segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

 


Em 2024, comemoram-se duzentos anos da aventura/desventura, do sonho, da ilusão corajosa que levou muitos prussianos – ou, como queiram, alemães – a atravessar o Oceano Atlântico em busca de melhores condições de vida no Brasil.

Não me detenho nos aspectos políticos e econômicos de então, mas quero anotar que a História oficial aponta que, em 03 de maio de 1824, os primeiros imigrantes alemães chegaram ao Brasil e passaram a habitar a região de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, que já fora uma colônia de suíços.

Em 18 de julho do mesmo ano, 39 colonos alemães desembarcaram em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, seguindo viagem e instalando-se, a partir de 25 de julho, às margens do Rio dos Sinos, no que se configuraria no atual município de São Leopoldo/RS.

A literatura brasileira é pródiga em tematizar o assunto, a começar por Graça Aranha e seu romance “Canaã”, de 1902, em que conta a história ficcional de Milkau e Lentz, dois colonos alemães com visões do mundo antagônicas. Cabe lembrar que Graça Aranha, profissionalmente, atuou no interior do estado do Espírito Santo e colheu inúmeras histórias e relatos do processo migratório. Em “Amar, verbo intransitivo”, Mario de Andrade insere uma mulher alemã, com uma visão absolutamente pragmática da vida no seio de uma quatrocentona família paulistana. Por sua vez, a literatura produzida no Rio Grande do Sul tem se ocupado de histórias versando sobre a colonização e o desenvolvimento das colônias e das famílias alemães desde 1938, quando Vianna Moog publicou “Um rio imita o Reno”. Os enfoques, claro, são bem variados.

Estudioso da colonização alemã no Rio Grande do Sul, Jean Roche (1969) afirma que, antes do século XIX, era inconcebível um movimento migratório espontâneo entre Alemanha e Brasil, por diversas razões, incluindo a distância, a língua e a religião. A independência política do Brasil, sob Dom Pedro I, mudaria essa realidade e, conforme Roche, houve uma primeira fase migratória que se deu, exatamente, sob o Império, entre 1824 e 1889. É sempre conveniente registrar que durante a Guerra dos Farrapos (1835-1845), não adentraram colonos no Rio Grande do Sul.

Em 1855, foi criada a Colônia de Santo Ângelo, que só foi instalada em fins de 1857: “ficou no Vale do Jacuí, a montante de um cotovelo de captura que a isolava por suas quedas. Por falta de meios de comunicação, seu progresso foi muito lento”. (ROCHE: 1969, p. 109)

Os colonos destinados àquela colônia chegavam, via de regra, em barcaças pelo rio Jacuí, na localidade de Cerro Chato. “Desde o começo, a Colônia esteve sempre sob a direção imediata e pessoal do Barão von Kahlden, que gozava de alto conceito entre os colonos” (WERLANG: 2002, p. 12). O primeiro grupo de colonos era proveniente da Pomerânia, tendo partido de Hamburgo, passado pelo Rio de Janeiro, Rio Grande, Porto Alegre e, por via fluvial, chegou à região. Angela Schumacher Schuh e Ione Maria San Martin Carlos (1991) mencionam o diário de Pedro Rockenbach, então um menino, como importante registro daquela empreitada: os colonos não queriam viver na Colônia de Santo Ângelo – hoje, município de Agudo -, mas foram instados a desembarcar e conhecer as imediações. Quando voltaram às margens do rio, decididos a regressar, encontraram apenas as bagagens que haviam trazido, as barcaças haviam partido.

Segundo Werlang (2002), a partir da década de 1860, começou a medição e a ocupação de grande parte do atual município de Paraíso do Sul – muito próximo à Colônia de Santo Ângelo. Por sua vez, em 1875, o Barão von Kahlden e um sócio fundaram, no território de Cachoeira do Sul, a colônia particular de Cerro Branco. Schwerz (2009, p. 71), neste aspecto, elucida didaticamente:

 

O crescimento da Colônia após 1860 iniciou uma nova fase de demarcação em locais conhecidos como Rincão do Paraíso, pertencente à Bento José de Moraes, e Rincão da Contenda, pertencente ao português Antonio Gomes da Silva, que compreendem hoje parte do atual município de Paraíso do Sul.

 

Havia, porém, necessidade de mais terras para serem ocupadas e cultivadas. Werlang (2002, p. 16-17) explica que:

 

A prática da compra de terras por grandes agenciadores coloniais e a posterior venda para imigrantes era comum em toda a região. Martins Pinto passou a vender as suas terras situadas à margem direita do Jacuí, além de Manoel Gonçalves Mostardeiro, na Colônia de Dona Francisca.

