A
casa ainda está lá! Avenida Edson Passos, Alto da Boa Vista. Pouca coisa parece
ter sido modificada. Foi construída para durar muito tempo! Era costume, naquele
tempo, construir um imóvel, que deveria servir como um bem de família. Mobiliada
em estilo clássico, foi decorada com objetos de valor artístico, porcelanas e
biscuits recolhidos nos leilões e antiquários. Enormes tapetes persas,
autênticos, muito coloridos, cobriam o chão da sala, e, nas paredes, quadros de
pintores realistas antigos. Tudo ali tinha sido escolhido pela dona da casa!
Enquanto
o garoto brincava com os carrinhos e soldadinhos de chumbo, espalhados pelo
assoalho, a velhinha, sentada no sofá, costurava mais um dos inúmeros vestidos
de noiva que, com grande prazer, todos os anos, dava de presente para moças das
favelas. Enquanto costurava com esmero e carinho, aproveitando o tempo na sala,
ia contando ao pequeno ouvinte, com comentários ricos de detalhes, suas
histórias da vida já bem vivida.
Certa
vez, a vovozinha escolheu, como tema das suas recordações, comparações sobre o
progresso e a evolução das coisas. O menino, talvez ainda com seis ou sete anos,
perguntava muitas coisas engraçadas, que sua curiosidade infantil queria saber.
Ela andava perto dos sessenta e poucos anos, forte e saudável, mas, como a
expectativa de vida das mulheres da época era pouca, ela já se dizia muito
idosa. Essa tal questão da expectativa de vida é uma das primeiras diferenças
que notamos, entre o tempo antigo e o agora. Naquela época, o brasileiro tinha
como expectativa de vida, no máximo, 40 anos; imagina então passar dos oitenta
anos! Era uma coisa inacreditável!
Algumas
das referências mais marcantes, ela recordava bem; diziam respeito ao
surgimento do rádio e da TV (preto e branco); sem falar na expansão e o
crescimento do telégrafo! Ela falava com admiração, quase incrédula, sobre
motores dos automóveis movidos a petróleo, verdadeiros “bólidos” a correr a
mais de 64 Km por hora! Também falava com admiração sobre o primeiro voo ao
redor do mundo, em 1929, do famoso dirigível Graf Zeppelin. A velhinha era uma
mulher muito bem-informada, bastante politizada, para os padrões femininos de
seu tempo, seguramente, uma exceção! Tinha assunto para muitas horas de
conversa!
Admirava-se
muito, como havia testemunhado tantas e formidáveis mudanças e avanços
tecnológicos. Desde menina, ela teve a felicidade de ver, por exemplo, o
surgimento do avião, a democratização do uso da luz elétrica nas ruas e casas,
com o que foi possível o aparecimento dos primeiros aparelhos de som de
alta-fidelidade, o rádio FM e a televisão com imagens coloridas, geladeiras,
máquinas de lavar roupas, aspirador de pó, e automóveis ainda mais rápidos etc.
Ela comentava sobre o espanto e admiração das pessoas, diante de tantos avanços
tecnológicos, coisas que em sua infância pareciam impossíveis! Depois que viu o
surgimento da televisão, ela ainda viu falar sobre os primeiros computadores
eletrônicos IBM; e quando, com mais de oitenta e quatro anos, viu nascerem os
bisnetos, pôde comemorar muito as notícias dos primeiros astronautas no espaço.
Foi testemunha de inovações, nunca imaginadas em outros tempos!
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| Quadro: "Na sala com vovó!" - 2005 - Rocha Maia |
O mundo nunca parou de evoluir! A diferença sempre foi a velocidade que ele munda! Assim como a velhinha presenciou avanços, nós também estamos em plena era de mudanças radicais, onde o que me parece ser mais desafiador é conseguirmos nos adaptar aos novos paradigmas, ditados por processos de modernização e de surgimento de novas tecnologias. Haja capacidade para acompanharmos tantas coisas diferentes, acontecendo diariamente. Antes, as modificações eram tão lentas que nem chegavam a ser percebidas numa geração. Por vezes as coisas só eram modificadas a cada mil ou cem anos, depois mudavam a cada geração, chegando a ser radicais a cada década. Havia tempo para que as pessoas se adaptassem ao novo, ao moderno como se costuma dizer!
