quarta-feira, 25 de outubro de 2023

 

Figura 1 - Ilustração Jornal Rio de Flores

Certo dia, numa roda de amigos, papo comum, eu resolvi afirmar que, na vida, tudo é transitório, nada é para sempre! Alguém que lá estava presente, participando, comentou “concordando”, em tom de galhofa: - “Mas é lógico, amigo Rocha, na vida tudo é transitório, na VIDAAA! Porque, depois dessa aqui, na morte, tudo se eterniza!”

Sem aceitar o retrucado, fingi não ter entendido o comentário! Entrar em vertentes de escolas filosóficas, com esse negócio meio escatológico, poderia implicar em sérios riscos para os debates. Afinal, naquela ocasião e circunstância, quem haveria de querer adentrar por escolas peripatéticas, no melhor estilo de Aristóteles, para discutir sobre a origem e o fim fundamental das coisas?  Por exemplo, considerando uma sequência qualquer de tempo, não há um só segundo que se concretize, repetindo alguma coisa, como sendo igual aos fenômenos anteriores. Vivemos uma eterna mudança. Pode variar na velocidade e na forma essa mudança, mas sempre acontecerá uma nova fase. O universo, inclusive, por simples observação, nos ensina isso. Basta olhar como os dias e as noites vão acontecendo. Mas se alguém não desejar olhar o tempo passando, olhe um rio correndo para o mar.

Figura 2 - “Transição” – 2006 - Por Rocha Maia
Entendo a questão da transição, pensando na hipótese de que alguém creia que os dias se repetem, simplesmente, alternando noite e dia. Percebam que, em razão do movimento de rotação e translação do Planeta Terra, a cada fração de milésimo de segundo, nós nunca estaremos no mesmo lugar! Tudo e todos estão sempre se modificando, se não só na essência da matéria, muda também na localização, na longitude e na latitude.

Como demonstrou o químico francês Antoine Laurent Lavoisier, em 1785, pela Lei da Conservação das Massas, “Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma!”

Foi assim que, desafiando a minha criatividade, resolvi pintar um quadro que abordasse essa questão complexa: Transição! Loucura, né? Imagina, eu, um simples pintor naïf, em ingênuas pinceladas, querendo expressar essa ideia de transição! Possivelmente, devo ter errado, mas, assim mesmo, arrisquei na pintura. Botei a “caixola” pra funcionar!

Portanto, sem querer entrar no aspecto filosófico, resolvi refletir e colocar, na tela, alguns indicadores dessa temática, levantada pelo Pai da Química Moderna, Lavoisier! Naturalmente, fui adaptando aos meus princípios pessoais e simplórios de quem, sem a necessária instrução, apenas procura acordar todos os dias, para aprender um pouco mais. Tento fazer a minha parte no processo; vou pintando minhas histórias!

A transição é um fenômeno indubitável, algo indiscutível! Porém, sempre tem alguém que usa e abusa da mesma argumentação, peremptória, sobre o final da existência das coisas, a chamada morte!

Para a minha composição artística, levei em conta apenas a abordagem material, embora tenha me permitido, com alguma liberdade pictórica, imaginar os argumentos da abordagem espiritual denominada Transição Planetária, como é percebida nos ensinamentos sobre o assunto.

Convido os leitores a observarem a composição do quadro, na forma por mim apresentada. Em linhas gerais, resumidamente, vemos uma frondosa árvore, à beira de um largo rio. Personagens diversos estão nas cercanias; ocupados em diversas atividades cotidianas de laser. Ninguém está trabalhando, possivelmente por ser fim de semana ou feriado nacional.

De um lado do quadro, vemos forte luminosidade de raios solares que sugerem o amanhecer; do outro lado, o quadro apresenta sombras, denunciando a proximidade do anoitecer. Nesse ponto da pintura, introduzo o sentimento de dicotomia, que tanto marca a percepção humana do nascimento e da morte. Para aliviar esse sentimento, convido aos leitores olharem o rio que passa por ali, e que introduz a sensação de eternidade..., até um dia secar!

Uma pequena estrutura de madeira, localizada à beira do rio, sem a presença de um barco, remete a temática à ancoragem do sentimento, como nos portos, com partidas e chegadas, muitas vezes presentes nas nossas vidas. Quantas partidas e quantos retornos, utilizando-me das minhas próprias pernas ou de outros meios de transportes mais potentes, embarquei em processos de mudanças profundas e radicais, que mudaram radicalmente meus rumos. Meu currículo, ao me aproximar dos 76 anos de vida, bem representa esses constantes embarques e desembarques.