 

Assim sendo, os colonos atravessaram o rio Jacuí e passaram a ocupar terras no atual município de Restinga Seca – local em que eu nasceria em meados do século XX, cabe registrar que a minha mãe tinha ascendência germânica e seus familiares incluem-se entre aqueles que deixaram o Porto de Hamburgo em direção à nova terra.

Lacy Cabral Oliveira (1983), principal estudiosa da História do município de Restinga Seca, refere a presença de várias famílias de origem germânica nas terras que, outrora, haviam pertencido à sesmaria da família Martins Pinto e que foram sendo, paulatinamente, comercializadas, abrindo caminho para que os colonos passassem a residir, principalmente, em São Miguel e Vila Rosa, duas localidades que, no presente, constituem área rural do município. A autora cita, como exemplo, as famílias Rohde, Hübner, Richter, Perske, Diettmer, Ehrhardt, Schwert, entre outras, que se dedicaram, primordialmente, à agricultura. Ainda que os colonos também se ocupassem de atividades comerciais e tivessem grande preocupação com a educação dos filhos.

Alguns aspectos parecem-me aqui relevantes:

- O Brasil é fruto da miscigenação da sua gente: indígenas, negros, açorianos/portugueses, alemães, italianos, suíços, que deram cores, sabores diferenciados ao nosso país;

- Enfrentamos preconceitos de variada ordem e talvez conhecer a gênese de cada povo que aqui aportou pode, quem sabe, nos ajudar a conhecer melhor a nossa própria origem;

- Não apenas o Rio Grande do Sul sofreu o influxo da colonização europeia, ainda que, os dois estados mais ao sul da federação – Rio Grande do Sul e Santa Catarina – tenham recebido mais imigrantes alemães, italianos, poloneses, suíços, assim sendo é preciso “ler” o entorno de cada região e (re) conhecer quem somos;

- Revisitar a literatura de imigração e suas variadas abordagens, em particular, em datas comemorativas pode ser um instrumento válido para instigar a leitura entre alunos dos diferentes níveis de ensino – necessariamente, passando pela pesquisa desse tema.

            Se você quiser saber mais sobre esse ponto do mapa, escondido no coração do Rio Grande do Sul, chamado Restinga Seca, que é, de fato e de direito, mescla de indígenas, negros, alemães e italianos, me chama que eu conto.

Referências

OLIVEIRA, Lacy Cabral. Evolução histórica, política e administrativa do Município de Restinga Seca. Restinga Seca: ed. própria, 1983.

ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul I. Tradução Emery Ruas. Porto Alegre: Editora Globo, 1969.

SCHUH, Angela Schumacher; CARLOS, Ione Maria SanMartin. Cachoeira do Sul em busca da sua história. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1991.

SCHWERZ, João Paulo. Valores e conflitos na preservação do patrimônio cultural: o olhar técnico e o olhar comum na identificação do patrimônio arquitetônico de Agudo (RS). 2009, 230 p. Dissertação (Mestrado em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade). Centro Tecnológico. Universidade Federal de Santa Catarina, 2009.

WERLANG, William. A Família de Johannes Heinrich Kaspar Gerdau: Um estudo sobre a Industrialização no Rio Grande do Sul, Brasil. Agudo: Editora Werlang, 2002.


Texto: Profa. Dra. Elaine dos Santos
Ilustração: Jornal Rio de Flores

Profa. Dra. Elaine dos Santos. Natural de Restinga Seca/RS. Filha de Mario Cardoso dos Santos e Vilda Kilian dos Santos (in memoriam). Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Possui formação em espanhol pela Universidad de La Republica, Montevidéu. Autora do livro Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe, adaptação de sua tese de doutorado, e coautora em mais seis livros nas áreas do Direito, História e Literatura. Atuou como professora no ensino médio, na graduação e na pós-graduação. É revisora de textos acadêmicos. Cronista com participação em mais de 80 antologias. Antologista, com três antologias já organizadas. Participa de várias academias literárias gaúchas e nacionais. É detentora da Comenda “Cícero Pedro de Melo”, concedida pela Câmara Literária de Pomerode”, de Pomerode/SC; da Comenda “Maria Firmina dos Reis, concedida pelo Instituto Internacional Cultura em Movimento, Mundo Cultural World e Academia Maranhense de Ciências, Letras e Artes Militares; e da Comenda Barão de Mauá, honraria concedida pela Academia de Letras e Artes de Arroio Grande – ALAAG, de Arroio Grande/RS.


Edição e Direção Geral
Renato Galvão



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