terça-feira, 1 de abril de 2025

 

Contaram-me essa história! Fico em dúvida quando aconteceu o caso, talvez 1956/1957. Típica viúva da seca, mãe cheia de filhos, passando necessidades, tornou-se retirante. Não podendo escolher o rumo da vida, embarcou num pau-de-arara. Foram todos parar numa pequena cidade da periferia de São Paulo, Capital. Lá havia uma boa estrutura pública de educação; botou as crianças para estudar! Um dos filhos, o mais esperto, adorava o prédio da escola! Só isso! Aquele casarão típico da arquitetura austera dos anos trinta!  Cara de museu!

Fiquei sabendo que era uma escola primária, onde o personagem frequentou a terceira série primária. Na época, o uniforme parecia farda militar, cor caqui e tecido grosso. Após a formatura no pátio, disciplinados, os alunos entravam em sala de aulas. Havia um dia da semana, talvez às sextas-feiras, quando cantavam o hino nacional, antes de marchar na direção das salas. Alguém me contou que foi um completo “sufoco”! Repetiu de ano na terceira série primária! Aprendendo com grande dificuldade, “burrinho”, ele dificilmente passaria de ano; talvez sim raspando médias, em coisinhas básicas. Contudo, tinha um outro problema! Não fazia em casa as tarefas da escola! Sempre tinha uma desculpa!

Creio que o garoto sofria de dislexia, agravada por algum transtorno de atenção. Durante as aulas, por qualquer "dá cá aquela palha", perdia o rumo das lições! Ele nunca conseguia acompanhar aquilo que a professora ensinava. O tempo das aulas parecia ser curto para o conteúdo das matérias! O garoto se perdia muito rápido, principalmente quando a professora estivesse ditando algum texto! Ou ele parava para ouvir e entender o que ela falava, ou tentava se concentrar na caligrafia bonita. Ele logo sentia preguiça e a mão ficava pesada! A ponta do lápis rapidamente quebrava, obrigando o uso do apontador, situação que agravava o problema do tempo para acompanhar o ditado. Quando a professora perguntava alguma coisa, ele nunca conseguia responder certo! Faltavam várias palavras para terminar de anotar, e, assim, o que havia sido ditado pela mestra ficava no esquecimento! Tristeza! Nada lia! Nunca fazia o dever de casa! Conforme fiquei sabendo, sempre estava “viajando na maionese”!

Durante as aulas, o guri se perdia entre sonhos e fantasias. Naquela época, ele preferia “desenhar” as coisas, de forma a ilustrar as próprias ideias. Falar ou escrever errado, tudo bem! Ele até se esforçava, mas, quando a professora pedia para a turma anotar o que ela ditava, então a coisa mudava! Simplesmente, entrava em pânico! Conforme comentários, ainda bem garoto, se sentia confortável nos diálogos e argumentos, especialmente quando resolvia criar situações fantasiosas, destinadas a conferir ares de verdade ao que desejava narrar. Então..., o que acontecia? Ele simplesmente inventava um “final feliz” que só existia na própria cabeça!

Para as crianças, mentir parece ser hábito comum; a irresponsabilidade é tanta que nem ligam para a tal da verdade. Mentir é uma forma de levar vantagem no diálogo, de qualquer jeito! Se um menino da vizinhança resolve contar histórias cheias de imaginação, dourando a pílula, exagerando por exemplo sobre o tamanho de algum peixe que tenha pescado nas férias, logo aparece outro moleque, para confrontar e narrar outro “causo”, contando uma lorota ainda mais absurda e mentirosa. O que não é permitido é levantar dúvidas sobre aquilo que já tenha sido contado por outros. Tentar contar outra história, mais mentirosa, certamente, pode! Mas, duvidar? Nunca, jamais! Acaba em briga!

Parece que, entre as crianças, existe uma espécie de acordo tácito, visando a evitar questionamentos, capazes de buscar “provas” da veracidade dos fatos narrados. Depois, conforme a maturidade vai chegando, ficam envergonhados quando são pegos na mentira. O problema reside, justamente, em saber quando não dá mais para manter a mentira; e acabam tendo de confessar a verdade, após, como se costuma dizer, ser “pego de calça curta!”, e ficar com a cara vermelha. Não sei como nem porque, mas o fato é que aquele garoto mentia muito bem. Especialmente na escola, pobrezinho, adorava inventar justificativas por não ter feito as tarefas de casa, conforme a paciente professora o orientava.

A maturidade acaba chegando, mas para aquele garoto, ela nunca chegou. Assim, ele passou a não ter vergonha de mentir. Sabemos que há estudos sobre algum tipo de observação de comportamento humano, o que nos permite verificar quando a pessoa está mentindo. Os psicólogos e estudiosos costumam estabelecer determinados padrões, para identificar um potoqueiro, mas há verdadeiros talentos inatos para mentir, que se tornam famosos, justamente, por conseguir ludibriar os testes científicos!

Certamente, você conhece casos interessantes, verdadeiramente patológicos!  Afinal, quem nunca contou alguma boa mentirinha? Segundo afirmou um famoso político da atualidade, uma narrativa bem elaborada, mesmo sendo mentirosa, consegue convencer as pessoas de boa fé! Sempre existem crédulos, aqueles que são fáceis de convencer; daí aquela frase do nazista Joseph Goebbels, que afirmava: “...uma mentira mil vezes repetida acaba virando verdade! “

Para não desviar o foco temático deste artigo, evito aprofundar-me em sutilezas do comportamento doentio dos adultos mentirosos, posto que apenas pretendo dizer que, aquele garoto, foi uma criança dotada de grande talento imaginativo, capaz de contar à professora, muitas razões pelas quais ele não fazia nunca os deveres de casa. Assim, ele foi tão convincente nas suas argumentações, que, não suportando mais as narrativas do aluno, mil vezes repetidas, a coitadinha resolveu chamar a mãe na escola, para manter importante conversa. Tornara-se urgente apurar algo muito sério, que o garoto lhe contava e que, certamente, já começava a sugerir ser verdade. Parece que para o menino era 01 de abril o ano todo. Dizem que até hoje ele é assim!

