quinta-feira, 7 de setembro de 2023


O nome dele era Zé Terto. Foi o Curiboca mais famoso que por lá apareceu - apareceu, pois Curiboca não nasce, aparece; Curiboca não é causa, é consequência; nunca foi causa, nem das próprias origens. Mas, como eu ia dizendo, o Curiboca mais famoso que apareceu foi Zé Terto. Sua mãe era Zefa, que mãe não tivera e que, por isso, resolvera ter filho. “Não ter filho é pior do que não ter mãe...como não tenho filho nem mãe, sofro duas vezes...vou ter um filho, para sofrer só a metade” – conjeturava, ela. Na época que tinha “regra”, teve várias oportunidades de ter filhos. Seja casando-se com dois pretendentes que apareceram, seja se deitando nos escuros dos forrós, para onde algumas vezes foi arrastada por parceiros de dança. Resistiu àquele pecado sujo e imoral. Ficar nua na frente de um homem, nem pensar! Perguntou, certa vez, a um dos pretendentes, por que não poderiam se casar e viver como irmãos. O riso debochado dele ainda hoje a assusta. Confidenciou a uma amiga que achava que era tapada...que por ali não se faria o que se comentava e, muito menos, que passasse um menino. A amiga, compreensiva, pediu para ver. Saiu correndo e nunca mais tocou no assunto. Nem para pedir segredo de suas dúvidas anatômicas. Nesta fase da vida, entretanto, ainda lhe era muito forte o sentimento materno. Não relacionava o ciclo menstrual com a possibilidade de ter filho. Sabia, somente, que mulher depois de uma certa idade não tem filho. E este deveria ser seu caso. Nunca perguntou por quê. Tinha medo do espanto das amigas, como da outra vez.

Na impossibilidade de emprenhar, revolvera adotar Zé Terto, um enjeitado que era confundido com um saruê, tão feio que era; ou temiam que nesse bicho viesse a se transformar, aqueles que acreditavam em metamorfose humana; ou que assim o chamavam, por falta de caridade.

Zé Terto resistiu. Escondeu-se. Preferia viver no mato, comendo frutas, quando existiam, ou cuca de imbuzeiro, na falta delas; morando na toca de uma suçuarana que fora abatida por um bacamarte; barranqueando uma égua que o dono abandonara. Sempre aparecia nas feiras. Não respondia a perguntas, nem revidava os achincalhes. Calado chegava, calado saía. Mas sabia se esquivar do que não gostava. Até que um dia, cercado por Zefa nos fundos de uma bodega, não teve como evitar as perguntas daquela estranha. Foi a primeira vez que alguém lhe fora amável, pensou, ainda assustado, como aquela mulher que não conhecia nem de quem nunca ouvira falar, parecia gostar dele. Se soubesse externar sentimentos, teria dito que leu isto nos olhos dela. Se ela soubesse que aquele era seu sentimento, teria chorado. Chorado de alegria, antecipando a felicidade que teria ao vê-lo, pela primeira vez, dormindo em sua casa. E pensar que ele não só respondeu às suas perguntas, como também as fez a ela?

– Como é seu nome?

– Zé Terto...

– Pur que?...

– Num sei...e o seu?

– Mãe Zefa.

– Pur que Mãe?

– Num sei...

