Gosto demais do
samba-enredo da escola carioca Imperatriz Leopoldinense levada à rua Marquês do
Sapucaí em 1989, cem anos após a independência do Brasil.
“Liberdade! Liberdade!
Abre as asas sobre nós” é um dos mais conhecidos e primorosos samba de todos os
tempos. Ele passa pelo declínio do Império, pela chegada dos imigrantes, pela
Lei Áurea, pela própria Proclamação da República, evidentemente, questionando
alguns fatos históricos.
Quando eu era
professora no ensino médio, atuando com a disciplina de Literatura, costumava
ser “uma pedra no sapato” para os professores de História. Sob a ótica da
Literatura, desmitificava, por exemplo, a chegada da família real ao Brasil,
quando Carlota Joaquina apareceu usando turbante para disfarçar os cabelos
raspados pelo excesso de piolhos ou, na declaração da Independência de 1822, a
providencial parada de Dom Pedro junto às margens do riacho do Ipiranga para
“obrar”, visto que ele estava com problemas intestinais.
A independência
política em relação a Portugal deu início à construção de uma suposta
identidade nacional, assentada na beleza da nossa natureza e na figura do
elemento nativo – o indígena, que seriam cantados em prosa e verso pela escola
literária denominada Romantismo.
A República aporta
entre nós no auge do Realismo, entre a ironia, a zombaria e a forma muito
críticas de Machado de Assis re-apresentar a realidade. “Esaú e Jacó” é o
romance paradigmático dessa etapa – Pedro e Paulo, os dois irmãos da narrativa,
encarnam ideais monárquicos, de um lado, e republicanos, de outro, dando uma
ideia dos embates daquele tempo.
Agradava-me demonstrar
aos alunos o cenário que impôs a República entre nós e o jogo de interesses que
assim o fez: Guerra do Paraguai e o significativo aumento da dívida pública
contraída pelo Império; o tráfico negreiro, o declínio da mão de obra escravagista,
a decretação da Lei Áurea pelas mãos da Princesa Isabel. O Marechal Deodoro da
Fonseca teria saído da cama, em que estava resfriado, para proclamar a
República e eu brincava: por que um marechal adoentado?
Seguindo a linha de
raciocínio que adotava com os alunos desde o Barroco, o Arcadismo e o
Romantismo, a ideia era problematizar, pela via da Literatura, os
acontecimentos nacionais? A Proclamação da República fora um ato violento –
ainda que não gerasse guerra, destronou-se o Imperador, que, logo em seguida,
foi exilado.
“Liberdade, liberdade!
Abre as asas sobre nós!”
Fim do século XIX (19),
um país agrário, dependente do café, daria origem à chamada República do Café
com Leite, que seria destituída por um golpe de estado, em 1930, quando
começava a República de Getúlio Vargas, que se concederia um novo golpe, contra
seu próprio governo, em 1937, sendo deposto em 1945. Enfim, a relação entre
Literatura e História, ao longo da terceira série do ensino médio, era pautada
por essa dubiedade – de golpe em golpe, pacífico ou não, o Brasil seguia.
O sucesso do filme
“Ainda estou aqui” reergueu, das profundezas da nossa História aquilo que tanto
se tentou esconder nos últimos anos – uma ditadura que deixou marcas
indeléveis, dolorosas em quem a viveu e em quem conhece as suas consequências
nefastas. Em “Alvorada Voraz”, do grupo RPM, temos uma rápida mostra da década
de 1970: “o crime da mala, Coroa Brastel e um monte de gente envolvida”, eu
acresceria as mortes de Ana Letícia, Araceli, duas pequenas meninas,
violentadas por filhos de militares.
Para além disso, a
minha geração ainda viveria um governo autoritário, que negligenciou uma
pandemia, o maior desafio dos nossos tempos – uma violência grotesca contra
pacientes de todas as idades, mas, sobretudo, para portadores de graves
comorbidades como eu. Esta semana, um conhecido jornal, que circula no Rio
Grande do Sul, trouxe um levantamento em que se informa que há mais de 670 mil
pacientes à espera de consultas ou exames em nosso estado. Bem sabemos que
muitos pacientes enfrentam sequelas da Covid-19, outros tantos tiveram os seus
tratamentos atrasados em razão da pandemia. Tem-se o registro de uma jovem, 22
anos, que morreu à espera de uma cirurgia de vesícula. Lamentável,
constrangedor.
A tal liberdade parece
ter dificuldade para abrir as asas sobre nós e, muito pior que isso, o nosso
povo não percebe a gravidade da situação que vive. Até quando?
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| Direção Geral Renato Galvão |


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