Declamação de poemas.
“Declamar é recitar um poema em voz alta”, como fazia minha avó Olga!
Não sei se cabe fazer um comentário! Onde estão? Parece
que desapareceram concursos de declamação e récitas de poesias! Como revelar
talentos nesse gênero tão importante de “dizer” poemas? Esse negócio de ler
poesia, sem uma boa interpretação de conteúdo, sem mensagem lírica, sem aquela
competente declamação, fica parecendo como quando ouvimos belas composições
musicais, mas nas vozes de amadores, intérpretes fuleiros. Pena que retiraram
da educação, nas escolas de hoje, o ensino da arte da declamação. Deve ser por
isso que poucos se dispõe a ouvir uma poesia!
Não sei o que comentar sobre a quase ausência de
declamadores no Brasil. Posso estar errado na minha avaliação! Talvez, nas
escolas de artes dramáticas ou cênicas, ainda se ensine essa forma de dizer poemas!
Não posso avaliar; falo isso apenas por minha própria percepção. Sei que, em
feiras típicas no sertão nordestino, ainda se pode ouvir um ou outro cantador,
recitando histórias de cordel, naquele autêntico “aboio” de vaqueiros.
Quando eu era criança, lembro-me de ter ouvido muito a
exclamação: “Silêncio, por que vou declamar ...!”. Vovó nos ensinou a silenciar
e ouvir, com respeito e gratidão, os versos de bons poetas. Nem sempre nossos
gostos combinavam; mas, no final, aquilo que ela declamava, sempre agradava!
Parecia que iria ser aborrecido! Entretanto, para
espectadores pequenos como eu, era uma ótima diversão. Não tinha esse negócio
de Internet, celulares e outras parafernálias tecnológicas de agora. Esse
palavreado pobre de comunicação da garotada de hoje, “tipo isso”, “oh meu”, “tipo
aquilo”, “véio”, “mano”, “bicho”, “irado”; “papo-reto” ou “fala-sério” etc.?
Não havia não! Muitas vezes, palavras e figuras poéticas recitadas não eram de
fácil compreensão, o que obrigava logo as moças e os rapazes a falarem
corretamente; as palavras e frases eram convertidas em emoção verdadeira.
Entretanto, se as pessoas descambavam para um vocabulário rasteiro, de pouco
lustro e baixa educação, a turma sabia reagir. Bastava um pouco de paciência e
atenção, logo as estrofes se tornavam emocionantes e vibrantes, graças à forma
graciosa e natural, como as letras das músicas eram escritas com poesias. Até
famosos sambas e pagodes podiam ser recitados! Mas deixa a música pra depois!
Retorno aos tempos de vovó! Lembro de um poema especial!
Sempre me provocava lágrimas, tão profundo era o “mergulho”, que a locução
adjetiva emprestava aos versos bem interpretados. A forma dramática, como as
estrofes foram escritas originalmente nesses versos, somada à leveza oral de minha
adorável velhinha, ainda que escrito numa forma muito antiga do português,
ajudavam a ampliar as emoções. Recomendava ela: “Torna-se importante dizer e
ouvir com calma, muita paciência, o poema que eu escolhi! Trata-se de uma
consagrada obra literária do poeta lusitano Acácio Antunes, intitulada “O
Estudante Alsaciano”.
Dessa forma, assim tão doméstica, me ensinou a gostar de
ouvir poesias! Ela havia aprendido a declamar na Escola Normal, no Rio de
Janeiro. Certamente, vovó foi uma excelente aluna! Mas isso de saber dizer um
texto ela não me ensinou! Na verdade, eu não domino a arte de dizer poemas! Tal
como na música e na literatura poética, sou simplesmente um apreciador das
mensagens. Nada sei da escrita ou da composição poética, apenas aprecio a melodia,
pelo bom som e a boa rima.
Como recordação, pintei um quadro, cujo título diz tudo:
“A casa de vovó!”