Saíram da bodega calados. Ele pensando no prato de comida prometido; ela, maquinando como propor ser sua mãe. Achar uma mãe assim à-toa não seria coisa fácil. Muito menos de se acreditar. Mais incrível ainda se ela nada quisesse em troca. Sabia e condenava o costume de pessoas que adotavam abandonados, os recebia como “pessoas da família”, mas que as exploravam em serviços domésticos. Viravam, de fato, cozinheiros, botadores de água, varredores. Quando mocinhas, serviam na iniciação sexual dos meninos. “Lá em casa chegou uma...não tem nem pentelho ainda”, contavam, em rodadas, os tesudos libidinosos, que nem o “cabresto” tinham quebrado. Se pretinhas, até o atavismo escravocrata do chefe da família se manifestava. Não tardavam a ser despejadas no cabaré mais próximo, com a fama de desencaminhadoras de jovens ou de destruidoras de lares. A criança que levavam na barriga, mais tarde, seria adotada, estabelecendo-se um ciclo cruel: abandonada/serviçal/amante/quenga/filha–da-puta/abandonada. Com o passar dos tempos, a cretinice dos exploradores substituiu a denominação ‘menor abandonado’, por ‘menor carente’, como se isto lhes diminuísse a humilhação do abandono. Mãe Zefa achava mesmo é que a troca de denominação escondia a culpa daquela atrocidade social. Com o seu Zé Terto seria diferente. Ele seria seu filho por inteiro. Não para demonstrar a sua complacência. Mas porque tinha sentimento de mãe por qualquer criança.    

Já que se dispusera a ser mãe, seria por inteiro: lhe arranjaria descendentes e ascendentes. Com ela tinha sido assim. Àquela altura já tinha a quem tomar a bênção e a quem abençoar; de quem herdar e para quem deixar os próprios bens; a quem temer e a quem dar ordens. Todos com nome, idade, grau de parentesco, preferência em seu coração, rejeição e tudo mais que todo Curiboca precisa para ser um Curiboca de verdade. Ele, nem ninguém, sabia porque o seu nome era Zé Terto. Perguntado, deixou entender que nunca soubera que as pessoas têm documentos. Aliás, sabia de pouquíssimas coisas, além daquelas do seu mundo. O que mais dificultava sua conversa era o pequeno vocabulário – menor ainda do que o pequeno mundo em que vivia. Sabia o nome das árvores, dos animais, das comidas, de alguns utensílios domésticos e os palavrões que resmungava quando se sentia ofendido. Somente. Aceitou Mãe Zefa como mãe porque não soube dizer não, diante de tanta amabilidade. Mesmo assim, desconfiava, já que nunca tivera favores de ninguém. Mas terminou gostando e tendo nela o que nem imaginava que filho pudesse ter. Se ser filho era aquilo, era bom ser filho - teria pensado, se pensar soubesse. Ela encheu-se de orgulho e esqueceu aquelas ideias de homem nu, de ser tapada. “Melhor assim” - confortava-se. “Tenho meu filho sem cometer os pecados da carne...posso agora me confessar e comungar, sem que o padre fique sabendo dos meus pensamentos, nem dos defeitos de minhas partes”. Cuidaria de seu filhote, como se tivesse saído de suas entranhas, sem o peso de pensar como ele teria entrado. Dali em diante seria sua mãe de fato. Não permitiria, inclusive, que dissessem que ele é filho adotivo, embora não tivesse pai. Que era filho de mãe solteira, pois todos sabiam – e acreditavam – que ela jamais seria capaz de se deitar com um homem. Falaria com Santinho para saber como “ajeitá os papel".  Santinho sabia, pois tinha como filho, em sua própria casa, o menino que fizera em uma quenga do cabaré. “Nunca se sabe, é verdade, se dele mesmo”, imaginava. “Mas soube misturar tanto o menino aos outros filhos que, ele mesmo, ficava sem saber qual deles era o filho-da-puta”.  Neste sentido, estava fácil, pois nem mãe de parição Zé Terto tinha. Ele não nasceu; ele apareceu.

