quarta-feira, 24 de abril de 2024

 

Figura 1: Ilustração Jornal Rio de Flores

Talvez, em razão, dos assuntos abordados nos meus artigos publicados, os amigos sempre acabam comentando alguma coisa. Creio que assim aconteceu neste caso. Nem sei se havia algum cabaré naquela cidade! Quem me falou que aquele era o último? Foi um colega de boteco! Ele falava sobre o assunto como quem, realmente, tinha conhecimento de causa. Mas, não importa se aquele era o primeiro ou o último Cabaré daquela cidade, localizada às margens do Rio São Francisco. O que me interessou na história que ele me contou? Os “causos” e os personagens, com os quais meu amigo convivera, era o que prestava na narrativa! Os contos dele, com trejeitos que fazia, prendiam a minha atenção e me faziam rir!

Contava ele as histórias, em detalhes tão minudentes, que, nesse caso, vou até evitar repetir, para não correr o risco de facilitar a identificação, caso algum leitor saiba das particularidades que me foram contadas. Eram detalhes engraçados, do cotidiano do lugar, sórdidos algumas vezes, porém indispensáveis à compreensão daquele mundinho tosco e fechado! E como as coisas se passavam por lá?

Figura 2: Tela: Uma noite no Cabaré de ... Por Rocha Maia

O ritmo bem cadenciado do xote, no salão de dança, algumas vezes era marcado por uma espécie de sapateado. O lugar funcionava como botequim improvisado, onde algumas garrafas tinham o nome de quem as haviam comprado. Eram bebidas fortes, destiladas, algumas com nomes estranhos; outras, engraçados! As preferidas eram as cachaças: “Leite de Xota”; “Lágrima da Virgem” e “Amansa Corno”!  Muitas eram da mais pura “branquinha”, sem qualquer identificação da origem ou do alambique. Certamente, eram de boa procedência, mesmo sem ter marca; entretanto, o cliente devia confiar na qualidade oferecida pela casa. Até mesmo porque, qualquer uma delas, depois da quarta dose, era tudo igual. Diferença mesmo só era possível notar no dia seguinte, conforme a ressaca se apresentasse. Uns mais “calejados”, com o fígado saturado pelo álcool, afirmavam ser capazes de diferenciar as melhores caninhas pelo cheiro da pinga, desde que “entregassem” a parte do “santo do dia”.

Para o chão iam também todas as “bitucas” de tabaco não fumado. Não faziam parte das “ofertas”; apenas eram esmagadas com os pés! Vocês sabem qual era o santo mais festejado naquele cabaré? Alguém pensou em Santo Arnulfo? Nada disso, porque Arnulfo é santo dos cervejeiros! Pra quem bebe cachaça, São Benedito é o homenageado, também muito conhecido nos Terreiros como Ossain, o “Preto Velho”.

Na “orquestra” do Cabaré, liderada pela sanfona de Zé de Jacó, destacava-se o acordeom de Luiz, sempre bem afinado. No pandeiro tocava Severino, mestre no samba de roda e do chorinho à moda carioca. Tinha ainda uma viola, sempre disponível, para algum cliente que quisesse ele próprio tocar e cantar. Por fim, fechando o conjunto, lá estavam no surdo, sempre firme, o Mané Virgulino, com seu “TUM, TUM, TUM”! Pertinho dele, discreto, o triângulo gostoso do Binho de Zeca. O repertório? Sempre o mesmo! Abriam a noite com: “Eu vou mostras pra vocês, como se dança o baião, e quem quiser aprender é favor prestar atenção”, para logo depois, puxando no sotaque nordestino, se ouvir: “Xaxado é dança macha, dos cabra de Lampião, Xaxado, xaxado, xaxado, vem lá do sertão”. De vez em quando, um toca-discos bem antigo, fazia o revezamento, tocando long-plays com boleros e canções; os maiores sucessos! Cantores consagrados! Eram as Vozes dos Reis e Rainhas do Rádio, como Nelson Gonsalves; Emilinha Borba; Ângela Maria; Jackson do Paneiro; Cascatinha e Inhana; e as irmãs Linda e Dircinha Batista. Os frequentadores mais “mudernos”, naquela época, chegaram a ouvir, na “Victrola”, músicas de Nelson Ned; Agnaldo Timóteo; Reginaldo Rossi; ou dos irmãos Luiz e Zé Gonzaga.

O que bagunçava um pouco a festa? Somente quando botavam, “acidentalmente”, para rodar, algum disco riscado.  Vez ou outra, pra tumultuar, alguém colocava um diacho daquele arranhado, pra atrapalhar o embalo do “rala-bucho”. Mesmo assim, apesar das risadas e vaias, que logo apareciam, não faltavam pares a dançar. Para quem tinha molejo nas cadeiras, bastava ficar remexendo no ritmo, sem largar a dama, que logo-logo chegava alguém para dar um peteleco na agulha; era o bastante, logo parava de repetir no bolachão “xaxado-ado-ado-ado-ado”.  Briga e brabeza era coisa rara no lugar. Fora dos períodos de campanhas eleitorais, os frequentadores formavam uma espécie de grande-família; todos se conheciam e se respeitavam bem! Quando aparecia um forasteiro, os clientes podiam ficar tranquilos; certamente, aquele cabra era convidado de alguém da casa. Nem sempre, lá dentro, era tão calmo o tempo; em alguns momentos ficava mais “escuro”, é verdade! Mas, o mais comum de acontecer, escurecia bastante, quando alguma lâmpada queimava.

