O ano de 2025 marca 120 anos do nascimento de
Erico Verissimo, ocorrido em Cruz Alta/RS, no dia 17 de dezembro de 1905. Por
outro lado, 2025 também marca os 70 anos do passamento do autor de "O tempo
e o vento ", o que aconteceu em 28 de novembro de 1975.
Se Erico Verissimo não for o maior prosador da
literatura produzida no Rio Grande do Sul, certamente, é um dos mais conhecidos
e representativos entre eles. Pessoalmente, eu sou fascinada pela prosa
regionalista de João Simões Lopes Neto, enquanto a Academia Brasileira de
Letras reconheceu a grandiosidade da produção literária de Moacir Sclyar.
Não pretendo enumerar todas as obras de Erico,
o que faria exaustiva a leitura, mas é impossível não referir Clarissa, o
gatinho Micefufe e o primo Vasco, o "gato do mato".
Tem-se o chamado ciclo de Clarissa, que inclui
os romances "Clarissa", "Música ao longe", "Um lugar
ao sol" e "Saga". Vasco não é figura recorrente em todas essas
obras, mas ganha protagonismo em "Saga", quando se alista e participa
da Guerra Civil Espanhola.
Embora não agrade ao brio gauchesco, a
paulatina decadência da família de Clarissa costuma ser entendida como um
esboço do que aconteceria com a família Terra Cambará, quando Getúlio Vargas é
deposto em 1945.
Ah, sim! Erico Verissimo é sempre associado à
trilogia de "O tempo e o vento", que vai da épica saga de ocupação
gaúcha nos dois volumes de "O continente" e desemboca na narrativa
mais intimista dos volumes de "O Arquipélago", quando se dá voz a
Floriano, que é o narrador de "O tempo e o vento" e conta a história
de sua família desde os primórdios. Nesse meio, há os volumes de “O retrato”,
que dão destaque para o médico Rodrigo Cambará.
Devo pontuar que, para o meu gosto (não se
trata de juízo estético), os dois personagens mais encantadores estão nas duas
pontas da narrativa: Pedro Missioneiro e Tio Bicho.
Pedro Missioneiro é a origem do Continente de
São Pedro, a que hoje chamamos Rio Grande do Sul.
Em 1534, sob a denominação de Rio de São
Pedro, o território gaúcho apareceu, pela primeira vez, nos mapas portugueses,
mas somente em 1737 receberia uma fortaleza para dificultar o contrabando que
grassava os mares entre Laguna e Montevidéu. Duzentos anos separam a primeira
visita portuguesa e o seu, digamos, efetivo interesse pelas terras sulinas.
Nesse meio tempo, jesuítas portugueses
estiveram por aqui, estabeleceram reduções, aldearam índios, criaram gado, mas
foram expulsos pelos bandeirantes. Restou a gadaria que se reproduziu bravia.
Ao tempo da exploração nas Minas Gerais, nas
feiras do interior paulista, comercializava-se de tudo, inclusive, a carne de
gado para o charque e mulas para o transporte de minério. Tropeiros paulistas
passaram a buscar animais no sul.
Esses homens ou raptavam mulheres indígenas ou
elas costumavam segui-los porque se encantavam por "homens de barba"
(índios têm o rosto liso). As indígenas eram empregadas e amásias. Quando eles
partiam, elas eram abandonadas.
A mãe de Pedro Missioneiro era uma dessas
mulheres abandonadas pelo caminho e encontrada em trabalho de parto. Segundo a
narrativa de "O continente I", ela sangrou muito, sendo necessárias
bacias e bacias para aparar o sangue que saía do seu corpo.
Do ponto de vista literário, o que se tem é a
purificação do menino, concebido de maneira impura, que se tornaria o primeiro
varão gaúcho em "O tempo e o vento". Mais tarde, Pedro ainda se diria
"hijo de la Vírgen", teria visões que previam o seu futuro, como
aconteceu com a morte nas mãos dos familiares de Ana Terra, quando se soube que
ela estava grávida.