Era assim chamado porque era terto. Quem lhe colocou este nome é deveras observador e dotado de grande capacidade de síntese. Ele é zé; além disso, é terto. Pronto! Com apenas meia linha ficava encerrada sua descrição. Seria desnecessário gastar mais tinta. Pra que escrever José Salustiano Netto, com dois t, se este nome em nada lhe corresponde? Herdou o nome do avô, pai da mãe adotiva, que também a adotara e que não tinha nem o apelido, nem a aparência terta. A mãe sempre o chamou de Salustiano, José, Zezinho, José Salustiano, Netto, Netinho, José Netto. Nunca, Zé, Terto ou Zé Terto. “Estes nomes não combinam com o meu pequeno” – pensava ela. Não entendia porque tal apelido. Além disso, viviam inventando outros nomes para seu rebento. Não já bastava Zé Terto, se nem Tertuliano ele é, como o vizinho de fazenda?   Salú, vá lá, mas Terto? Nem torto ele é, o que mais parece com terto. Mas ficou com medo de que passassem a chamá-lo, também, de Zé Torto. De olhar torto, sim; zarolho, não – como um dia o companheiro de escola zombou. Mas ficou com medo de que Zé Zarolho também lhe servisse de apelido. Até de Zé Coxo ameaçavam denominá-lo – uma maldade, pensava a mãe. Achava agradável a sua vozinha fina, miada, baixa, anasalada, mas não entendia porque, volta e meia, o tratavam por Zé Foem. O seu perfil côncavo-convexo – na barriga, um C, nas costas, um D - parecia, à sua mãe, um gesto pronto para um abraço. Mas ela ficou desapontada quando soube que mais um dos apelidos de seu filho era Zé Sanfoneiro. Gostava de tê-lo no colo, mesmo após os vinte anos. Cabia-lhe perfeitamente sentado de lado nas suas pernas, com a cabeça recostada no seu ombro. Assim o fez até o dia em que disseram que ele era muito mirrado. Tinha que evitar que ficasse conhecido por Zé Mirrado. Assustou-se quando alguém lhe gritou por Zé Torebinha. Pequeno, sim; mas torebinha, não – imaginou a mãe sem nada dizer. As suas perninhas curvas eram graciosas, achava a mãe até o dia que alguém perguntou por Zé Cambota. As pintinhas no rosto dele, para ela, eram sinal de puberdade. Pois não é que um estranho o gritou de Zé Pintado? Enraiveceu-se, a mãe. Ele demorava muito a entender as coisas. Ela explicava com paciência, por tratar-se de uma criança – de mais de vinte anos, mas uma criança. Descabelou-se quando o trataram por Zé Bilé. O cabelo avermelhado, para a mãe, era indicação da boa ascendência étnica do filho. Mas ela se angustiou quando soube que Zé Fogoió era mais um dos apelidos do filho mimado. Ele tinha um dedinho sobressalente na mão esquerda. A mãe achava uma graça o sexto dedo na sua mãozinha. Quase desmaiou quando soube da alcunha de Zé Vinte e Um. Suas orelhas grandes, finas e moles, pendentes da cabeça, lembravam o avô. Ela adorava a lembrança do pai no seu filho. Um dia, estragaram sua lembrança perguntando por Zé Orelhudo. Zé Terto estava sempre mostrando os dentes, feliz que era. A mãe se alvoroçou quando soube que nos forrós que começava a frequentar ele tinha a alcunha de Zé Dentuço. Injustiça! - esbravejou num murmúrio solitário.

Como se viu, não havia nada a acrescentar à descrição de Zé Terto, se já é terto. O que eu ia mesmo dizer é que sua vida e de toda aquela região – principalmente a região – mudou desde o dia em que Zé Terto se casou. Sim! Ele se casou com Maria Rosa, a cabocla mais faceira da redondeza. Ela o chama, ainda hoje, de “meu Zé Terto”. O que aconteceu aos dois depois, em nada aumentou ou diminuiu a admiração que Maria Rosa tinha pelo seu eleito. Ninguém, nem a mãe dele, acreditava em tal admiração, mas Maria Rosa exibia provas de sobra. Rejeitou proposta de mancebia com boiadeiro mais rico, com casa montada e conta aberta nas lojas e bodegas da cidade; rejeitou, proposta de casamento, na igreja e no cartório, com Zé Vintém - isto, depois de o proponente deixar de ser jogador e de se chamar Zé Vintém – para desespero de todas as moças casadoiras do lugar; rejeitou uma proposta para ser artista de um circo (de dois mastros!), que encantou os habitantes de toda a região. Rejeitou a proposta de um padre, que tinha fundado uma ordem, para ser freira, morar em convento, ter como único trabalho rezar pelas almas do purgatório e, portanto, se candidatar a santa; rejeitou a proposta do próprio pai para que se casasse com o filho do seu compadre, com quem tinha uma grande dívida que ficaria saldada. Rejeitou pedidos em casamento de todos que conheceram seu andar faceiro, seu sorriso picante e imaginaram tanta formosura por baixo de sua saia. Imaginaram, quase todos. Pois alguns garantiam tê-la visto nua tomando banho na cacimba-de-beber. A todos que rejeitou, deu a mesma reposta: “só gosto de meu Zé Terto...é cum ele que vô me casá”.  