Quando “Coronel” Airson, vindo de Bodocó, resolvia passar pelo Cabaré, para se divertir um pouco, convidava seus correligionários da política local. Naquele dia, a segurança era grande, redobrada! Tinha capanga até por riba dos telhados das casas vizinhas. Fumante inveterado, o tal “Coronel” parecia uma chaminé de Maria Fumaça, de tanto tabaco que tragava. Vestido com seu indefectível paletó de linho alvejado, o homem fazia questão de dançar e beber, com todas as meninas disponíveis. Respeitador, é certo! Porém não aceitava molecagem, nem sacanagem com ele. Caso alguma quenga se excedesse nas intimidades, logo era “convidada” a dar um “passeio” no quintal.

Outro cliente conhecido, merecedor de tratamento destacado, era o baixinho, abusado, caolho, único médico da cidade, o Ginecologista Doutor Domingos! Homem de meia idade, solteirão, que se vangloriava, com amigos, de ser o único, a saber qual das moças da localidade ainda era realmente virgem. Enchia a boca para dizer: “Nem o pároco da igreja matriz sabe tanto como eu!”. Uma vez, “Coronel” Airson, de riba de sua “máxima” autoridade, indagou, porque seria o médico, não o Padre, quem mais poderia saber das referidas estatísticas, sobre as senhoras e as moças locais? Dizem as línguas perversas que Dr. Domingos respondeu assim, depois de umas boas talagadas: “O Padre tem ouvidos atentos no confessionário; mas não vê nada! Sou eu, que tenho um olho só, quem enxerga tudo. Portanto, como diz o povo, “em terra de cego, aquele que tem um olho é Rei!”

O comentário rendeu “léguas” de mexericos, quando foi ouvido por algumas das mulheres no Cabaré. Acabou indo parar nos ouvidos do Padre! Ninguém sabe ao certo se houve resposta verdadeira! Comentavam que, o Pároco, mandou um recado ao médico, dizendo que o confessionário ganhava do consultório, não naquilo que via, mas naquilo que fazia! A resposta não tardou a ganhar interpretações! Algumas eram respeitosas e puras, outras nem tanto! A versão que ganhou maior credibilidade foi de puro veneno, quando alguém acrescentou às palavras da resposta do Padre algo assim: “Doutor, ao final das minhas missas, observe a quantidade de crianças que me cercam e abraçam, gritando: -Sua bênção Padrinho Padre Diogo. Coisa que eu nunca vi acontecer com o doutor, quando está no consultório ou anda nas ruas!”

Além de beber muito, o médico era convencido! Vestia-se todo de branco, com gravata vermelha e chapéu ao estilo Santos Dumont. Se considerava um pouco acima da lei e dos poderes políticos locais. As quengas que apareciam no Cabaré, comentavam ser ele, por força da profissão, detentor de segredos de intimidades das pessoas, e que, caso fossem reveladas, poderiam abalar as estruturas da sociedade local, quiçá do País! Nas noites de cabaré, ele era visto constantemente bolinando mulheres e efeminados. Em tom de deboche, rindo mesmo, o médico afirmava que estava..., apenas fazendo um “exame-de-toque!”. Confirmando a galhofa, assumia que tinha nascido com a mão boba de apalpador, motivo que o levou a escolher a especialidade!

“Que absurdo!”. Assim o povo comentava!

Aquele era um dos ambientes frequentados pelos poderosos da comunidade. Tinha a preferência dentre todos os “bondosos” membros da elite social. Era um estilo de vida que jamais mereceu qualquer crítica, nem mesmo vinda do púlpito da Igreja ou da delegacia local, afinal, aqueles senhores, eram mantenedores de obras “caridosas”, com polpudas doações anuais, para benemerências sociais, em nome das oligarquias que se revezavam no poder estadual. Quando não eram os Coelho, eram os Ribeiro Rosado, mas podiam ser os Monteiro de Mello ou também os Bezerra da Silva. Por baixo dos panos, todos ficavam satisfeitos a dividir e controlar os poderes locais.

Mas, como tudo na vida, um dia a história se acaba! Olhando a evolução das civilizações, podemos entender como determinados “equipamentos” da vida urbana, surgiram, cresceram e depois se transformaram ou simplesmente acabaram. Assim foi com os grandes anfiteatros romanos, viraram teatros e, atualmente, nossos estádios. Da mesma forma, em menor escala, aconteceu esse mesmo tipo de transformação com as tabernas medievais, que viraram albergues de viajantes e que hoje são luxuosos motéis.  Alguns desses “equipamentos” do cotidiano urbano continuam a evoluir. Avançam nos conceitos modernos de serviços prestados ao turismo, porém outros, como os cabarés, chegam ao limite da existência; os que ainda persistem são os derradeiros. O tempo tornou-se implacável! A política nacional havia mudado radicalmente. Naquela altura já se ouvia falar dos Anos de Chumbo! Os conchavos partidários eram diferentes; começaram a aparecer uns tais de “biônicos”, alguns eram mesmo “eleitos” como interventores. Muitas coisas mudaram! Não sei ao certo, mas, parece, que o Cabaré dessa história também chegou ao final...; ou virou prostíbulo em Brasília!  De um lugar, tão badalado no passado, cheio de histórias para contar, de amores e traições, frequentado por gente importante e influente na vida daqueles barranqueiros, após ter perdido igualmente sua função social, foi vendo minguar a clientela mais abastada. Política e financeiramente, ficou inviável mantê-lo funcionando, advindo assim a decadência daquele último cabaré na cidade ...! 

Texto e Tela (Figura 2): Rocha Maia
Ilustração (Figura 1): Jornal Rio de Flores

Luiz Roberto da Rocha Maia. Nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e Brasília e, atualmente, em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta anos de atividade cultural.
Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas.
Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP; MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal.
Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro “O Diário de Lili Beth”, pela editora Videu – 2021; e colaborou com a Coluna Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes. 

Edição e Direção Geral
Renato Galvão


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