Já me perguntaram se eu havia lido todos
os livros que precisava para construir o conhecimento que um professor de
Literatura precisa e, constrangida, eu disse que não. Reforcei que morreria e
jamais conseguiria dar conta daquilo que existe no mundo sobre conhecimento
literário.
Lembro-me que, anos atrás, professores da
Universidade de Moscou estiveram na minha cidade, num intercâmbio com uma
faculdade local, que atende alunos na área da Administração, do Direito e
afins, eles, ao final da sua fala, procuraram-me, falando em inglês (eu não
falo em inglês com fluência), porque, diante das minhas perguntas feitas ao
longo das palestras, acreditaram que eu conhecia Literatura russa (que
constrangimento, ainda que os temas que envolvem o ser humano sejam semelhantes
em todo o mundo, a grandiosa, a poderosa, a magnífica Literatura russa é-me
quase desconhecida).
Essas histórias vieram à mente ao preparar
um material sobre duas figuras de linguagem caídas em desgraça nos últimos
tempos, os tempos de polarização, ódio e intolerância. Meus alunos de ensino
médio diziam que eu era irônica, debochada e “arriada” e isso era um ponto
positivo na avaliação deles, dinamizava as minhas aulas. Hoje em dia, sou
xingada, ofendida porque, segundo dizem, sou debochada, sou irônica diante de
diferentes situações. Por outro lado, entre alguns professores nos tempos em
que também lecionava no ensino médio, frequentemente, dizia-se que eu falava
por metáforas e era necessário estar atento à minha fala para compreender-me,
eis que também se tratava de um elogio, eu detinha recursos de linguagem que
não permitiam que a minha fala fosse monótona, enfadonha. Na universidade em
que atuava, meus colegas chamavam-me “antena parabólica”, porque conseguia
entender as sutilezas das falas dos nossos superiores. Sim, e daí?
Existe uma passagem no romance “Memórias
póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, que me define: “Não transmiti a
nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. Brás Cubas está afirmando que não
teve filhos e que, portanto, não é responsável pela perpetuação da
miserabilidade do espírito humano: preconceituoso, mesquinho etc. e tal. Ironia
ao extremo.
Mas, no mesmo romance, há outra passagem
que me é fascinante: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”.
O narrador está fazendo referência a uma mulher que conheceu
(não vou entrar em detalhes sobre a relação entre ambos) e, em sua clássica e
corrosiva ironia, deixa expresso o interesse financeiro em que se baseou a
relação. Se é uma mulher leviana ou se é uma prostituta que se sustenta do
dinheiro de homens que lhe agenciam, ela precisa de novos amantes que lhe
garantam uma vida, minimamente, confortável. Brás Cubas ironiza a si mesmo.
Tolo.
Pode ser lida também como uma ironia em relação à sociedade
da época, baseada em relações “amorosas” que garantissem um bom dote para a
família da moça – se o homem não pudesse sustentá-la, adeus “amor eterno”.
Eis a metáfora: Marcela metaforiza a sociedade brasileira no
final dos oitocentos (1800), em que os casamentos eram feitos por interesse,
mas também lembra que a traição, o adultério eram práticas comum entre as
“famílias de bem”. Marcela é uma comparação subentendida com a sociedade que
Machado vivia e sempre criticou.
É sempre bom ter presente que o casamento nos moldes ditos
tradicionais é uma instituição burguesa, capitalista, em que o pai da noiva
recebe um dote para que a “sociedade” entre pai e noivo se estabeleça (reveja
os títulos dos capítulos do romance romântico “Senhora”, de José de Alencar).
Enquanto o Romantismo apregoa a sua enfadonha tradição “casaram-se e foram
felizes para sempre”, o Realismo, que norteia os escritos de Machado de
Assis traduz uma crítica ferrenha ao
casamento, à religião, às instituições burguesas.
É impossível esperar que o interlocutor (ouvinte ou leitor)
compreenda o uso de certas figuras de linguagem se ele desconhece o contexto de
produção da obra, se ele desconhece as questões políticas, ideológicas,
econômicas, sociais, profissionais ali implícitas. Por outro lado, seria muito
ingênuo imaginar que, nos textos, não haja ideologias implícitas, todos temos
as nossas crenças (em sentido amplo, não apenas religioso ou político).
Ler, pesquisar, conhecer amplia significativamente a compreensão do mundo de qualquer pessoa. Com isso, crescem as possibilidades de criação literária, assim como aumenta a variedade do seu repertório linguístico, artístico. Não vamos jamais conhecer, saber tudo que poderíamos ou deveríamos, mas precisamos partir do pressuposto que conhecer, ser curioso, ter vontade aprender, questionar apenas nos enriquece. Rejeitar, renegar quem ou o que nos faz melhor...bom, é pedir para morrer em vida.
Texto: Profª Dra Elaine dos Santos



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