De
alguns tempos para cá, as coisas passaram a mudar quase obrigatoriamente,
dentro de uma espécie de obsolescência planejada! Primeiro a cada ano, numa
espécie de programação mercadológica, com o lançamento de novo estilo ou modelo
para tudo! Isso é tão rápido, que muitas vezes nem percebemos as fases de
mudança, como vemos acontecer com os carros, roupas, aparência pessoal,
modismos diversos e novos produtos e serviços, que interferem na mudança de
hábitos e costumes. Nesse aspecto podemos citar, como exemplo, a mobilidade
social das novas gerações. Praticamente ninguém mais nasce, cresce, reside e
trabalha na mesma cidade em que um dia irá se aposentar e falecer. A velocidade
avança. Já estamos no limiar da perda de padrões de referência em geral,
capazes de nortear comportamentos e processos não apenas empresariais, mas
também sociais e econômicos! De alguma forma difícil de entender, a marcha da
insensatez acelera em direção do abismo! As pessoas vão dormir de uma forma,
pensando de um jeito e crendo em alguma coisa, mas acordam; e já são outros
seres, vivendo numa outra realidade com alguma dificuldade! Ficam bastante
perplexas, nem lembram bem como antes era aquilo, que, até ontem, tinha uma
definição clara, e no momento seguinte passa a ter valor inversamente diferente.
O
pior é que não se sabe mais o que seremos no amanhã! As próprias linguagens,
nas diversas formas usadas na comunicação interpessoal, começam a ser de
difícil compreensão. Mesmo com o surgimento de poderosas tecnologias de
tradução instantânea de centenas de idiomas, perdemos a noção do sentido exato
do que é a comunicação. As mídias tradicionais já nem mais existem no
cotidiano. Não se pode mais garantir que o uso de um simples dicionário possa
nos permitir acesso ao vocabulário de um idioma. Quer uma prova disso?
Estabeleça o início de um diálogo com algum jovem morador na vizinhança. Ele
até pode se dizer bilíngue, mas daí poder compreender a sua mensagem vai uma
distância muito grande. Certamente, será capaz de estabelecer algum nível de
comunicação, via celular, mas em termos de compreensão da mensagem, isso não
será possível! As pessoas quase não se comunicam mais diretamente, ao vivo e a cores.
Promova
um teste assim: convide uma pessoa jovem qualquer para conversar. Se você
conseguir que ela pare e sente-se, para falar com você, parabéns! Você já terá
vencido uma primeira etapa. Logo a seguir, veja se consegue que ela olhe para
você, que pare de olhar no celular, por poucos minutos! Certamente, logo ela
estará abduzida pela “telinha”, envolvida por algum desses abomináveis
joguinhos eletrônicos ou vídeos aloprados. Conseguiu? Parabéns, novamente!
Então solicite que o jovem fale sobre aquilo que ele estava fazendo com tanta
atenção, supondo que estivesse jogando. Prepare-se! Quem, agora, vai ficar
desconectado será você! O seu interlocutor irá falar sobre coisas que, na sua
condição de simples mortal, possivelmente, vão parecer totalmente fora de
propósito do seu domínio e entendimento.
Contudo,
vou logo avisando. Prepare-se par sofrer uma forte agressão! Você simplesmente
irá se sentir desqualificado, pelo seu interlocutor, quando ele deixar você
falando sozinho e seguir em frente sem nem dar um tchauzinho!
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| Quadro: "Nem sempre foi assim" - 2003 - Rocha Maia |
A lógica desses esquemas eletrônicos, que estão a chamar de jogos, não existe para os terráqueos com mais de trinta anos.