Pedro é o Rio Grande explorado, o Rio Grande
construído à força da violência. Pedro é o Rio Grande, como afirma Blau Nunes,
narrador de "Contos gauchescos", de Simões Lopes Neto, a terra em que
castelhanos e portugueses se "acoquinam" (provocam-se, intimidam-se).
Pedro Missioneiro é esse embrião nativo: meio
indígena, meio branco, cerne da nossa gente; que influencia os nossos costumes,
o nosso vocabulário, as nossas tradições e que inspirou poetas e prosadores.
Pedro Missioneiro é, enfim, a gauchidade.
No outro extremo da narrativa, em "O
Arquipélago", está o Tio Bicho. Ele é o intelectual malvisto em Santa Fé, o
antigo povoado que se iniciou sob o domínio da família Amaral.
Tio Bicho é o grande amigo de Floriano (filho
de Rodrigo Cambará, neto Licurgo Cambará, bisneto de Bolívar Cambará, trineto
de Rodrigo Cambará), aquele que é capaz de entender os questionamentos do
rapaz, revisitar a história da família, os mandos e os desmandos que a família
se impôs e impôs à sociedade de seu tempo. A saga política do pai, o seu
alinhamento a Getúlio Vargas, a vida no Rio de Janeiro.
Floriano tenta entender o pai, Rodrigo, que a
exemplo do trisavô Rodrigo, sempre foi um mulherengo, sem grande respeito pela
mulher - agregue-se que Licurgo, o seu avô, durante a Revolução Federalista,
enquanto o sobrado da família estava sob cerco inimigo, a mulher encontrava-se
nos últimos dias de gravidez, desejava apenas o corpo de Ismália Caré, a sua
amásia.
A dita sina das mulheres do Rio Grande,
conforme Ana Terra, era esperar, parece que Floriano e Tio Bicho encontram
outra sina: a traição amorosa de seus machos.
Diga-se de passagem, há uma corrente de
crítica literária que rechaça a ideia de grandes, de fortes, de batalhadoras
mulheres criadas por Erico Verissimo. Elas - no caso, Ana Terra, Bibiana e
Maria Valéria, só assumem protagonismo na ausência do macho.
Ana Terra fez-se "dona" da sua vida,
após o ataque castelhano, os sucessivos estupros, a morte do pai. Ela passou a
rechaçar cheiro de cigarro, cheiro de cachaça, cheiro de homem.
Bibiana, totalmente dependente do Capitão
Rodrigo Cambará, torna-se protagonista depois que ele é morto durante a Guerra
dos Farrapos, trama o casamento de Bolívar com a Teiniaguá, cuja família havia
construído um sobrado em cima do terreno que pertencera a Pedro Terra. Com o
suicídio de Bolívar, ela disputa o neto com a nora e vence-a, cria Licurgo como
um legítimo Cambará (seja lá o que isso significa), assenhora-se do sobrado a
tal ponto que o reconhece pelos sons, mesmo depois de cega.
Já a Dinda, Maria Valéria, que não casou, é
quem comanda o sobrado durante o cerco na Revolução Federalista e segue assim...
senhora da família, determinando, organizando destinos.
Eu poderia ainda tematizar o sensacional drible que, em 1971, Erico Verissimo protagonizou contra a censura, "Incidente em Antares", mas leia o romance, talvez lhe seja interessante verificar os sensacionais artifícios que as figuras de linguagem permitem dizer sem dizer ou não dizer, mas dizez.
Texto: Elaine dos Santos
Doutora em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), desde
2013, quando defendeu a tese que versa sobre cultura popular e o circo teatro.
É autora do livro "Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama
no teatro mambembe", adaptação de sua tese.
Professora aposentada, atuou no ensino médio, graduação e pós-graduação.
Tem experiência em Língua Portuguesa, Teoria Literária, Literatura Gaúcha,
Literatura Brasileira e Literatura Portuguesa, além de ter ministrado
disciplinas de Metodologia do Ensino e Metodologia de Pesquisa.
Possui formação em Língua Espanhola pela Universidad de La Republica, em
Montevidéu, Uruguai. É revisora de textos. Cronista e organizadora de
antologias.
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| Direção Geral Renato Galvão |


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