Não vou duvidar da inteligência da querida professorinha, tampouco crer que se tratava de uma alma ingênua; contudo, o fato é que o garoto mentia muito bem. Tanto que ela resolveu tirar a limpo aquelas alegações, sobre os motivos de ele nunca poder fazer os deveres de casa. Chamou então a mãe, para uma conversa franca na escola. Impossível saber como foi aquele diálogo, mas, anos depois, soubemos, da própria mãe dele, já velhinha, o que a professora falou. Pediu, encarecidamente, que a mãe parasse de ocupar tanto o tempo do filho com tarefas domésticas. Deixasse-o estudar!

Começou a reunião, enumerando as alegações do menino, para justificar a falta de tempo para fazer o dever de casa. Com voz calma e ponderada, foi lendo a lista: 1- lavar e passar; 2- varrer a casa e o quintal; 3- cozinhar;... e assim seguia: tomar conta dos irmãos, fazer compras no armazém, levar pequenas encomendas para clientes, engraxar os sapatos da família, dar comida para cachorros e galinhas, capinar a horta, molhar as plantas, juntar o lixo de casa, botar a comida para os irmãos, ariar as panelas, fazer pequenos remendos em roupas usadas, encerar o vermelhão do piso da casa, lavar o banheiro e muito mais!

Terminada a leitura, foi a vez de ouvir a mãe-escravizadora! E ela começo da seguinte forma: “Mas, querida professora, tarefas domésticas? Esse menino não ajuda em nada em casa!”. Com voz embargada no início, a mãe terminou afirmando – “Só pode ser mentira desse garoto! Ele me paga!”, falado já mais firme, sem tergiversar sobre o tema do bate-papo! No dia seguinte, mandaram chamar o garoto na sala da Diretora. Não chegou a ser uma investigação longa, nem foram usando métodos de tortura para confissão. Nada disso! Logo ele deixou transparecer alguns sinais próprios dos mentirosos. Também não foi necessário usar aparelho de detecção de mentiras! Malandrinho, quase já um mitômano mirim, ele mostrou toda a sua capacidade para ser um psicopata, capaz de manipular e conquistar facilmente a simpatia das pessoas, simplesmente buscando liderar mentes fragilizadas pela ignorância, através de cargos importantes de liderança e exercício de poder.     

Na Diretoria, algumas lágrimas correram dos olhos do garoto. Reação manjada, à qual a professora denominava como “lágrimas de crocodilo”! Consciente de que o problema daquele aluno era outro, passou a adotar estratégias diferentes, vidando tentar cobrar a feitura das lições de casa. Muito carinho, muito amor e compreensão! Assim, ela seguiu naquela luta, sem temer o final. Naturalmente, sempre atenta à sua missão como educadora, acabou por afeiçoar-se ao jovem, dando a ele total atenção.


Mesmo assim, foi perda de tempo; o garoto, tornou-se caso perdido! Ele percebeu que não necessitava mais desviar o olhar, nem tremer a voz ou piscar de forma mais demorada, nem evitar olhar fixamente as pessoas. Acreditava ter convencido a mestra, contando suas justificativas falaciosas. As mãos não tremiam, tampouco as pernas. Não se agitavam freneticamente como antes. Aquele rubor, seguido de calor na pele do rosto, não era mais percebido. Já conseguia falar sem rodeios, para contar seus “causos”, embora sempre gostasse de florear as ideias e seus argumentos, criando frases de efeito e fazendo promessas popularescas. Fazia parte do seu encantamento e criatividade. Um show! Sabia que ao contar alguma potoca, bastava fazê-lo de forma convincente, seguindo a recomendação da professora: “Quando ler alguma coisa, selecione previamente! Escolha textos curtos! Porém, se pretender fazer uso da palavra, discursar, falar ao povo, então, rosne as boçalidades com firmeza, e aparente convicção no que esteja dizendo!”  

Resultado final? O nosso garoto foi reprovado e repetiu o terceiro ano. Que “saudades” da professorinha! Finalmente, ela havia “ensinado” alguma coisa ao pirralho! Agora ele saberia mentir..., patologicamente! Já adulto, mesmo sem estudar, avançou na vida! Anos depois, ficou ainda mais esperto, sabendo “calibrar” o discurso com uma “branquinha”! Já maduro, aperfeiçoou seus métodos de “viajar na maionese”, mesmo que, por diversas vezes, acabasse “pisando na Jaca”! Ele mentia tanto, mas tanto, que nem sentia! O povo gostava!

Texto e Fotos: Rocha Maia
Edição e Ilustração: Jornal e Livraria Rio de Flores

Luiz Roberto da RochaMaia. Nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e Brasília e, atualmente, em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta anos de atividade cultural. Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas. Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP; MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal. Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro “O Diário de Lili Beth”, pela editora Viseu – 2021; e colaborou com a Coluna Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes.

Direção Geral
Renato Galvão


 


Um comentário:

  1. Ótima crônica, meu amigo. Seria muito bom se não houvesse resquícios de verdade em seu relato e a criança tivesse a chance de crescer como um ser humano justo e honesto, vindo a usar sua criatividade para o bem... Ainda bem que se trata apenas de um texto sem maiores consequências!

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