No quadro, como ocupação suplementar da tela, no pequeno porto, estão alguns personagens, envolvidos em suas atividades de pesca de caniço, e que, de certa forma, ainda que fisicamente próximos, estão alheios aos demais personagens. Há nisso uma simbologia: representa a atitude de distanciamento e de desinteresse humano, nas trocas e interações sociais. Cada um desses personagens pescadores, isoladamente, forma pequenos mundos reclusos, que, mesmo com abundância de possibilidades de troca de energias externas, mantêm atitude de individualismo! Tiremos das mãos desses personagens as varas de pescar; substitua-se por celulares, e o resultado será parecido, com o mesmo efeito de isolamento voluntário, que alguns indivíduos experimentam atualmente, mesmo estando conectados.

Mas não vamos complicar as coisas! Deixemos os pescadores; e passemos aos demais personagens! Reparem, do lado ensolarado, há crianças, muitas crianças, brincando sob os olhares de uma avó, de um casal e de uma moça, que ali, não só orientam os folguedos, mas representam também o papel de guardiões de valores e princípios culturais, transmitidos aos mais jovens, desde a infância até a adolescência, por meios de formas lúdicas de jogos, muitas vezes passados de geração em geração. Como representação desse processo, vemos: amarelinha; ciranda de roda; pique-esconde; pular corda; jogos com bola; balanço; trepar em árvores; bola de gude; pião etc.

A árvore serve como fronteira, interface da transição, quando saímos da adolescência e adentramos na maturidade. A noite tem sido para os jovens uma referência da fase de transição, quando a criança e o adolescente olham com ansiedade a desafiadora possibilidade de ficar na rua, na praça, no escurinho dos jardins, nas margens sombrias dos rios, fora dos olhares e cuidados dos mais velhos! Nessa parte do quadro, os personagens apresentam uma série de comportamentos ousados, na busca de um relacionamento mais íntimo entre pessoas. Percebemos a presença de uma fase marcante, em que a presença de pessoas mais adultas e responsáveis, torna-se rejeitada pelos jovens; esses, agora, arriscando caminhar em direção ao lado desconhecido das relações sociais, onde as dúvidas e incertezas de comportamento, com frequência, resultam em trilhar caminhos de maior maturidade ou responsabilidade.

No tronco da árvore, restam gravados registros testemunhais das promessas e juras, algumas vezes, feitas sem maiores reflexões, nessa fase encantadora da vida. São atos de pura paixão que, se bem conduzidos, levarão à maior de todas as transições nas vidas dos seres humanos; o nascimento daqueles que irão perpetuar a espécie, numa série infinita e incontrolável de mudanças. O futuro, embora condicionado no presente, no momento do “aqui e agora”, sempre desconhecido, estará lá no ponto mais escuro da caminhada da vida. Podemos até prevê-lo de forma vaticinada, mas nunca teremos a certeza do que chegará a ser colhido, ainda mais duvidoso sobre aquilo que exatamente desejamos ter, ser e estar.

Por certo que minha pintura não está completa; seria muita pretensão querer, num só quadro naïf, representar a complexidade do tema tratado. E não adianta reclamar, porque o projeto de vida é assim; e sempre será! O nada não existe! O Ser é, e ponto final! Não acredita? Leia os pensamentos de Parmênides, onde ele afirma que apenas o Ser é uno, eterno e imutável!

Outras interpretações, certamente, poderão ser intuídas pelos leitores, especialmente o público feminino, que tão bem sabe usar esse tipo de percepção, porém, dou-me por satisfeito com a simplicidade desta obra e o significado do título Transição!

Texto e Tela (Figura 2): Rocha Maia
Ilustração: Jornal Rio de Flores

Luiz Roberto da ROCHA MAIANasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e Brasília e, atualmente, em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta anos de atividade cultural. Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas. Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP; MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal. Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro “O Diário de Lili Beth”, pela editora Videu – 2021; e colaborou com a Coluna Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes. 

Edição e Direção Geral
Renato Galvão


 


2 comentários:

  1. Um texto bem escrito, numa abordagem superinteressante!
    Parabéns ilustre escritor!

    ResponderExcluir
  2. Um texto incrível, é uma interpretação guiada desse lindo quadro!

    ResponderExcluir