quarta-feira, 19 de abril de 2023

Declamação de poemas.

 “Declamar é recitar um poema em voz alta”, como fazia minha avó Olga!

Não sei se cabe fazer um comentário! Onde estão? Parece que desapareceram concursos de declamação e récitas de poesias! Como revelar talentos nesse gênero tão importante de “dizer” poemas? Esse negócio de ler poesia, sem uma boa interpretação de conteúdo, sem mensagem lírica, sem aquela competente declamação, fica parecendo como quando ouvimos belas composições musicais, mas nas vozes de amadores, intérpretes fuleiros. Pena que retiraram da educação, nas escolas de hoje, o ensino da arte da declamação. Deve ser por isso que poucos se dispõe a ouvir uma poesia!

Não sei o que comentar sobre a quase ausência de declamadores no Brasil. Posso estar errado na minha avaliação! Talvez, nas escolas de artes dramáticas ou cênicas, ainda se ensine essa forma de dizer poemas! Não posso avaliar; falo isso apenas por minha própria percepção. Sei que, em feiras típicas no sertão nordestino, ainda se pode ouvir um ou outro cantador, recitando histórias de cordel, naquele autêntico “aboio” de vaqueiros.

Quando eu era criança, lembro-me de ter ouvido muito a exclamação: “Silêncio, por que vou declamar ...!”. Vovó nos ensinou a silenciar e ouvir, com respeito e gratidão, os versos de bons poetas. Nem sempre nossos gostos combinavam; mas, no final, aquilo que ela declamava, sempre agradava!

Parecia que iria ser aborrecido! Entretanto, para espectadores pequenos como eu, era uma ótima diversão. Não tinha esse negócio de Internet, celulares e outras parafernálias tecnológicas de agora. Esse palavreado pobre de comunicação da garotada de hoje, “tipo isso”, “oh meu”, “tipo aquilo”, “véio”, “mano”, “bicho”, “irado”; “papo-reto” ou “fala-sério” etc.? Não havia não! Muitas vezes, palavras e figuras poéticas recitadas não eram de fácil compreensão, o que obrigava logo as moças e os rapazes a falarem corretamente; as palavras e frases eram convertidas em emoção verdadeira. Entretanto, se as pessoas descambavam para um vocabulário rasteiro, de pouco lustro e baixa educação, a turma sabia reagir. Bastava um pouco de paciência e atenção, logo as estrofes se tornavam emocionantes e vibrantes, graças à forma graciosa e natural, como as letras das músicas eram escritas com poesias. Até famosos sambas e pagodes podiam ser recitados! Mas deixa a música pra depois!

Retorno aos tempos de vovó! Lembro de um poema especial! Sempre me provocava lágrimas, tão profundo era o “mergulho”, que a locução adjetiva emprestava aos versos bem interpretados. A forma dramática, como as estrofes foram escritas originalmente nesses versos, somada à leveza oral de minha adorável velhinha, ainda que escrito numa forma muito antiga do português, ajudavam a ampliar as emoções. Recomendava ela: “Torna-se importante dizer e ouvir com calma, muita paciência, o poema que eu escolhi! Trata-se de uma consagrada obra literária do poeta lusitano Acácio Antunes, intitulada “O Estudante Alsaciano”.

Dessa forma, assim tão doméstica, me ensinou a gostar de ouvir poesias! Ela havia aprendido a declamar na Escola Normal, no Rio de Janeiro. Certamente, vovó foi uma excelente aluna! Mas isso de saber dizer um texto ela não me ensinou! Na verdade, eu não domino a arte de dizer poemas! Tal como na música e na literatura poética, sou simplesmente um apreciador das mensagens. Nada sei da escrita ou da composição poética, apenas aprecio a melodia, pelo bom som e a boa rima.  

Como recordação, pintei um quadro, cujo título diz tudo: “A casa de vovó!”