Casado com Maria Rosa, filha de outro Curiboca que por lá apareceu, Zé Terto aos poucos foi deixado de ser terto; com o passar do tempo, deixaria até de ser Curiboca – torcia sua mãe. Quem tem origem não é Curiboca; e ele, em breve, na condição de pai, deixaria de ser Curiboca; ‘pelo menos isto’ – alfinetava Dona Ingrácia, a mãe de rosa, inconformada com a preferência da filha. ‘Se pelo menos fosse rico... mas não tem no cu o que o periquito roa...e a mãe?...uma macho-e-fêmea...dizem que ela tem o pinguelo tão grande que dá pra deflorar uma moça’ – completava, baixando a voz.

Até o dia do casamento, Zé Terto nunca tinha visto uma mulher nua, nem naquele dia se preocupou com tal fato. Suas peripécias libidinosas se deram, até então, como já foi dito, com a eguinha de seu Teotônio Martins. No segundo dia, Maria Rosa tomou todas as iniciativas, mesmo se arriscando a ser tida como sem-vergonha, pelo marido. Mas ele gostou. E daí em diante não pararam de ter filhos. Todos com nomes com W ou Y. Alguns com W e Y, outros com dois T. Um com os olhos azuis, lembrando um antepassado distante – orgulho da mãe de Rosa, cujo grau de parentesco ela esquecia, mas de nome Phillipe, tinha certeza. Escolheu os nomes de todos os seus netos. Quando a gravidez de Rosa era anunciada, ela disparava: se fô minino é Wellington, se fô minina é Laudecy.  Não dava oportunidade a Rosa, nem a Mãe Zefa e, muito menos, a Zé Terto. Não correria o risco de ter os netos chamados de Bil, Sebasto, Chico, Mané, Belinha, Zefa, Guidinha, Maroca, todos nomes de curibocas; daquela gentinha dali mesmo. “De pur mim, fio meu se chamava era João, Pedro, José, Manuel, Antônio e as minina tudo era Maria – da Graça, de Jesus, do Socorro, do Carmo, de Lurdes”, imaginava Zé Terto, sem dizer do seu desagrado por aqueles nomes esquisitos. Nunca foi de contrariar a sogra e não era por causa daqueles nomes, que os vizinhos até achavam bonitos, que iria aborrecê-la. Pensava em se antecipar na escolha do próximo nome. Mas, quando menos esperava, lá estava o Wanderley, já aceito por Rosa e aplaudido pela vizinhança.

Zé Terto continuou morando na casa da própria mãe, condição que ela impôs para permitir o casamento. “Aquele traste também já tá perto de morrer” - pensava Maria Rosa, inconformada. “Desde que venha todo dia me tomar a bença”, impôs a mãe de Rosa. Nem as imposições de parte a parte impediram Zé Terto e Rosa de viver um grande amor. O que cada parte permitia, eles faziam. O que não permitiam, deixavam para lá.

Texto: Francisco Siqueira
Edição e Ilustração: Jornal Rio de Flores

Edição e Direção Geral
Renato Galvão



  

Um comentário:

  1. Adoro ler os escritos de Siqueira, eles me fazem lembrar de algumas coisas de Curiboca que, talvez, eu tenho nas minhas origens. Parabéns amigo escritor e mestre.

    ResponderExcluir