quarta-feira, 5 de abril de 2023


Fazia tempo que o pescador lançava sua rede no mar. Havia dias que não pescava nenhum peixinho, por menor que fosse. Entristecido olhava o céu, enquanto aguardava o momento de mais uma vez recolher sua rede, na imensidão do encontro do céu e o mar, perdia-se em devaneios. Era um homem comum, simples, tinha uma casinha simples, uma mulher que amava e o amava, ela o tratava como a um rei. Sempre o esperava com um prato quente, comida que sorvia avidamente, depois de um longo dia no mar. Estava tão absorto em seus devaneios que não notou a velocidade do barco, se movia como se carregado por forças invisíveis, sua rede balançava fora d’água, parecia flutuar ao vento.

Viu então que uma criança que boiava na imensidão azul. Viu que algo a mantinha deitada como em um berço, um berço de algas, era uma menina, linda da pele clara, aproximou-se e viu que ela tinha os olhos de um verde vivo como duas esmeraldas cintilando. Não acreditava em tal visão estaria louco, com a longa espera da pesca. Pegou ao colo a pequenina e preocupou-se em mantê-la aquecida com uma camisa que estava a seus pés, estava plenamente encantado. O bebê sorria com aquela boquinha sem dentes, preocupado olhou em volta para ver se algum barco estava nas redondezas, se havia alguém desesperado o suficiente para lançar uma criança ao mar.

Voltou às pressas com seu pequeno barco para a praia, não notou que algo ou alguma força invisível o trazia tão rapidamente à praia, tal era seu estado de êxtase com a criança em seus braços. Sua esposa o esperava como sempre, só que desta vez algo a fizera encontrá-lo a beira do mar, ela também havia sido tomada por uma força que não entendia. Não se falaram, ela simplesmente pegou a menina nos braços e sorrindo olhou para o marido e disse:

— Essa é a nossa Serena. O tempo passou, ninguém procurou a criança, e para que os vizinhos não perguntassem, disseram que uma prima distante falecera no parto, eles sem filhos adotaram a menina.

A menina cresceu, doze anos se passaram, durante esses anos o pescador, foi abençoado com fartura em suas redes, outros pescadores vieram, todos tinham peixe suficiente para levar ao mercado e comer. Havia fartura, mas não tiravam do mar mais que o suficiente. Os pais encantados viram sua filha crescer, com beleza, bondade e um amor especial pelo mar.

Nadava como uma sereia, brincava com os golfinhos, os peixes a acompanhavam dentro das águas. Os pais se preocupavam, cada dia que ela se afastava da praia, impelida por uma força passava quase o tempo todo dentro do mar. Eles entendiam que um dia ela iria para não mais voltar, ela tinha vindo do mar, sabiam intimamente que ela era um ser das águas, e como tal voltaria ao seu lugar. Serena cantava e sua voz causava admiração, eles não disseram de onde ela vinha apenas que a haviam adotado. A menina tinha o dom de curar animais, grandes ou pequenos, onde andava sempre aparecia pássaros, pequenos caranguejos que a acompanhavam em um longa fila. Todos presenciavam aquela cena, mas não davam importância porque tudo corria bem, estavam felizes em viver com fartura.

Uma indústria com muitos barcos aportou na pequena aldeia e logo transformou a pequena vila em uma cidade, cheia de gente. Eram barcos grandes, que começaram a explorar a pesca, destruindo o lar dos pais de Serena.

Em pouco mais de um ano, a pesca foi definhando, acabou-se. Serena não mais cantava, não saía com o pai para pescar, não brincava mais com seus golfinhos, foi ficando magrinha, não comia, prostada ficava na casa o dia todo, seus pais choravam com ela e por ela. O pescador e a esposa decidiram então levá-la ao mar, seria apenas para animá-la. Ao entrar no barco, Serena debruçou-se e tocou de leve na água, o barco acelerou como se um motor tivesse duplicado sua força, ela olhou os pais e disse:

— Não se preocupem, lançando-se ao mar. Os pais sabiam que era o momento, Serena se foi.

Passaram-se dias, os dois sempre à noitinha saíam com o barco, lançavam ancora, no mesmo lugar onde o barco tinha encontrado o bebê, há 13 anos atrás. E numa linda noite em que a lua beijava o mar, emprestando os seus raios prateados, eles viram emergir bem próximo a eles Serena, vestia um vestido que parecia ter sido tricotado em forma de rede e nele havia peixes vivos tremulando era uma visão espetacular, a menina tinha os longos cabelos negros cheios de estrelas do mar como uma coroa, e sorrindo lhes estendeu as mãos.

— Meus pais venham conhecer de onde eu vim. Então os levou mar adentro, foram mergulhando até não se ver mais uma bolhinha de ar. Naquelas paragens, nunca mais ninguém pescou, acabou por desaparecer completamente todos os vestígios de ali um dia ter estado um ser humano, dunas se formaram com a força de ventos invisíveis, que tomaram tudo, não deixando que mais ninguém chegasse à praia de Serena, a menina com vestido de mar. 

Texto: Ivete Rosa de Souza
Ilustrações: Jornal Rio de Flores
Fotos: Canva

Ivete Rosa de Souza (Rosa dos Ventos), nasceu em Santo André, São Paulo no ano de 1955. Assídua leitora desde criança, apaixonada por poesia. Foi policial por mais de vinte anos, viu os dois lados do ser humano, mas não deixou de sentir e escrever poesias. Com dois livros publicados e participação em mais de trinta antologias, tanto físicas como digitais. Escreve contos, crônicas, além de poemas. Acredita que escrever é uma libertação. Colunista do Jornal Rio de Flores e Jornal Rol da Internet.

 

Edição e Direção Geral
Renato Galvão



2 comentários:

  1. Nossa que conto maravilhoso.
    Eu adoro a magia que existe no mar.
    Parabéns Ivete, um texto leve mas com um peso reflexivo enorme.

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