sexta-feira, 8 de novembro de 2024

 

A casa ainda está lá! Avenida Edson Passos, Alto da Boa Vista. Pouca coisa parece ter sido modificada. Foi construída para durar muito tempo! Era costume, naquele tempo, construir um imóvel, que deveria servir como um bem de família. Mobiliada em estilo clássico, foi decorada com objetos de valor artístico, porcelanas e biscuits recolhidos nos leilões e antiquários. Enormes tapetes persas, autênticos, muito coloridos, cobriam o chão da sala, e, nas paredes, quadros de pintores realistas antigos. Tudo ali tinha sido escolhido pela dona da casa!

Enquanto o garoto brincava com os carrinhos e soldadinhos de chumbo, espalhados pelo assoalho, a velhinha, sentada no sofá, costurava mais um dos inúmeros vestidos de noiva que, com grande prazer, todos os anos, dava de presente para moças das favelas. Enquanto costurava com esmero e carinho, aproveitando o tempo na sala, ia contando ao pequeno ouvinte, com comentários ricos de detalhes, suas histórias da vida já bem vivida.

Certa vez, a vovozinha escolheu, como tema das suas recordações, comparações sobre o progresso e a evolução das coisas. O menino, talvez ainda com seis ou sete anos, perguntava muitas coisas engraçadas, que sua curiosidade infantil queria saber. Ela andava perto dos sessenta e poucos anos, forte e saudável, mas, como a expectativa de vida das mulheres da época era pouca, ela já se dizia muito idosa. Essa tal questão da expectativa de vida é uma das primeiras diferenças que notamos, entre o tempo antigo e o agora. Naquela época, o brasileiro tinha como expectativa de vida, no máximo, 40 anos; imagina então passar dos oitenta anos! Era uma coisa inacreditável!

Algumas das referências mais marcantes, ela recordava bem; diziam respeito ao surgimento do rádio e da TV (preto e branco); sem falar na expansão e o crescimento do telégrafo! Ela falava com admiração, quase incrédula, sobre motores dos automóveis movidos a petróleo, verdadeiros “bólidos” a correr a mais de 64 Km por hora! Também falava com admiração sobre o primeiro voo ao redor do mundo, em 1929, do famoso dirigível Graf Zeppelin. A velhinha era uma mulher muito bem-informada, bastante politizada, para os padrões femininos de seu tempo, seguramente, uma exceção! Tinha assunto para muitas horas de conversa!

Admirava-se muito, como havia testemunhado tantas e formidáveis mudanças e avanços tecnológicos. Desde menina, ela teve a felicidade de ver, por exemplo, o surgimento do avião, a democratização do uso da luz elétrica nas ruas e casas, com o que foi possível o aparecimento dos primeiros aparelhos de som de alta-fidelidade, o rádio FM e a televisão com imagens coloridas, geladeiras, máquinas de lavar roupas, aspirador de pó, e automóveis ainda mais rápidos etc. Ela comentava sobre o espanto e admiração das pessoas, diante de tantos avanços tecnológicos, coisas que em sua infância pareciam impossíveis! Depois que viu o surgimento da televisão, ela ainda viu falar sobre os primeiros computadores eletrônicos IBM; e quando, com mais de oitenta e quatro anos, viu nascerem os bisnetos, pôde comemorar muito as notícias dos primeiros astronautas no espaço. Foi testemunha de inovações, nunca imaginadas em outros tempos!   

 

Quadro: "Na sala com vovó!" - 2005 - Rocha Maia

O mundo nunca parou de evoluir! A diferença sempre foi a velocidade que ele munda! Assim como a velhinha presenciou avanços, nós também estamos em plena era de mudanças radicais, onde o que me parece ser mais desafiador é conseguirmos nos adaptar aos novos paradigmas, ditados por processos de modernização e de surgimento de novas tecnologias. Haja capacidade para acompanharmos tantas coisas diferentes, acontecendo diariamente. Antes, as modificações eram tão lentas que nem chegavam a ser percebidas numa geração. Por vezes as coisas só eram modificadas a cada mil ou cem anos, depois mudavam a cada geração, chegando a ser radicais a cada década. Havia tempo para que as pessoas se adaptassem ao novo, ao moderno como se costuma dizer!

