terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

O ano de 2025 marca 120 anos do nascimento de Erico Verissimo, ocorrido em Cruz Alta/RS, no dia 17 de dezembro de 1905. Por outro lado, 2025 também marca os 70 anos do passamento do autor de "O tempo e o vento ", o que aconteceu em 28 de novembro de 1975.

Se Erico Verissimo não for o maior prosador da literatura produzida no Rio Grande do Sul, certamente, é um dos mais conhecidos e representativos entre eles. Pessoalmente, eu sou fascinada pela prosa regionalista de João Simões Lopes Neto, enquanto a Academia Brasileira de Letras reconheceu a grandiosidade da produção literária de Moacir Sclyar.

Não pretendo enumerar todas as obras de Erico, o que faria exaustiva a leitura, mas é impossível não referir Clarissa, o gatinho Micefufe e o primo Vasco, o "gato do mato".

Tem-se o chamado ciclo de Clarissa, que inclui os romances "Clarissa", "Música ao longe", "Um lugar ao sol" e "Saga". Vasco não é figura recorrente em todas essas obras, mas ganha protagonismo em "Saga", quando se alista e participa da Guerra Civil Espanhola.

Embora não agrade ao brio gauchesco, a paulatina decadência da família de Clarissa costuma ser entendida como um esboço do que aconteceria com a família Terra Cambará, quando Getúlio Vargas é deposto em 1945.

Ah, sim! Erico Verissimo é sempre associado à trilogia de "O tempo e o vento", que vai da épica saga de ocupação gaúcha nos dois volumes de "O continente" e desemboca na narrativa mais intimista dos volumes de "O Arquipélago", quando se dá voz a Floriano, que é o narrador de "O tempo e o vento" e conta a história de sua família desde os primórdios. Nesse meio, há os volumes de “O retrato”, que dão destaque para o médico Rodrigo Cambará.

Devo pontuar que, para o meu gosto (não se trata de juízo estético), os dois personagens mais encantadores estão nas duas pontas da narrativa: Pedro Missioneiro e Tio Bicho.

Pedro Missioneiro é a origem do Continente de São Pedro, a que hoje chamamos Rio Grande do Sul.

Em 1534, sob a denominação de Rio de São Pedro, o território gaúcho apareceu, pela primeira vez, nos mapas portugueses, mas somente em 1737 receberia uma fortaleza para dificultar o contrabando que grassava os mares entre Laguna e Montevidéu. Duzentos anos separam a primeira visita portuguesa e o seu, digamos, efetivo interesse pelas terras sulinas.

Nesse meio tempo, jesuítas portugueses estiveram por aqui, estabeleceram reduções, aldearam índios, criaram gado, mas foram expulsos pelos bandeirantes. Restou a gadaria que se reproduziu bravia.

Ao tempo da exploração nas Minas Gerais, nas feiras do interior paulista, comercializava-se de tudo, inclusive, a carne de gado para o charque e mulas para o transporte de minério. Tropeiros paulistas passaram a buscar animais no sul.

Esses homens ou raptavam mulheres indígenas ou elas costumavam segui-los porque se encantavam por "homens de barba" (índios têm o rosto liso). As indígenas eram empregadas e amásias. Quando eles partiam, elas eram abandonadas.

A mãe de Pedro Missioneiro era uma dessas mulheres abandonadas pelo caminho e encontrada em trabalho de parto. Segundo a narrativa de "O continente I", ela sangrou muito, sendo necessárias bacias e bacias para aparar o sangue que saía do seu corpo.

Do ponto de vista literário, o que se tem é a purificação do menino, concebido de maneira impura, que se tornaria o primeiro varão gaúcho em "O tempo e o vento". Mais tarde, Pedro ainda se diria "hijo de la Vírgen", teria visões que previam o seu futuro, como aconteceu com a morte nas mãos dos familiares de Ana Terra, quando se soube que ela estava grávida.

