quinta-feira, 6 de abril de 2023

  


Já me perguntaram se eu havia lido todos os livros que precisava para construir o conhecimento que um professor de Literatura precisa e, constrangida, eu disse que não. Reforcei que morreria e jamais conseguiria dar conta daquilo que existe no mundo sobre conhecimento literário.

Lembro-me que, anos atrás, professores da Universidade de Moscou estiveram na minha cidade, num intercâmbio com uma faculdade local, que atende alunos na área da Administração, do Direito e afins, eles, ao final da sua fala, procuraram-me, falando em inglês (eu não falo em inglês com fluência), porque, diante das minhas perguntas feitas ao longo das palestras, acreditaram que eu conhecia Literatura russa (que constrangimento, ainda que os temas que envolvem o ser humano sejam semelhantes em todo o mundo, a grandiosa, a poderosa, a magnífica Literatura russa é-me quase desconhecida).

Essas histórias vieram à mente ao preparar um material sobre duas figuras de linguagem caídas em desgraça nos últimos tempos, os tempos de polarização, ódio e intolerância. Meus alunos de ensino médio diziam que eu era irônica, debochada e “arriada” e isso era um ponto positivo na avaliação deles, dinamizava as minhas aulas. Hoje em dia, sou xingada, ofendida porque, segundo dizem, sou debochada, sou irônica diante de diferentes situações. Por outro lado, entre alguns professores nos tempos em que também lecionava no ensino médio, frequentemente, dizia-se que eu falava por metáforas e era necessário estar atento à minha fala para compreender-me, eis que também se tratava de um elogio, eu detinha recursos de linguagem que não permitiam que a minha fala fosse monótona, enfadonha. Na universidade em que atuava, meus colegas chamavam-me “antena parabólica”, porque conseguia entender as sutilezas das falas dos nossos superiores. Sim, e daí?

Existe uma passagem no romance “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, que me define: “Não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. Brás Cubas está afirmando que não teve filhos e que, portanto, não é responsável pela perpetuação da miserabilidade do espírito humano: preconceituoso, mesquinho etc. e tal. Ironia ao extremo.

Mas, no mesmo romance, há outra passagem que me é fascinante: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”.

O narrador está fazendo referência a uma mulher que conheceu (não vou entrar em detalhes sobre a relação entre ambos) e, em sua clássica e corrosiva ironia, deixa expresso o interesse financeiro em que se baseou a relação. Se é uma mulher leviana ou se é uma prostituta que se sustenta do dinheiro de homens que lhe agenciam, ela precisa de novos amantes que lhe garantam uma vida, minimamente, confortável. Brás Cubas ironiza a si mesmo. Tolo.

Pode ser lida também como uma ironia em relação à sociedade da época, baseada em relações “amorosas” que garantissem um bom dote para a família da moça – se o homem não pudesse sustentá-la, adeus “amor eterno”.

Eis a metáfora: Marcela metaforiza a sociedade brasileira no final dos oitocentos (1800), em que os casamentos eram feitos por interesse, mas também lembra que a traição, o adultério eram práticas comum entre as “famílias de bem”. Marcela é uma comparação subentendida com a sociedade que Machado vivia e sempre criticou.

É sempre bom ter presente que o casamento nos moldes ditos tradicionais é uma instituição burguesa, capitalista, em que o pai da noiva recebe um dote para que a “sociedade” entre pai e noivo se estabeleça (reveja os títulos dos capítulos do romance romântico “Senhora”, de José de Alencar). Enquanto o Romantismo apregoa a sua enfadonha tradição “casaram-se e foram felizes para sempre”, o Realismo, que norteia os escritos de Machado de Assis  traduz uma crítica ferrenha ao casamento, à religião, às instituições burguesas.

É impossível esperar que o interlocutor (ouvinte ou leitor) compreenda o uso de certas figuras de linguagem se ele desconhece o contexto de produção da obra, se ele desconhece as questões políticas, ideológicas, econômicas, sociais, profissionais ali implícitas. Por outro lado, seria muito ingênuo imaginar que, nos textos, não haja ideologias implícitas, todos temos as nossas crenças (em sentido amplo, não apenas religioso ou político).

Ler, pesquisar, conhecer amplia significativamente a compreensão do mundo de qualquer pessoa. Com isso, crescem as possibilidades de criação literária, assim como aumenta a variedade do seu repertório linguístico, artístico. Não vamos jamais conhecer, saber tudo que poderíamos ou deveríamos, mas precisamos partir do pressuposto que conhecer, ser curioso, ter vontade aprender, questionar apenas nos enriquece. Rejeitar, renegar quem ou o que nos faz melhor...bom, é pedir para morrer em vida.

Texto: Profª Dra Elaine dos Santos

Ilustrações: Jornal Rio de Flores

Caixa de Texto: BiografiaElaine dos Santos, é natural de Restinga Seca/RS. Filha de Mario Cardoso dos Santos e Vilda Kilian dos Santos (in memoriam). Graduada em Letras, Mestre e Doutora em Estudos Literários, pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Possui formação em língua espanhola pela Universidad de La Republica, Montevidéu. É autora do livro “Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe”. Atuou como professora de Língua Espanhola, Literatura e Metodologia Científica no ensino médio, em cursos de graduação e pós-graduação. Foi Coordenadora do Curso de Letras e de Programas Sociais na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA/campus Cachoeira do Sul. Atuou como banca elaboradora de questões dos concursos PEIES e vestibular da UFSM e como avaliadora de redações dos mesmos concursos. É revisora de textos acadêmicos e parecerista ad hoc de revistas com classificação Qualis. Cronista, com publicações em jornais e em diversas antologias.


Edição e Direção Geral
Renato Galvão





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