De alguns tempos para cá, as coisas passaram a mudar quase obrigatoriamente, dentro de uma espécie de obsolescência planejada! Primeiro a cada ano, numa espécie de programação mercadológica, com o lançamento de novo estilo ou modelo para tudo! Isso é tão rápido, que muitas vezes nem percebemos as fases de mudança, como vemos acontecer com os carros, roupas, aparência pessoal, modismos diversos e novos produtos e serviços, que interferem na mudança de hábitos e costumes. Nesse aspecto podemos citar, como exemplo, a mobilidade social das novas gerações. Praticamente ninguém mais nasce, cresce, reside e trabalha na mesma cidade em que um dia irá se aposentar e falecer. A velocidade avança. Já estamos no limiar da perda de padrões de referência em geral, capazes de nortear comportamentos e processos não apenas empresariais, mas também sociais e econômicos! De alguma forma difícil de entender, a marcha da insensatez acelera em direção do abismo! As pessoas vão dormir de uma forma, pensando de um jeito e crendo em alguma coisa, mas acordam; e já são outros seres, vivendo numa outra realidade com alguma dificuldade! Ficam bastante perplexas, nem lembram bem como antes era aquilo, que, até ontem, tinha uma definição clara, e no momento seguinte passa a ter valor inversamente diferente.

O pior é que não se sabe mais o que seremos no amanhã! As próprias linguagens, nas diversas formas usadas na comunicação interpessoal, começam a ser de difícil compreensão. Mesmo com o surgimento de poderosas tecnologias de tradução instantânea de centenas de idiomas, perdemos a noção do sentido exato do que é a comunicação. As mídias tradicionais já nem mais existem no cotidiano. Não se pode mais garantir que o uso de um simples dicionário possa nos permitir acesso ao vocabulário de um idioma. Quer uma prova disso? Estabeleça o início de um diálogo com algum jovem morador na vizinhança. Ele até pode se dizer bilíngue, mas daí poder compreender a sua mensagem vai uma distância muito grande. Certamente, será capaz de estabelecer algum nível de comunicação, via celular, mas em termos de compreensão da mensagem, isso não será possível! As pessoas quase não se comunicam mais diretamente, ao vivo e a cores.

Promova um teste assim: convide uma pessoa jovem qualquer para conversar. Se você conseguir que ela pare e sente-se, para falar com você, parabéns! Você já terá vencido uma primeira etapa. Logo a seguir, veja se consegue que ela olhe para você, que pare de olhar no celular, por poucos minutos! Certamente, logo ela estará abduzida pela “telinha”, envolvida por algum desses abomináveis joguinhos eletrônicos ou vídeos aloprados. Conseguiu? Parabéns, novamente! Então solicite que o jovem fale sobre aquilo que ele estava fazendo com tanta atenção, supondo que estivesse jogando. Prepare-se! Quem, agora, vai ficar desconectado será você! O seu interlocutor irá falar sobre coisas que, na sua condição de simples mortal, possivelmente, vão parecer totalmente fora de propósito do seu domínio e entendimento.

Contudo, vou logo avisando. Prepare-se par sofrer uma forte agressão! Você simplesmente irá se sentir desqualificado, pelo seu interlocutor, quando ele deixar você falando sozinho e seguir em frente sem nem dar um tchauzinho!

Quadro: "Nem sempre foi assim" - 2003 - Rocha Maia

A lógica desses esquemas eletrônicos, que estão a chamar de jogos, não existe para os terráqueos com mais de trinta anos.