Figura 01 - Tela: "A casa da vovó" - Por Rocha Maia 

Reuníamo-nos na sala de visitas. Eu adorava brincar sobre um antigo tapete, pertinho de uma cômoda de jacarandá brasileiro, estilo D. José. Até hoje, esse móvel está comigo! Vovó, sempre cheirosa e arrumadinha, logo pedia a atenção dos ouvintes. Proferia, então, a tradicional maneira de mandar calar a boca aos barulhentos da casa: “Now, shut up!”. Ela era direta e enérgica com aquele aviso: “Agora, calados!”. Vovó havia sido educada, pelo pai sueco e mãe irlandesa. Junto com sete irmãos, todos se comunicavam em inglês! Mas foi em bom e escorreito português que nos ensinou a valorizar a boa poesia.

Essa opção, pelo idioma camoniano, tinha uma razão fácil de se entender. Para não ficar para “titia”, como chamavam uma solteirona na família, vovó optou por casar-se com um senhor português, fato esse que sepultou o uso de idiomas estrangeiros na vida da família; e nos conferiu alguma identidade cultural com as coisas “d’além-maire” (forçando aqui o sotaque do Minho - Norte de Portugal).

Dona Olga, invariavelmente, abria sua declamação, com uma rima engraçada, em alemão ou inglês, porque isso lhe dizia, muito pessoalmente, sobre memórias dos tempos de menina. Coisas de recordação da infância, própria de quem nasceu filha de pais estrangeiros. Ela foi estudante do primário da escola alemã, no Rio de Janeiro, lá pelo início do século passado. De resto, vovó era “brasileiríssima”!

Vale lembrar que, ao final da Primeira Grande Guerra Mundial (1918), havia no Brasil um sentimento negativo, muito forte, contra europeus, notadamente alemães. Na rua, quando no trajeto a passeio, andando a pé atrás dela, surgiam bandos de moleques. Corriam em algazarra, ameaçando e entoando palavras, numa forma de xenofobia, que visavam hostilizar a menina lourinha. Gritavam, grosseiros: “Alemão, alemão..., caga na mão, come com pão! ALEMÃO, CAGA NA MÃO, COME COM PÃO!”

Criança é mesmo um bichinho ingênuo! Todas as vezes que vovó nos contava isso, rindo muito da situação, nós acabávamos por atender à ordem: - “Calados!”. Todos fazíamos silêncio! Queríamos ouvir atentamente o que ela iria recitar:

O Estudante Alsaciano – Acácio Antunes

Antigamente, a escola era risonha e franca.

Do velho professor as cans, a barba branca,

Infundiam respeito, impunham simpatia,

Modelando as feições do velho, que sorria

E era como criança em meio das crianças.

Como ao pombal correndo em bando as pombas mansas,

Corriam para a escola; e nem sequer assomo

De aversão ou desgosto, ao ir para ali como

Quem vae para uma festa. Ao começar o estudo,

Eles, sem um pesar, abandonavam tudo,

E submissos, joviais, nos bancos em fileiras,

Iam todos sentar-se em frente das carteiras,

Atenta, gravemente — uns pequeninos sábios.

Uma frase a animar aquele bando imbele,

Ia ensinando a este, ia emendando àquele,

De manso, com carinho e paternal amor.

Fazendo um rápido intervalo da declamação, repetia minha avó, a recomendação inicial: “Now, shut up!”, dando continuidade, logo a seguir, ao trecho mais emocionante do poema de Acácio.

 

Por fim, tudo mudou. Agora o professor,

Um grave pedagogo, é austero e conciso;

Nunca os lábios lhe abriram a sombra d’um sorriso

E aos pequenos mudou em calabouço a escola

Pobres aves, sem dó metidas na gaiola!

Lá dentro, hoje, o francês é língua morta e muda:

Unicamente o alemão ali se fala e estuda,

São alemães o mestre, os livros e a lição;

A Alsácia é alemã; o povo é alemão.

Como na própria pátria é triste ser proscrito!

Frequentava também a escola um rapazito

De severo perfil, enérgico, expressivo,

Pálido, magro, o olhar inteligente e vivo

— Mas de intima tristeza aquele olhar velado

Modesto no trajar, de luto carregado...

— Pela pátria talvez! — Doze anos só teria.

