
Ilustração - Jornal Rio de Flores
Tempos estranhos..., é verdade! Meus quadros, geralmente, apresentam “narrativas” que pertenceram a um
cotidiano qualquer. Entretanto, não vou mentir, todos eles revelam situações
que me foram contadas, e que têm lá alguns acréscimos. Detalhes que eu mesmo
criei, segundo meu livre-arbítrio. Como se diz: “Quem conta um conto acrescenta
um ponto!”
As pessoas que olham minhas pinturas poderão
interpretá-las! Como? Isso já é outra questão; fica no limite da liberdade de
cada um...! Eu diria: cabe ao “cliente” sentir o “sabor” conforme prefira
mastigar a comida! Portanto, para alguns, poderá parecer doce, para outros, salgado, ou
até apimentado, mas não gostaria que fosse saboreado como um prato insosso.
Quero “servir”, tal como num restaurante
imaginário, um pouco dessa receita “Casa da Marquesa”. Quem dela já provou
saberá do que se trata! Espero que apreciem o tempero! Para essa historinha, do
meu “cardápio” pictórico, peguei emprestados os nomes dos personagens e
lugares, todos fictícios.
Podem ficar tranquilos, leitores! Aqui, vou destacar
apenas a figura da tal dona da Casa..., a Marquesa! As intimidades que alguém
possa ter deixado por lá, garanto, eu não revelarei! Qualquer semelhança com
sua vida é pura parecença mesmo!
Sou um “poeta anarquista dos pinceis”! Minha pintura é a arte da espontaneidade,
da liberdade e do autodidatismo autêntico e consciente!
Então, vamos conhecer a Casa de Marquesa?
Vamos conversar a respeito de uma atividade de
trabalho, considerada como das mais antiga que se tem notícia. Trata-se da oferta
ou venda do corpo, como prazer sexual!
Assunto esse muitas vezes apagado nas conversas,
ocultado injustamente e acusado de ser imoral e ilegal. Não vou julgar as
razões disso acontecer; talvez pela ausência de informação mais científica ou por
falta de uma melhor regulamentação profissional.
Sem brincadeiras! Atualmente, parece que a
atividade está em franca valorização social, nas rodas frequentadas por pessoas
mais abastadas. Nas esferas do poder político... (?), sem comentários! Naturalmente,
trata-se de tema obrigatório, desde que não se usem denominações depreciativas como
referência a essa “arte”.
Entretanto, quando o assunto é tratado nas
classes mais pobres, a classificação, culturalmente, fica mesmo como sendo “prostituição”;
e continua a ser desrespeitada e subvalorizada. O preconceito é tão antigo que,
em algumas situações, é dito como sendo..., “tema bíblico”!
Foi assim que eu aceitei o desafio de pintar as
três telas. Liberdade e muito respeito!
Minhas pinceladas buscaram contar a história que
era e é, até os dias de hoje, um drama de vida, para muitas famílias humildes,
especialmente aquelas que vivem no sertão brasileiro. Pretendi mostrar como é possível oferecer, por
meio da arte ingênua, uma interface criativa, capaz de ressaltar, numa simples
pintura, a vida cotidiana que pode ser promotora de amor e compaixão, apesar do
sofrimento causado.
Minhas histórias, contam dramas reais, mas que,
muitas vezes, ficam ocultos da sociedade, numa forma de evitar o
constrangimento, tanto para os envolvidos como para falsos puritanos.
Isoladamente, cada uma das minhas telas pouco
representa. Tenho quase certeza de que elas jamais ganhariam espaço na parede
de uma sala de estar. O preconceito relativo ao tema seria suficiente para impedir
isso! Felizmente, os originais encontram-se,
como obras premiadas, expostos no acervo do Museu Municipal de Arte Naïf, da
cidade de São José do Rio Preto/SP, desde 2009.
Os estudiosos sabem que cidades, mesmo as grandes,
cresceram sem o competente planejamento urbano; tiveram origem num pequeno
agrupamento de casas, localizadas de forma aleatória, em algum entroncamento de
estradinhas do interior. Eram tão pequenas que se dava o nome de corrutelas.
Um grupo de pessoas vai se juntando num
determinado local, criando laços de amizades e interesse comum. No início, para
a vida comunitária crescer, falta o básico!
Determinadas aldeias, por mera casualidade ou
sorte, prosperam e se desenvolvem. Nessa urbanização primitiva, parece haver
algum indicador para o sucesso. Por exemplo, um fator primordial: deve existir
fonte segura de abastecimento de água potável, além de produção de alimentos.
