Em 2024, comemoram-se duzentos anos da
aventura/desventura, do sonho, da ilusão corajosa que levou muitos prussianos –
ou, como queiram, alemães – a atravessar o Oceano Atlântico em busca de
melhores condições de vida no Brasil.
Não me detenho nos aspectos políticos e
econômicos de então, mas quero anotar que a História oficial aponta que, em 03
de maio de 1824, os primeiros imigrantes alemães chegaram ao Brasil e passaram
a habitar a região de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, que já fora uma colônia
de suíços.
Em 18 de julho do mesmo ano, 39 colonos
alemães desembarcaram em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, seguindo viagem e
instalando-se, a partir de 25 de julho, às margens do Rio dos Sinos, no que se
configuraria no atual município de São Leopoldo/RS.
A literatura brasileira é pródiga em
tematizar o assunto, a começar por Graça Aranha e seu romance “Canaã”, de 1902,
em que conta a história ficcional de Milkau e Lentz, dois colonos alemães com
visões do mundo antagônicas. Cabe lembrar que Graça Aranha, profissionalmente,
atuou no interior do estado do Espírito Santo e colheu inúmeras histórias e
relatos do processo migratório. Em “Amar, verbo intransitivo”, Mario de Andrade
insere uma mulher alemã, com uma visão absolutamente pragmática da vida no seio
de uma quatrocentona família paulistana. Por sua vez, a literatura produzida no
Rio Grande do Sul tem se ocupado de histórias versando sobre a colonização e o
desenvolvimento das colônias e das famílias alemães desde 1938, quando Vianna
Moog publicou “Um rio imita o Reno”. Os enfoques, claro, são bem variados.
Estudioso da colonização alemã no Rio Grande do Sul, Jean Roche (1969)
afirma que, antes do século XIX, era inconcebível um movimento migratório
espontâneo entre Alemanha e Brasil, por diversas razões, incluindo a distância,
a língua e a religião. A independência política do Brasil, sob Dom Pedro I,
mudaria essa realidade e, conforme Roche, houve uma primeira fase migratória
que se deu, exatamente, sob o Império, entre 1824 e 1889. É sempre conveniente
registrar que durante a Guerra dos Farrapos (1835-1845), não adentraram colonos
no Rio Grande do Sul.
Em 1855, foi criada a Colônia de Santo
Ângelo, que só foi instalada em fins de 1857: “ficou no Vale do Jacuí, a
montante de um cotovelo de captura que a isolava por suas quedas. Por falta de
meios de comunicação, seu progresso foi muito lento”. (ROCHE: 1969, p. 109)
Os colonos destinados àquela colônia
chegavam, via de regra, em barcaças pelo rio Jacuí, na localidade de Cerro
Chato. “Desde o começo, a Colônia esteve sempre sob a direção imediata e
pessoal do Barão von Kahlden, que gozava de alto conceito entre os colonos”
(WERLANG: 2002, p. 12). O primeiro grupo de colonos era proveniente da
Pomerânia, tendo partido de Hamburgo, passado pelo Rio de Janeiro, Rio Grande,
Porto Alegre e, por via fluvial, chegou à região. Angela Schumacher Schuh e
Ione Maria San Martin Carlos (1991) mencionam o diário de Pedro Rockenbach,
então um menino, como importante registro daquela empreitada: os colonos não
queriam viver na Colônia de Santo Ângelo – hoje, município de Agudo -, mas
foram instados a desembarcar e conhecer as imediações. Quando voltaram às
margens do rio, decididos a regressar, encontraram apenas as bagagens que
haviam trazido, as barcaças haviam partido.
Segundo Werlang (2002), a partir da década
de 1860, começou a medição e a ocupação de grande parte do atual município de
Paraíso do Sul – muito próximo à Colônia de Santo Ângelo. Por sua vez, em 1875,
o Barão von Kahlden e um sócio fundaram, no território de Cachoeira do Sul, a
colônia particular de Cerro Branco. Schwerz (2009, p. 71), neste aspecto,
elucida didaticamente:
O crescimento da
Colônia após 1860 iniciou uma nova fase de demarcação em locais conhecidos como
Rincão do Paraíso, pertencente à Bento José de Moraes, e Rincão da Contenda,
pertencente ao português Antonio Gomes da Silva, que compreendem hoje parte do
atual município de Paraíso do Sul.
Havia, porém, necessidade de mais terras
para serem ocupadas e cultivadas. Werlang (2002, p. 16-17) explica que:
A prática da
compra de terras por grandes agenciadores coloniais e a posterior venda para
imigrantes era comum em toda a região. Martins Pinto passou a vender as suas
terras situadas à margem direita do Jacuí, além de Manoel Gonçalves
Mostardeiro, na Colônia de Dona Francisca.
