sábado, 11 de janeiro de 2025

 

Gosto demais do samba-enredo da escola carioca Imperatriz Leopoldinense levada à rua Marquês do Sapucaí em 1989, cem anos após a independência do Brasil.

“Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós” é um dos mais conhecidos e primorosos samba de todos os tempos. Ele passa pelo declínio do Império, pela chegada dos imigrantes, pela Lei Áurea, pela própria Proclamação da República, evidentemente, questionando alguns fatos históricos.

Quando eu era professora no ensino médio, atuando com a disciplina de Literatura, costumava ser “uma pedra no sapato” para os professores de História. Sob a ótica da Literatura, desmitificava, por exemplo, a chegada da família real ao Brasil, quando Carlota Joaquina apareceu usando turbante para disfarçar os cabelos raspados pelo excesso de piolhos ou, na declaração da Independência de 1822, a providencial parada de Dom Pedro junto às margens do riacho do Ipiranga para “obrar”, visto que ele estava com problemas intestinais.

A independência política em relação a Portugal deu início à construção de uma suposta identidade nacional, assentada na beleza da nossa natureza e na figura do elemento nativo – o indígena, que seriam cantados em prosa e verso pela escola literária denominada Romantismo.

A República aporta entre nós no auge do Realismo, entre a ironia, a zombaria e a forma muito críticas de Machado de Assis re-apresentar a realidade. “Esaú e Jacó” é o romance paradigmático dessa etapa – Pedro e Paulo, os dois irmãos da narrativa, encarnam ideais monárquicos, de um lado, e republicanos, de outro, dando uma ideia dos embates daquele tempo.

Agradava-me demonstrar aos alunos o cenário que impôs a República entre nós e o jogo de interesses que assim o fez: Guerra do Paraguai e o significativo aumento da dívida pública contraída pelo Império; o tráfico negreiro, o declínio da mão de obra escravagista, a decretação da Lei Áurea pelas mãos da Princesa Isabel. O Marechal Deodoro da Fonseca teria saído da cama, em que estava resfriado, para proclamar a República e eu brincava: por que um marechal adoentado?

Seguindo a linha de raciocínio que adotava com os alunos desde o Barroco, o Arcadismo e o Romantismo, a ideia era problematizar, pela via da Literatura, os acontecimentos nacionais? A Proclamação da República fora um ato violento – ainda que não gerasse guerra, destronou-se o Imperador, que, logo em seguida, foi exilado.

“Liberdade, liberdade! Abre as asas sobre nós!”

Fim do século XIX (19), um país agrário, dependente do café, daria origem à chamada República do Café com Leite, que seria destituída por um golpe de estado, em 1930, quando começava a República de Getúlio Vargas, que se concederia um novo golpe, contra seu próprio governo, em 1937, sendo deposto em 1945. Enfim, a relação entre Literatura e História, ao longo da terceira série do ensino médio, era pautada por essa dubiedade – de golpe em golpe, pacífico ou não, o Brasil seguia.

O sucesso do filme “Ainda estou aqui” reergueu, das profundezas da nossa História aquilo que tanto se tentou esconder nos últimos anos – uma ditadura que deixou marcas indeléveis, dolorosas em quem a viveu e em quem conhece as suas consequências nefastas. Em “Alvorada Voraz”, do grupo RPM, temos uma rápida mostra da década de 1970: “o crime da mala, Coroa Brastel e um monte de gente envolvida”, eu acresceria as mortes de Ana Letícia, Araceli, duas pequenas meninas, violentadas por filhos de militares.

Para além disso, a minha geração ainda viveria um governo autoritário, que negligenciou uma pandemia, o maior desafio dos nossos tempos – uma violência grotesca contra pacientes de todas as idades, mas, sobretudo, para portadores de graves comorbidades como eu. Esta semana, um conhecido jornal, que circula no Rio Grande do Sul, trouxe um levantamento em que se informa que há mais de 670 mil pacientes à espera de consultas ou exames em nosso estado. Bem sabemos que muitos pacientes enfrentam sequelas da Covid-19, outros tantos tiveram os seus tratamentos atrasados em razão da pandemia. Tem-se o registro de uma jovem, 22 anos, que morreu à espera de uma cirurgia de vesícula. Lamentável, constrangedor.

A tal liberdade parece ter dificuldade para abrir as asas sobre nós e, muito pior que isso, o nosso povo não percebe a gravidade da situação que vive. Até quando?


Texto: Elaine dos Santos
Edição e Ilustração: Jornal Rio de Flores

Elaine dos Santos. Professora universitária aposentada. Revisora de textos acadêmicos. Cronista com participação em mais de 130 antologias. Organizadora e coorganizadora de diversas antologias. Autora do livro “Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe”, adaptação da sua tese de doutorado, e de “Coisas minhas & Outras histórias” (no prelo). Participa de diversas academias literárias. Laureada com prêmios e comendas nacionais e internacionais.

Direção Geral
Renato Galvão



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