Pedro é o Rio Grande explorado, o Rio Grande construído à força da violência. Pedro é o Rio Grande, como afirma Blau Nunes, narrador de "Contos gauchescos", de Simões Lopes Neto, a terra em que castelhanos e portugueses se "acoquinam" (provocam-se, intimidam-se).

Pedro Missioneiro é esse embrião nativo: meio indígena, meio branco, cerne da nossa gente; que influencia os nossos costumes, o nosso vocabulário, as nossas tradições e que inspirou poetas e prosadores. Pedro Missioneiro é, enfim, a gauchidade.

No outro extremo da narrativa, em "O Arquipélago", está o Tio Bicho. Ele é o intelectual malvisto em Santa Fé, o antigo povoado que se iniciou sob o domínio da família Amaral.

Tio Bicho é o grande amigo de Floriano (filho de Rodrigo Cambará, neto Licurgo Cambará, bisneto de Bolívar Cambará, trineto de Rodrigo Cambará), aquele que é capaz de entender os questionamentos do rapaz, revisitar a história da família, os mandos e os desmandos que a família se impôs e impôs à sociedade de seu tempo. A saga política do pai, o seu alinhamento a Getúlio Vargas, a vida no Rio de Janeiro.

Floriano tenta entender o pai, Rodrigo, que a exemplo do trisavô Rodrigo, sempre foi um mulherengo, sem grande respeito pela mulher - agregue-se que Licurgo, o seu avô, durante a Revolução Federalista, enquanto o sobrado da família estava sob cerco inimigo, a mulher encontrava-se nos últimos dias de gravidez, desejava apenas o corpo de Ismália Caré, a sua amásia.

A dita sina das mulheres do Rio Grande, conforme Ana Terra, era esperar, parece que Floriano e Tio Bicho encontram outra sina: a traição amorosa de seus machos.

Diga-se de passagem, há uma corrente de crítica literária que rechaça a ideia de grandes, de fortes, de batalhadoras mulheres criadas por Erico Verissimo. Elas - no caso, Ana Terra, Bibiana e Maria Valéria, só assumem protagonismo na ausência do macho.

Ana Terra fez-se "dona" da sua vida, após o ataque castelhano, os sucessivos estupros, a morte do pai. Ela passou a rechaçar cheiro de cigarro, cheiro de cachaça, cheiro de homem.

Bibiana, totalmente dependente do Capitão Rodrigo Cambará, torna-se protagonista depois que ele é morto durante a Guerra dos Farrapos, trama o casamento de Bolívar com a Teiniaguá, cuja família havia construído um sobrado em cima do terreno que pertencera a Pedro Terra. Com o suicídio de Bolívar, ela disputa o neto com a nora e vence-a, cria Licurgo como um legítimo Cambará (seja lá o que isso significa), assenhora-se do sobrado a tal ponto que o reconhece pelos sons, mesmo depois de cega.

Já a Dinda, Maria Valéria, que não casou, é quem comanda o sobrado durante o cerco na Revolução Federalista e segue assim... senhora da família, determinando, organizando destinos.

Eu poderia ainda tematizar o sensacional drible que, em 1971, Erico Verissimo protagonizou contra a censura, "Incidente em Antares", mas leia o romance, talvez lhe seja interessante verificar os sensacionais artifícios que as figuras de linguagem permitem dizer sem dizer ou não dizer, mas dizez. 

Texto: Elaine dos Santos

Edição e Ilustração: Jornal e Livraria Rio de Flores


Elaine dos Santos

Doutora em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), desde 2013, quando defendeu a tese que versa sobre cultura popular e o circo teatro. É autora do livro "Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe", adaptação de sua tese.

Professora aposentada, atuou no ensino médio, graduação e pós-graduação. Tem experiência em Língua Portuguesa, Teoria Literária, Literatura Gaúcha, Literatura Brasileira e Literatura Portuguesa, além de ter ministrado disciplinas de Metodologia do Ensino e Metodologia de Pesquisa.

Possui formação em Língua Espanhola pela Universidad de La Republica, em Montevidéu, Uruguai. É revisora de textos. Cronista e organizadora de antologias.

Direção Geral
Renato Galvão


 

 

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