Figura 1: Ilustração Jornal Rio de Flores |
Talvez, em razão,
dos assuntos abordados nos meus artigos publicados, os amigos sempre acabam
comentando alguma coisa. Creio que assim aconteceu neste caso. Nem sei se havia
algum cabaré naquela cidade! Quem me falou que aquele era o último? Foi um
colega de boteco! Ele falava sobre o assunto como quem, realmente, tinha
conhecimento de causa. Mas, não importa se aquele era o primeiro ou o último Cabaré
daquela cidade, localizada às margens do Rio São Francisco. O que me interessou
na história que ele me contou? Os “causos” e os personagens, com os quais meu
amigo convivera, era o que prestava na narrativa! Os contos dele, com trejeitos
que fazia, prendiam a minha atenção e me faziam rir!
Contava ele as
histórias, em detalhes tão minudentes, que, nesse caso, vou até evitar repetir,
para não correr o risco de facilitar a identificação, caso algum leitor saiba das
particularidades que me foram contadas. Eram detalhes engraçados, do cotidiano
do lugar, sórdidos algumas vezes, porém indispensáveis à compreensão daquele
mundinho tosco e fechado! E como as coisas se passavam por lá?
Figura 2: Tela: Uma noite no Cabaré de ... Por Rocha Maia
O ritmo bem cadenciado do xote, no salão de dança, algumas vezes era marcado por uma espécie de sapateado. O lugar funcionava como botequim improvisado, onde algumas garrafas tinham o nome de quem as haviam comprado. Eram bebidas fortes, destiladas, algumas com nomes estranhos; outras, engraçados! As preferidas eram as cachaças: “Leite de Xota”; “Lágrima da Virgem” e “Amansa Corno”! Muitas eram da mais pura “branquinha”, sem qualquer identificação da origem ou do alambique. Certamente, eram de boa procedência, mesmo sem ter marca; entretanto, o cliente devia confiar na qualidade oferecida pela casa. Até mesmo porque, qualquer uma delas, depois da quarta dose, era tudo igual. Diferença mesmo só era possível notar no dia seguinte, conforme a ressaca se apresentasse. Uns mais “calejados”, com o fígado saturado pelo álcool, afirmavam ser capazes de diferenciar as melhores caninhas pelo cheiro da pinga, desde que “entregassem” a parte do “santo do dia”.
Para o chão iam também todas as “bitucas”
de tabaco não fumado. Não faziam parte das “ofertas”; apenas eram esmagadas com
os pés! Vocês sabem qual era o santo mais festejado naquele cabaré? Alguém
pensou em Santo Arnulfo? Nada disso, porque Arnulfo é santo dos cervejeiros!
Pra quem bebe cachaça, São Benedito é o homenageado, também muito conhecido nos
Terreiros como Ossain, o “Preto Velho”.
Na “orquestra” do Cabaré, liderada
pela sanfona de Zé de Jacó, destacava-se o acordeom de Luiz, sempre bem afinado.
No pandeiro tocava Severino, mestre no samba de roda e do chorinho à moda
carioca. Tinha ainda uma viola, sempre disponível, para algum cliente que
quisesse ele próprio tocar e cantar. Por fim, fechando o conjunto, lá estavam no
surdo, sempre firme, o Mané Virgulino, com seu “TUM, TUM, TUM”! Pertinho dele,
discreto, o triângulo gostoso do Binho de Zeca. O repertório? Sempre o mesmo!
Abriam a noite com: “Eu vou mostras pra vocês, como se dança o baião, e quem
quiser aprender é favor prestar atenção”, para logo depois, puxando no sotaque
nordestino, se ouvir: “Xaxado é dança macha, dos cabra de Lampião, Xaxado,
xaxado, xaxado, vem lá do sertão”. De vez em quando, um toca-discos bem antigo,
fazia o revezamento, tocando long-plays com boleros e canções; os maiores
sucessos! Cantores consagrados! Eram as Vozes dos Reis e Rainhas do Rádio, como
Nelson Gonsalves; Emilinha Borba; Ângela Maria; Jackson do Paneiro; Cascatinha
e Inhana; e as irmãs Linda e Dircinha Batista. Os frequentadores mais “mudernos”,
naquela época, chegaram a ouvir, na “Victrola”, músicas de Nelson Ned; Agnaldo
Timóteo; Reginaldo Rossi; ou dos irmãos Luiz e Zé Gonzaga.
O que bagunçava um pouco a festa? Somente
quando botavam, “acidentalmente”, para rodar, algum disco riscado. Vez ou outra, pra tumultuar, alguém colocava
um diacho daquele arranhado, pra atrapalhar o embalo do “rala-bucho”. Mesmo
assim, apesar das risadas e vaias, que logo apareciam, não faltavam pares a
dançar. Para quem tinha molejo nas cadeiras, bastava ficar remexendo no ritmo,
sem largar a dama, que logo-logo chegava alguém para dar um peteleco na agulha;
era o bastante, logo parava de repetir no bolachão “xaxado-ado-ado-ado-ado”. Briga e brabeza era coisa rara no lugar. Fora
dos períodos de campanhas eleitorais, os frequentadores formavam uma espécie de
grande-família; todos se conheciam e se respeitavam bem! Quando aparecia um
forasteiro, os clientes podiam ficar tranquilos; certamente, aquele cabra era
convidado de alguém da casa. Nem sempre, lá dentro, era tão calmo o tempo; em
alguns momentos ficava mais “escuro”, é verdade! Mas, o mais comum de acontecer,
escurecia bastante, quando alguma lâmpada queimava.
