram sobre a ligação do velho Domingos com o além-mar. Quando solteiro,
o avô foi morar em Portugal. Lá ele chegou a empreender..., era um negócio no
ramo de cordoaria. Anos depois, voltou ao Brasil, visando retomar o trabalho na
antiga fábrica da Cordoaria Brasileira Ltda., localizada no histórico bairro de
São Cristóvão, no Rio de Janeiro. A volta foi motivada por uma questão muito
séria! Naquela época; o homem, quando estava no “limite” de idade para casar-se,
fatalmente era declarado solteirão! Rótulo social que complicava muito arrumar
esposa. Na época, a esperança de vida era muito curta; aos quarenta e cinco
anos já era classificado como um idoso. Escolheu
Da. Olga Elizabeth McDermott Tjader, uma jovem “senhorinha”, carioca, órfã de
pais estrangeiros; moça que arriscava ficar para titia, caso também não contraísse
matrimônio rapidinho! Na época, casamentos assim eram comuns; chamavam de
“casamento por conveniência”!
Bertholdo,
portanto, foi crescendo sob a predominante influência do avô Mingote; mesmo
porque, o pai, por ser militar, muitas vezes estava distante, a serviço, nas
asas da recém-criada FAB – Força Aérea Brasileira, desbravando os mais
distantes rincões da Amazônia, em missões, pioneiras, abrindo campos de pouso no
interior do Brasil.
Se consultado
fosse, certamente, o menino teria preferido seguir os passos do pai, de quem se
orgulhava muito, porém, era tão bem acolhido e acarinhado na casa do avô e da
avó, que a distância dos pais, não chegava a magoá-lo. Já adolescente, muitas
vezes, acompanhava o avô na lida diária de vendedor pracista, sendo por ele
apresentado aos clientes como “o-meu-secretário”! Bertholdo ficava, na sua
inocência, super envaidecido e feliz!
Por ajudar a
transportar a preciosa malinha de vendedor, aquela que continha os mostruários
de barbantes e cordinhas, na época, usadas para amarrar embrulhos e caixas, Bertholdo
recebia do avô a “compensação” como auxiliar! Ganhava um bilhete, meia-entrada,
para assistir, no CINEAC Trianon, comédias seriadas do Gordo e o Magro, além de
alguns filmes de “bang-bang”, gênero faroeste, febre de preferência popular
da época, atualmente ridículos e de gosto duvidoso. Na entrada, recebia sempre
um generoso saco de pipocas, naturalmente, sob o patrocínio do vovô Mingote.
O “Patinho Feio” desta
história, cresceu! Já aos 15 anos, foi trabalhar como vendedor/entregador de
assinaturas do Jornal do Brasil. O JB, durante anos, foi um dos mais importantes
veículos de comunicação no Brasil. Aos domingos, tornava-se o jornal mais
volumoso da cidade, obrigando a distribuição ser feita por meio de triciclo
cargueiro. Pedalar aquele trambolho, carregado de jornais, não era para
qualquer um! Na mesma ocasião, o jovem adolescente passou por radical
transformação física. A partir dos 13 anos, cresceu muito. Rapidamente passou
de esquálido a gorducho. Chegou a pesar mais de 85 kg; e tinha quase 1,80cm de
altura. Os moleques, na rua ou na escola, já não faziam graça com o Bertholdo! Passou
a ser respeitado! Temido!
Por força da
influência do avô Mingote, tão querido, o jovem aprendeu a pintar os primeiros
quadros a óleo. Porém, foi graças à vovó Olga, tão amada, com suas contações de
fábulas, que a pequena história infantil, “O Patinho Feio”, cumpriu sua função na
vida do Bertholdo!
Os clássicos da literatura
infantil são eternos. Cada um de nós, os mais velhos, terá guardado na
lembrança algumas dessas histórias, ouvidas à noite, como acalanto para dormir.
Foram muitos os sonhos iniciados, durante contos infantis, especialmente fábulas,
protagonizadas por animais que, tanto como os super-heróis de hoje, tinham
poderes mágicos, que marcaram, quase sempre, de forma positivamente nossa
infância. Você lembra? Qual era a sua historinha preferida? Quem as contava
para você?
Um dia, eu
prometo, vou lhes narrar aquela lá do Sul, a do “Negrinho do Pastoreio”!
Leia mais em: https://pinceisletras.blogspot.com/2023/05/primeiro-de-maio.html?m=1
Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é
Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da
Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de
Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos
eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de
setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas.
Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil
e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP;
MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional
de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em
pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no
Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal.
Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo
recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o
catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro
“O Diário de Lili Beth”, pela editora Videu – 2021; e colaborou com a Coluna
Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos
versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes.
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| Edição e Direção Geral Renato Galvão |



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