Figura 01 - Tela: "A casa da vovó" - Por Rocha Maia
Reuníamo-nos na sala de visitas. Eu adorava brincar
sobre um antigo tapete, pertinho de uma cômoda de jacarandá brasileiro, estilo
D. José. Até hoje, esse móvel está comigo! Vovó, sempre cheirosa e arrumadinha,
logo pedia a atenção dos ouvintes. Proferia, então, a tradicional maneira de
mandar calar a boca aos barulhentos da casa: “Now, shut up!”. Ela era direta e
enérgica com aquele aviso: “Agora, calados!”. Vovó havia sido educada, pelo pai
sueco e mãe irlandesa. Junto com sete irmãos, todos se comunicavam em inglês! Mas
foi em bom e escorreito português que nos ensinou a valorizar a boa poesia.
Essa opção, pelo idioma camoniano, tinha uma razão fácil
de se entender. Para não ficar para “titia”,
como chamavam uma solteirona na família, vovó optou por casar-se com um senhor
português, fato esse que sepultou o uso de idiomas estrangeiros na vida da
família; e nos conferiu alguma identidade cultural com as coisas “d’além-maire”
(forçando aqui o sotaque do Minho - Norte de Portugal).
Dona Olga, invariavelmente, abria sua declamação, com
uma rima engraçada, em alemão ou inglês, porque isso lhe dizia, muito
pessoalmente, sobre memórias dos tempos de menina. Coisas de recordação da
infância, própria de quem nasceu filha de pais estrangeiros. Ela foi estudante
do primário da escola alemã, no Rio de Janeiro, lá pelo início do século
passado. De resto, vovó era “brasileiríssima”!
Vale lembrar que, ao final da Primeira Grande Guerra
Mundial (1918), havia no Brasil um sentimento negativo, muito forte, contra
europeus, notadamente alemães. Na rua, quando no trajeto a passeio, andando a
pé atrás dela, surgiam bandos de moleques. Corriam em algazarra, ameaçando e entoando
palavras, numa forma de xenofobia, que visavam hostilizar a menina lourinha.
Gritavam, grosseiros: “Alemão, alemão..., caga na mão, come com pão! ALEMÃO,
CAGA NA MÃO, COME COM PÃO!”
Criança é mesmo um bichinho ingênuo! Todas as vezes que
vovó nos contava isso, rindo muito da situação, nós acabávamos por atender à
ordem: - “Calados!”. Todos fazíamos silêncio! Queríamos ouvir atentamente o que
ela iria recitar:
O Estudante
Alsaciano – Acácio Antunes
Antigamente, a escola
era risonha e franca.
Do velho professor as
cans, a barba branca,
Infundiam respeito,
impunham simpatia,
Modelando as feições
do velho, que sorria
E era como criança em
meio das crianças.
Como ao pombal
correndo em bando as pombas mansas,
Corriam para a escola;
e nem sequer assomo
De aversão ou
desgosto, ao ir para ali como
Quem vae para uma
festa. Ao começar o estudo,
Eles, sem um pesar,
abandonavam tudo,
E submissos, joviais,
nos bancos em fileiras,
Iam todos sentar-se em
frente das carteiras,
Atenta, gravemente —
uns pequeninos sábios.
Uma frase a animar
aquele bando imbele,
Ia ensinando a este,
ia emendando àquele,
De manso, com carinho
e paternal amor.
Fazendo um rápido
intervalo da declamação, repetia minha avó, a recomendação inicial: “Now, shut
up!”, dando continuidade, logo a seguir, ao trecho mais emocionante do poema de
Acácio.
Por fim, tudo mudou.
Agora o professor,
Um grave pedagogo, é
austero e conciso;
Nunca os lábios lhe
abriram a sombra d’um sorriso
E aos pequenos mudou
em calabouço a escola
Pobres aves, sem dó
metidas na gaiola!
Lá dentro, hoje, o
francês é língua morta e muda:
Unicamente o alemão
ali se fala e estuda,
São alemães o mestre,
os livros e a lição;
A Alsácia é alemã; o
povo é alemão.
Como na própria pátria
é triste ser proscrito!
Frequentava também a
escola um rapazito
De severo perfil,
enérgico, expressivo,
Pálido, magro, o olhar
inteligente e vivo
— Mas de intima
tristeza aquele olhar velado
Modesto no trajar, de
luto carregado...
— Pela pátria talvez!
— Doze anos só teria.
O mestre, d’uma vez,
chamou-o à geografia:
— "Dize-me cá,
rapaz... Que é isso? estás de luto?