Mas então, vendo que você não vai entender nada daquilo que o jovem está lhe falando, finja que vai ao banheiro..., e saia de fininho! Noutros tempos, de outros tipos de jogos, eu diria: “Tire o time de campo!”

Resumindo a história! As mudanças à moda antiga, não existem mais, por processos de sucessivas e contínuas alterações, capazes de aperfeiçoar alguma coisa. Atualmente, o que se passa, é pura ruptura nos processos. As coisas marcham até um determinado ponto; e, simplesmente, desaparecem na profundeza de um abismo, da falta de lógica, que interrompe o fluxo e a direção do assunto até então dominante. Sinta o apocalipse chegando!

Quer ver como aconteceu? Onde foi parar o mais perfeito e complexo relógio suíço? Sumiu? Não, o telefone celular..., comeu! O velho despertador para acordar a casa toda, quando tocava aquele alarme estridente? Sumiu! Onde foi parar o telefone fixo, que todas as famílias tinham em casa, com o maior orgulho? Sumiu! O celular...? Sim, comeu! A fantástica máquina fotográfica digital, hipermoderna, cadê? Sumiu! O celular..., comeu! Porém, nem tudo o telefone celular comeu! Quer ver? A bicicleta movida a pedal? E o retroprojetor na sala de aula? E a presença física dos funcionários, diariamente, nos postos de trabalho nas empresas? VOCÊ JÁ REPAROU, no que está acontecendo com aparelhos domésticos? Televisores, toca disco, gravadores, vídeos, VHS, ...o que está acontecendo? Parece que estão sumindo também!

A sucata tecnológica se transformou num problema! Onde descartar aparelhos eletrônicos sem uso?  Um problemão para os serviços de limpeza urbana de todas as cidades. As pilhas e baterias, assim como as embalagens de plástico jogadas no lixo se transformaram em pandemia. O mercado de reciclagem pelos antigos ferros-velhos, hoje transformados em cooperativas de catadores de lixo, tende a ser fonte segura de renda para muitas famílias. O que está acontecendo?

O mercado de trabalho está cheio de profissionais ociosos, por não encontrarem mais oportunidades de emprego, dentro de suas atividades técnicas de formação, em razão de serem profissões extintas, como é o caso de sapateiro, relojoeiro, chapeleiro, telefonista, leiteiro, vendedor de enciclopédia, radiotelegrafista, datilógrafo etc. Diversas outras profissões estão em vias de extinção, como caixa de supermercado, ascensorista, operador de mimeógrafo, motoristas de taxi, linotipista, afiador de faca e tesoura, fotógrafo, e muitas outras.

Por outro lado, também como resultado da velocidade das transformações e do surgimento de novos processos, sem chegar a ser antídoto para a mortalidade de ocupações de trabalho, surgem inúmeras novas profissões, muitas ainda sem regulamentação ou formação técnica apropriada ou especialização de mão-de-obra. Vou citar algumas bastante badaladas: Youtuber; Personal Training; Personal Shopper; Cuidador de Idosos; Influencer; DJ; Videomaker; Cuidador de Animais; Gestor de Mídia Social, Técnico em Telemedicina, Especialista em Marketing Digital etc.

Não sei se vou chegar a ver tantas novidades, mas sou capaz de apostar que a Inteligência Artificial – IA, vai durar pouco! Possivelmente, será derrotada e, em breve, substituída por algum tipo de Imbecilidade Autêntica – IA, como comprova o crescente nível das estultícias glamourosas dos políticos, com ares de supina sapiência asnática. E o que é pior, são “aplaudidos” pela mídia do Sistema!      

Texto e Telas: Rocha Maia
Ilustração e Edição: Jornal Rio de Flores   

Luiz Roberto da Rocha Maia. Nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e Brasília e, atualmente, em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta anos de atividade cultural. Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas. Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP; MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal. Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro “O Diário de Lili Beth”, pela editora Viseu – 2021; e colaborou com a Coluna Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes.  

Edição e Direção Geral
Renato Galvão

                                                                                               

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