Assim sendo, os colonos atravessaram o rio
Jacuí e passaram a ocupar terras no atual município de Restinga Seca – local em
que eu nasceria em meados do século XX, cabe registrar que a minha mãe tinha
ascendência germânica e seus familiares incluem-se entre aqueles que deixaram o
Porto de Hamburgo em direção à nova terra.
Lacy Cabral Oliveira (1983), principal
estudiosa da História do município de Restinga Seca, refere a presença de
várias famílias de origem germânica nas terras que, outrora, haviam pertencido
à sesmaria da família Martins Pinto e que foram sendo, paulatinamente,
comercializadas, abrindo caminho para que os colonos passassem a residir,
principalmente, em São Miguel e Vila Rosa, duas localidades que, no presente,
constituem área rural do município. A autora cita, como exemplo, as famílias
Rohde, Hübner, Richter, Perske, Diettmer, Ehrhardt, Schwert, entre outras, que
se dedicaram, primordialmente, à agricultura. Ainda que os colonos também se
ocupassem de atividades comerciais e tivessem grande preocupação com a educação
dos filhos.
Alguns aspectos parecem-me aqui
relevantes:
-
O Brasil é fruto da miscigenação da sua gente: indígenas, negros,
açorianos/portugueses, alemães, italianos, suíços, que deram cores, sabores
diferenciados ao nosso país;
-
Enfrentamos preconceitos de variada ordem e talvez conhecer a gênese de cada
povo que aqui aportou pode, quem sabe, nos ajudar a conhecer melhor a nossa
própria origem;
-
Não apenas o Rio Grande do Sul sofreu o influxo da colonização europeia, ainda
que, os dois estados mais ao sul da federação – Rio Grande do Sul e Santa
Catarina – tenham recebido mais imigrantes alemães, italianos, poloneses,
suíços, assim sendo é preciso “ler” o entorno de cada região e (re) conhecer
quem somos;
-
Revisitar a literatura de imigração e suas variadas abordagens, em particular,
em datas comemorativas pode ser um instrumento válido para instigar a leitura
entre alunos dos diferentes níveis de ensino – necessariamente, passando pela
pesquisa desse tema.
Se você quiser saber mais sobre esse
ponto do mapa, escondido no coração do Rio Grande do Sul, chamado Restinga
Seca, que é, de fato e de direito, mescla de indígenas, negros, alemães e
italianos, me chama que eu conto.
Referências
OLIVEIRA, Lacy
Cabral. Evolução histórica, política e
administrativa do Município de Restinga Seca. Restinga Seca: ed. própria,
1983.
ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul I.
Tradução Emery Ruas. Porto Alegre: Editora Globo, 1969.
SCHUH, Angela
Schumacher; CARLOS, Ione Maria SanMartin. Cachoeira
do Sul em busca da sua história. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1991.
SCHWERZ, João
Paulo. Valores e conflitos na preservação
do patrimônio cultural: o olhar técnico e o olhar comum na identificação do
patrimônio arquitetônico de Agudo (RS). 2009, 230 p. Dissertação (Mestrado em Urbanismo,
História e Arquitetura da Cidade). Centro Tecnológico. Universidade Federal de
Santa Catarina, 2009.
WERLANG, William. A Família de
Johannes Heinrich Kaspar Gerdau: Um estudo sobre a Industrialização no Rio
Grande do Sul, Brasil. Agudo: Editora Werlang, 2002.
Ilustração: Jornal Rio de Flores
Profa. Dra. Elaine dos Santos. Natural de Restinga Seca/RS. Filha de Mario Cardoso dos Santos e Vilda Kilian dos Santos (in memoriam). Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Possui formação em espanhol pela Universidad de La Republica, Montevidéu. Autora do livro Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe, adaptação de sua tese de doutorado, e coautora em mais seis livros nas áreas do Direito, História e Literatura. Atuou como professora no ensino médio, na graduação e na pós-graduação. É revisora de textos acadêmicos. Cronista com participação em mais de 80 antologias. Antologista, com três antologias já organizadas. Participa de várias academias literárias gaúchas e nacionais. É detentora da Comenda “Cícero Pedro de Melo”, concedida pela Câmara Literária de Pomerode”, de Pomerode/SC; da Comenda “Maria Firmina dos Reis, concedida pelo Instituto Internacional Cultura em Movimento, Mundo Cultural World e Academia Maranhense de Ciências, Letras e Artes Militares; e da Comenda Barão de Mauá, honraria concedida pela Academia de Letras e Artes de Arroio Grande – ALAAG, de Arroio Grande/RS.
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| Edição e Direção Geral Renato Galvão |


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