Quem te morreu?"
— "Meu pai, no
último reduto,
Em defesa da
pátria!"
— "Ah! sim, bem
sei, adiante...
Tu tens assim um ar de
ser bom estudante.
Quais são as
principais nações da Europa? Vá!"
— "As principais
nações são... a França..."
— "Hein? que é
lá?...
Com que então, a
primeira a França! Bom começo!
De todas as nações,
pateta, que eu conheço,
Aquela que mais vale,
a que domina o mundo,
Nas grandes concepções
e no saber profundo,
Em riqueza e
esplendor, nas letras e nas artes,
Que leva o seu domínio
às mais remotas partes,
A mais nobre na paz, a
mais forte na guerra,
D’onde irradia a
ciência a iluminar a terra,
A maior, a mais bela,
a que das mais desdenha,
Fica-o sabendo tu,
rapaz, é a Alemanha!"
No meio da apresentação
vovó repetia:“Now, shut up!” Assim vovó, pondo ordem na plateia, destacava que
iria terminar, com um reforço no clímax do poema!
Eu, todas às vezes (confesso
que... até hoje), me emocionava, chegando a soluçar no final, com muitas
lágrimas a escorrer dos meus olhos!
Ele sorriu com ar desprezador
e altivo,
A cabeça agitou n’um
gesto negativo,
E tornou com voz
firme:
— "A França é a
primeira!"
O mestre, furioso,
ergue-se da cadeira,
Bate o pé, e uma praga
enérgica lhe escapa.
— "Sabes onde
está a França? Aponta-m’a no mapa!"
O aluno ergue-se
então, os olhos fulgurantes,
O rosto afogueado; e
enquanto os estudantes
Olham cheios de
assombro aquele destemido,
Ante o mestre,
nervoso, audaz e comovido,
Tímido feito herói,
pigmeu tornado athleta,
Desaperta, febril, a
sua blusa preta,
E batendo no peito,
impávida, a criança
Exclama:
— "É aqui dentro!
aqui é que está a França! "
Texto: Rocha Maia
Tela (Figura 01): Rocha Maia
Montagem: Jornal Rio de Flores
Luiz Roberto da Rocha Maia – nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e Brasília e, atualmente, em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta anos de atividade cultural.
Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é
Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da
Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de
Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos
eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de
setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas.
Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil
e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP;
MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional
de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em
pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no
Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal.
Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo
recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o
catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro
“O Diário de Lili Beth”, pela editora Videu – 2021; e colaborou com a Coluna
Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos
versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes.

Edição e Direção Geral
Renato Galvão
.png)
.png)
Que maravilha, Rocha Maia! Em belo e apurado texto você honra e reverencia sua avó, sua infância, os bons e saudáveis hábitos de outrora. Deliciosas recordações. Éramos felizes e não sabíamos, nem desconfiávamos das mudanças que o mundo sofreria com tamanha transformação em nome do "progresso". Parabéns pelo texto e pela obra retratando todo amor e atenção que recebeu de sua avó. Grande e fraternal abraço
ResponderExcluirEmbora sem poder identificar a autoria do belo comentário, agradeço muito pelas gentilezas e críticas pertinentes. Fraterno abraço
ExcluirPrezado (a) Amigo (a). Logo abaixo deste nosso comentário, você poderá clicar em "seguir" e nos dá a honra de tê-lo em meio aos nossos seguidores. Naturalmente, não é obrigatório, mas seria de grande valia para nos ajudar a fomentar Cultura, Artes e nossos queridos Artistas. Estamos felizes por sua presença em nosso humilde Jornal. Seja bem-vindo (a). Agradecemos.
ExcluirRealmente saber declamar uma poesia com propriedade é necessário habilidade e talento.
ResponderExcluirAdorei a sua matéria.
Seria maravilhoso se houvesse esse incentivo nas escolas do país.
Jefferson Pontes, fico muito feliz com sua opinião e apoio à ideia. Na verdade, creio eu, muitas escolas já possuem, na grade curricular, o ensino de teatro amador ou artes dramáticas. Isso seria a porta aberta para essa modalidade de talento, a declamação, que eu considero como complementar ao fomento da literatura nas escolas.
ResponderExcluir