Encontrando algumas garantias para a
sobrevivência, as pessoas dão início ao esforço comum; acredita-se que a
pequena vila irá crescer, quando surgem alguns tipos de serviços, destinados a
garantir vida econômica na localidade.
Para encurtar, igualmente, há necessidade da
presença de algum tipo de liderança, capaz de “pôr ordem na casa”. Uma praça
pública, com um bonito coreto, também tem sido um indicador desse crescimento
da vila que aspira chegar a ser cidade. Caso consiga ter uma banda de música,
significa que já pode aspirar ser elevada a vilarejo ou pequena cidade.
Assim, do nada, aparecem indicadores importantes!
A velha capelinha, já tem uma torre, para badalar as horas. Surgem a seguir: o
Cemitério; a Escola Municipal; o Mercado do Produtor; etc. O povo do lugar se
sente orgulhoso e feliz! Quem nasce por lá já é reconhecido pela denominação de
sua origem!
Tem um indicador ao qual poucas pessoas gostam de
fazer referência! Pode duvidar? Pode! Mas é assim mesmo, lá no interior,
naquela biboca perdida no mato; tem algo que “surge do nada” e dá ao lugar uma
importância sem limites! Sabe o que é? É a primeira casa de tolerância, que
passa a funcionar como prostíbulo, reconhecido e tolerado! Um Bordel, também
denominado como “Casa-da-Luz-Vermelha”!
Essa era a condição, daquele pequeno estabelecimento!
Ficava discretamente distante da praça do centro! Era lá, no final de uma ruela
afastada, na periferia, bem pertinho de onde começavam os pastos de gado. Todos
conheciam pelo nome: Casa de Marquesa. O caminho não tinha placas de indicação!
Não! Mas, tinha na frente uma luz vermelha. À noite era bem visível de longe, servia
para indicar a porta de entrada.
Eu não a conheci pessoalmente a casa! Juro!
Porém, diziam os mais antigos: é propriedade da cafetina mais respeitada da “região”!
E completavam assim: - “Coisa antiga...!” Desde a juventude da Marquesa, mulher
da vida, que chefiava o estabelecimento.
“Região”? Aquele era o modo de dizer que era a
mais respeitada na Zona! Era dessa forma direta, como as pudicas senhoras
faziam referência ao local, “zona”! Quando jovem, ainda com corpo de menina,
foi expulsa de casa, pelo pai, cabra sertanejo de coração duro e firme; e que
não admitiu ver a filha engravidar, fora de um casamento feito nos padrões
tradicionais.
Tentaram encurralar o responsável pelo feito!
Parece, conforme diziam as fofoqueiras, que era mais um daqueles causos do
Coronel! Portanto, casar a filha, ficou complicado! Se fosse verdade o que
contaram ...(?), nem mesmo na porta da delegacia o casório poderia ser
realizado!
Falavam também que ela, cujo nome poucos sabiam
dizer, após ser recolhida na pracinha da vila, já às vésperas do parto, foi
“bondosamente” protegida, junto com o bebê, num cômodo da casa da tal de Zezé, uma
mulher que se dizia comadre do Coronel. O velho todo poderoso, fazendeiro rico,
era daqueles que tudo podia e tudo mandava no lugarejo. Segundo o padre contava
sussurrando, no fundo na sacristia, teria nascido uma menininha, batizada a
pedido do tal Coronel, na condição de filha ilegítima dele. Mais um caso contado,
mas não provado, na longa lista de “afilhados”, que acabava engrossando a má
fama do Padre, junto às beatas.
Assim sendo, nada se comentava sobre os detalhes
da vida daquela “menina”, agora já uma cafetina! Era então, a dona do bordel da
vila! Ela sempre conseguiu recursos para manter-se; e logo juntou alguns
trocados. Com as economias realizou um sonho: reformou e equipou a casa, lá do
final daquela rua suspeita!
O povo dava à simples casinha o nome de “Casa-da-Marquesa”,
numa referência maldosa à “nobreza” da proprietária. Também, quem iria se
arriscar a contrariar ou ofender a protegida do Coronel?
Melhor seguir o conselho do padre: “Cala-te
boca!”.
Tendo vivido, ela própria, o drama da gravidez
indesejada na adolescência, Marquesa passou a ser uma espécie de “destino”,
para todas as moças que passavam o mesmo drama! Acolhia as infelizes, jovens grávidas,
muitas delas vindas de vilas distantes! Oferecia cama, comida e segurança; em
troca pedia apenas a prestação de alguns “servicinhos” na casa!