O mestre, d’uma vez, chamou-o à geografia:

— "Dize-me cá, rapaz... Que é isso? estás de luto?

Quem te morreu?"

— "Meu pai, no último reduto,

Em defesa da pátria!"

— "Ah! sim, bem sei, adiante...

Tu tens assim um ar de ser bom estudante.

Quais são as principais nações da Europa? Vá!"

— "As principais nações são... a França..."

— "Hein? que é lá?...

Com que então, a primeira a França! Bom começo!

De todas as nações, pateta, que eu conheço,

Aquela que mais vale, a que domina o mundo,

Nas grandes concepções e no saber profundo,

Em riqueza e esplendor, nas letras e nas artes,

Que leva o seu domínio às mais remotas partes,

A mais nobre na paz, a mais forte na guerra,

D’onde irradia a ciência a iluminar a terra,

A maior, a mais bela, a que das mais desdenha,

Fica-o sabendo tu, rapaz, é a Alemanha!"

 

No meio da apresentação vovó repetia:“Now, shut up!” Assim vovó, pondo ordem na plateia, destacava que iria terminar, com um reforço no clímax do poema!

Eu, todas às vezes (confesso que... até hoje), me emocionava, chegando a soluçar no final, com muitas lágrimas a escorrer dos meus olhos!

 

Ele sorriu com ar desprezador e altivo,

A cabeça agitou n’um gesto negativo,

E tornou com voz firme:

— "A França é a primeira!"

O mestre, furioso, ergue-se da cadeira,

Bate o pé, e uma praga enérgica lhe escapa.

— "Sabes onde está a França? Aponta-m’a no mapa!"

O aluno ergue-se então, os olhos fulgurantes,

O rosto afogueado; e enquanto os estudantes

Olham cheios de assombro aquele destemido,

Ante o mestre, nervoso, audaz e comovido,

Tímido feito herói, pigmeu tornado athleta,

Desaperta, febril, a sua blusa preta,

E batendo no peito, impávida, a criança

Exclama:

— "É aqui dentro! aqui é que está a França! "

Texto: Rocha Maia

Tela (Figura 01): Rocha Maia

Montagem: Jornal Rio de Flores


Luiz Roberto da Rocha Maia – nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e Brasília e, atualmente, em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta anos de atividade cultural.

Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas.

Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP; MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal.

Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro “O Diário de Lili Beth”, pela editora Videu – 2021; e colaborou com a Coluna Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes. 

 

Edição e Direção Geral
Renato Galvão


 

5 comentários:

  1. Que maravilha, Rocha Maia! Em belo e apurado texto você honra e reverencia sua avó, sua infância, os bons e saudáveis hábitos de outrora. Deliciosas recordações. Éramos felizes e não sabíamos, nem desconfiávamos das mudanças que o mundo sofreria com tamanha transformação em nome do "progresso". Parabéns pelo texto e pela obra retratando todo amor e atenção que recebeu de sua avó. Grande e fraternal abraço

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    1. Embora sem poder identificar a autoria do belo comentário, agradeço muito pelas gentilezas e críticas pertinentes. Fraterno abraço

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    2. Prezado (a) Amigo (a). Logo abaixo deste nosso comentário, você poderá clicar em "seguir" e nos dá a honra de tê-lo em meio aos nossos seguidores. Naturalmente, não é obrigatório, mas seria de grande valia para nos ajudar a fomentar Cultura, Artes e nossos queridos Artistas. Estamos felizes por sua presença em nosso humilde Jornal. Seja bem-vindo (a). Agradecemos.

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  2. Realmente saber declamar uma poesia com propriedade é necessário habilidade e talento.
    Adorei a sua matéria.
    Seria maravilhoso se houvesse esse incentivo nas escolas do país.

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  3. Jefferson Pontes, fico muito feliz com sua opinião e apoio à ideia. Na verdade, creio eu, muitas escolas já possuem, na grade curricular, o ensino de teatro amador ou artes dramáticas. Isso seria a porta aberta para essa modalidade de talento, a declamação, que eu considero como complementar ao fomento da literatura nas escolas.

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