Quando “Coronel” Airson, vindo de
Bodocó, resolvia passar pelo Cabaré, para se divertir um pouco, convidava seus
correligionários da política local. Naquele dia, a segurança era grande,
redobrada! Tinha capanga até por riba dos telhados das casas vizinhas. Fumante
inveterado, o tal “Coronel” parecia uma chaminé de Maria Fumaça, de tanto tabaco
que tragava. Vestido com seu indefectível paletó de linho alvejado, o homem
fazia questão de dançar e beber, com todas as meninas disponíveis. Respeitador,
é certo! Porém não aceitava molecagem, nem sacanagem com ele. Caso alguma
quenga se excedesse nas intimidades, logo era “convidada” a dar um “passeio” no
quintal.
Outro cliente conhecido, merecedor
de tratamento destacado, era o baixinho, abusado, caolho, único médico da
cidade, o Ginecologista Doutor Domingos! Homem de meia idade, solteirão, que se
vangloriava, com amigos, de ser o único, a saber qual das moças da localidade
ainda era realmente virgem. Enchia a boca para dizer: “Nem o pároco da igreja
matriz sabe tanto como eu!”. Uma vez, “Coronel” Airson, de riba de sua “máxima”
autoridade, indagou, porque seria o médico, não o Padre, quem mais poderia
saber das referidas estatísticas, sobre as senhoras e as moças locais? Dizem as
línguas perversas que Dr. Domingos respondeu assim, depois de umas boas
talagadas: “O Padre tem ouvidos atentos no confessionário; mas não vê nada! Sou
eu, que tenho um olho só, quem enxerga tudo. Portanto, como diz o povo, “em
terra de cego, aquele que tem um olho é Rei!”
O comentário rendeu “léguas” de
mexericos, quando foi ouvido por algumas das mulheres no Cabaré. Acabou indo
parar nos ouvidos do Padre! Ninguém sabe ao certo se houve resposta verdadeira!
Comentavam que, o Pároco, mandou um recado ao médico, dizendo que o
confessionário ganhava do consultório, não naquilo que via, mas naquilo que
fazia! A resposta não tardou a ganhar interpretações! Algumas eram respeitosas
e puras, outras nem tanto! A versão que ganhou maior credibilidade foi de puro
veneno, quando alguém acrescentou às palavras da resposta do Padre algo assim:
“Doutor, ao final das minhas missas, observe a quantidade de crianças que me
cercam e abraçam, gritando: -Sua bênção Padrinho Padre Diogo. Coisa que eu
nunca vi acontecer com o doutor, quando está no consultório ou anda nas ruas!”
Além de beber muito, o médico era
convencido! Vestia-se todo de branco, com gravata vermelha e chapéu ao estilo Santos
Dumont. Se considerava um pouco acima da lei e dos poderes políticos locais. As
quengas que apareciam no Cabaré, comentavam ser ele, por força da profissão,
detentor de segredos de intimidades das pessoas, e que, caso fossem reveladas,
poderiam abalar as estruturas da sociedade local, quiçá do País! Nas noites de
cabaré, ele era visto constantemente bolinando mulheres e efeminados. Em tom de
deboche, rindo mesmo, o médico afirmava que estava..., apenas fazendo um “exame-de-toque!”.
Confirmando a galhofa, assumia que tinha nascido com a mão boba de apalpador,
motivo que o levou a escolher a especialidade!
“Que absurdo!”. Assim o povo
comentava!
Aquele era um dos ambientes
frequentados pelos poderosos da comunidade. Tinha a preferência dentre todos os
“bondosos” membros da elite social. Era um estilo de vida que jamais mereceu
qualquer crítica, nem mesmo vinda do púlpito da Igreja ou da delegacia local,
afinal, aqueles senhores, eram mantenedores de obras “caridosas”, com polpudas
doações anuais, para benemerências sociais, em nome das oligarquias que se revezavam
no poder estadual. Quando não eram os Coelho, eram os Ribeiro Rosado, mas
podiam ser os Monteiro de Mello ou também os Bezerra da Silva. Por baixo dos
panos, todos ficavam satisfeitos a dividir e controlar os poderes locais.
Mas, como tudo na vida, um dia a
história se acaba! Olhando a evolução das civilizações, podemos entender como
determinados “equipamentos” da vida urbana, surgiram, cresceram e depois se
transformaram ou simplesmente acabaram. Assim foi com os grandes anfiteatros
romanos, viraram teatros e, atualmente, nossos estádios. Da mesma forma, em
menor escala, aconteceu esse mesmo tipo de transformação com as tabernas
medievais, que viraram albergues de viajantes e que hoje são luxuosos motéis. Alguns desses “equipamentos” do cotidiano urbano
continuam a evoluir. Avançam nos conceitos modernos de serviços prestados ao
turismo, porém outros, como os cabarés, chegam ao limite da existência; os que
ainda persistem são os derradeiros. O tempo tornou-se implacável! A política
nacional havia mudado radicalmente. Naquela altura já se ouvia falar dos Anos
de Chumbo! Os conchavos partidários eram diferentes; começaram a aparecer uns
tais de “biônicos”, alguns eram mesmo “eleitos” como interventores. Muitas
coisas mudaram! Não sei ao certo, mas, parece, que o Cabaré dessa história também
chegou ao final...; ou virou prostíbulo em Brasília! De um lugar, tão badalado no passado, cheio de
histórias para contar, de amores e traições, frequentado por gente importante e
influente na vida daqueles barranqueiros, após ter perdido igualmente sua
função social, foi vendo minguar a clientela mais abastada. Política e financeiramente,
ficou inviável mantê-lo funcionando, advindo assim a decadência daquele último
cabaré na cidade ...!
Edição e Direção Geral Renato Galvão |
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