As que não apresentavam atrativos nas formas
físicas e na saúde, eram mantidas nas atividades de trabalho doméstico. Mas na
rua..., ninguém mais ficava! Para tanto, além de ampla sala de estar e cinco
quartos, dispunha de um banheiro grande, além da privada do lado de fora. Para
os padrões do lugar, era como um casarão; e lá, bem no fundo do corredor, apartada
do movimento dos quartos, uma cozinha enorme, com fartura de alimentos e o
grande fogão caipira. O fogo crepitava, desde as cinco da manhã, até às dez da
noite, sempre servindo a todos a boa alimentação da roça.
Nessa parte da casa, viviam os filhos das quengas!
(No bom sentido!) Eram bem tratados e não havia qualquer tipo de discriminação
com as crianças. Sob a guarda do jagunço Severino, cabra de confiança, indicado
pelo Coronel, tudo estava seguro. Lá estava sempre presente a “vovó”, aquela
velhinha simpática, já “aposentada” das lidas com os clientes. A ela, “vovó”,
cabia zelar atentamente pela criançada, como se estivesse na escola.
Na cozinha e no quintal, principalmente, reinava um ambiente de grande respeito e seriedade familiar; não havia qualquer chance para baixarias ou falta de educação. Nesses aspectos, a Marquesa era ainda mais exigente! Como numa família matriarcal, tudo era severamente controlado pela “mãe-Marquesa”! Vale lembrar que, embora austera com mulheres e clientes, ela sempre teve muito carinho e a maior paciência e compreensão com as crianças.
| Imagem 1 - A cozinha da Casa de Marquesa por Rocha Maia |
Pelos fundos da casa, jamais algum cliente foi recebido. Pelo
contrário, para evitar misturar as coisas, alguns que tentaram
“forçar-a-barra”, para entrar pela porta dos fundos, foram severamente
alertados, pela própria Marquesa. Ela tinha uma habilidade sem igual, para
admoestar os teimosos, sem chegar a perder os clientes. Afinal de contas, como
conhecedora de certos “segredinhos” de todos eles, a Marquesa tinha um bom
argumento secreto, para resolver na paz as querelas e discussões.
Dessa forma, a porta da frente da Casa de Marquesa sempre estava
aberta ao atendimento de todos, desde que cumprissem com as obrigações do
pagamento adiantado, muita higiene e carinho com as meninas. Para atender a
todos, para valer mesmo, ela mantinha uma “equipe” prontinha; no mínimo eram
três “raparigas” de boa apresentação, cheirosas e bem-educadas.
Educação, esse era um item que ela cuidava pessoalmente, para não dar a menor possibilidade de reclamação.
| Imagem 2 - A sala da casa de Marquesa por Rocha Maia |
Primeiro, elas deviam aprender palavras mágicas de convivência social: muito prazer; muito obrigada, desculpe, por favor etc. Depois ensinava tudo sobre a higiene pessoal, necessária para o tipo de atividade profissional delas, tanto no antes, no durante, como pós atendimento, coisa que não podia ser feita de qualquer maneira não! Ela orientava também as meninas na recepção, que era realizada na sala, quando elas poderiam demonstrar os seus dotes atrativos aos clientes.
Para completar, havia sempre algum tempo, no final do trabalho,
para uma breve oração! Coisa feita de forma discreta, quando as “moças” recebiam
a orientação espiritual, razão pela qual a Marquesa nunca deixou de ter um
exemplar da Bíblia Sagrada sobre a mesa, local que servia como seu posto de
trabalho no gerenciamento da casa. A
decoração do ambiente era austera; e nada permitia aos clientes esquecerem de
que estavam numa casa de respeito e seriedade profissional. Era a Casa de
Marquesa!
Uma única exceção de preferência no atendimento existia na casa. Era o dia reservado ao Coronel! Quando chegava o protetor do bordel, o homem mais importante da região, naquela sala só estavam as meninas selecionadas e, naturalmente, a Marquesa.
| Imagem 3 - Um quarto da casa de Marquesa por Rocha Maia |
Finalizando, feita a escolha da predileta, o mais importante cliente da Casa se dirigia ao quarto. A porta era fechada! A privacidade era total! Em respeito à privacidade do Coronel, deixaremos de contar o que acontecia lá dentro. Fica então a criatividade de cada um, como responsável e suficiente, para concluir a narrativa. As pessoas que olham minhas pinturas poderão interpretá-las! Como? Isso já é outra questão; fica no limite da liberdade de cada um...! Eu diria: cabe ao “cliente” sentir o “sabor” conforme prefira mastigar a comida!
Portanto, para uns poderá parecer doce, para
outros salgado, quem sabe até apimentado, mas não gostaria de que fosse
percebido como um prato insosso.



Fantástico. Muito real.
ResponderExcluirMuito agradecido por seu comentário. Sim, muito real!
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