Mas
então, vendo que você não vai entender nada daquilo que o jovem está lhe
falando, finja que vai ao banheiro..., e saia de fininho! Noutros tempos, de
outros tipos de jogos, eu diria: “Tire o time de campo!”
Resumindo
a história! As mudanças à moda antiga, não existem mais, por processos de
sucessivas e contínuas alterações, capazes de aperfeiçoar alguma coisa. Atualmente,
o que se passa, é pura ruptura nos processos. As coisas marcham até um
determinado ponto; e, simplesmente, desaparecem na profundeza de um abismo, da
falta de lógica, que interrompe o fluxo e a direção do assunto até então
dominante. Sinta o apocalipse chegando!
Quer
ver como aconteceu? Onde foi parar o mais perfeito e complexo relógio suíço?
Sumiu? Não, o telefone celular..., comeu! O velho despertador para acordar a
casa toda, quando tocava aquele alarme estridente? Sumiu! Onde foi parar o
telefone fixo, que todas as famílias tinham em casa, com o maior orgulho?
Sumiu! O celular...? Sim, comeu! A fantástica máquina fotográfica digital,
hipermoderna, cadê? Sumiu! O celular..., comeu! Porém, nem tudo o telefone
celular comeu! Quer ver? A bicicleta movida a pedal? E o retroprojetor na sala
de aula? E a presença física dos funcionários, diariamente, nos postos de
trabalho nas empresas? VOCÊ JÁ REPAROU, no que está acontecendo com aparelhos
domésticos? Televisores, toca disco, gravadores, vídeos, VHS, ...o que está
acontecendo? Parece que estão sumindo também!
A
sucata tecnológica se transformou num problema! Onde descartar aparelhos
eletrônicos sem uso? Um problemão para
os serviços de limpeza urbana de todas as cidades. As pilhas e baterias, assim
como as embalagens de plástico jogadas no lixo se transformaram em pandemia. O
mercado de reciclagem pelos antigos ferros-velhos, hoje transformados em
cooperativas de catadores de lixo, tende a ser fonte segura de renda para
muitas famílias. O que está acontecendo?
O
mercado de trabalho está cheio de profissionais ociosos, por não encontrarem mais
oportunidades de emprego, dentro de suas atividades técnicas de formação, em
razão de serem profissões extintas, como é o caso de sapateiro, relojoeiro,
chapeleiro, telefonista, leiteiro, vendedor de enciclopédia, radiotelegrafista,
datilógrafo etc. Diversas outras profissões estão em vias de extinção, como
caixa de supermercado, ascensorista, operador de mimeógrafo, motoristas de
taxi, linotipista, afiador de faca e tesoura, fotógrafo, e muitas outras.
Por
outro lado, também como resultado da velocidade das transformações e do
surgimento de novos processos, sem chegar a ser antídoto para a mortalidade de
ocupações de trabalho, surgem inúmeras novas profissões, muitas ainda sem
regulamentação ou formação técnica apropriada ou especialização de mão-de-obra.
Vou citar algumas bastante badaladas: Youtuber; Personal Training; Personal Shopper; Cuidador de Idosos;
Influencer; DJ; Videomaker; Cuidador de Animais; Gestor de Mídia Social,
Técnico em Telemedicina, Especialista em Marketing Digital etc.
Não sei se vou chegar a ver tantas novidades, mas sou capaz de apostar que a Inteligência Artificial – IA, vai durar pouco! Possivelmente, será derrotada e, em breve, substituída por algum tipo de Imbecilidade Autêntica – IA, como comprova o crescente nível das estultícias glamourosas dos políticos, com ares de supina sapiência asnática. E o que é pior, são “aplaudidos” pela mídia do Sistema!
Ilustração e Edição: Jornal Rio de Flores
Luiz Roberto da Rocha Maia. Nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e Brasília e, atualmente, em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta anos de atividade cultural. Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas. Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP; MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal. Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro “O Diário de Lili Beth”, pela editora Viseu – 2021; e colaborou com a Coluna Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes.
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| Edição e Direção Geral Renato Galvão |




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