O
nome dele era Zé Terto. Foi o Curiboca mais famoso que por lá apareceu -
apareceu, pois Curiboca não nasce, aparece; Curiboca não é causa, é
consequência; nunca foi causa, nem das próprias origens. Mas, como eu ia
dizendo, o Curiboca mais famoso que apareceu foi Zé Terto. Sua mãe era Zefa,
que mãe não tivera e que, por isso, resolvera ter filho. “Não ter filho é pior
do que não ter mãe...como não tenho filho nem mãe, sofro duas vezes...vou ter
um filho, para sofrer só a metade” – conjeturava, ela. Na época que tinha “regra”,
teve várias oportunidades de ter filhos. Seja casando-se com dois pretendentes
que apareceram, seja se deitando nos escuros dos forrós, para onde algumas
vezes foi arrastada por parceiros de dança. Resistiu àquele pecado sujo e
imoral. Ficar nua na frente de um homem, nem pensar! Perguntou, certa vez, a um
dos pretendentes, por que não poderiam se casar e viver como irmãos. O riso
debochado dele ainda hoje a assusta. Confidenciou a uma amiga que achava que
era tapada...que por ali não se faria o que se comentava e, muito menos, que
passasse um menino. A amiga, compreensiva, pediu para ver. Saiu correndo e
nunca mais tocou no assunto. Nem para pedir segredo de suas dúvidas anatômicas.
Nesta fase da vida, entretanto, ainda lhe era muito forte o sentimento materno.
Não relacionava o ciclo menstrual com a possibilidade de ter filho. Sabia,
somente, que mulher depois de uma certa idade não tem filho. E este deveria ser
seu caso. Nunca perguntou por quê. Tinha medo do espanto das amigas, como da
outra vez.
Na
impossibilidade de emprenhar, revolvera adotar Zé Terto, um enjeitado que era
confundido com um saruê, tão feio que era; ou temiam que nesse bicho viesse a
se transformar, aqueles que acreditavam em metamorfose humana; ou que assim o
chamavam, por falta de caridade.
Zé
Terto resistiu. Escondeu-se. Preferia viver no mato, comendo frutas, quando
existiam, ou cuca de imbuzeiro, na falta delas; morando na toca de uma
suçuarana que fora abatida por um bacamarte; barranqueando uma égua que o dono
abandonara. Sempre aparecia nas feiras. Não respondia a perguntas, nem revidava
os achincalhes. Calado chegava, calado saía. Mas sabia se esquivar do que não
gostava. Até que um dia, cercado por Zefa nos fundos de uma bodega, não teve
como evitar as perguntas daquela estranha. Foi a primeira vez que alguém lhe
fora amável, pensou, ainda assustado, como aquela mulher que não conhecia nem
de quem nunca ouvira falar, parecia gostar dele. Se soubesse externar
sentimentos, teria dito que leu isto nos olhos dela. Se ela soubesse que aquele
era seu sentimento, teria chorado. Chorado de alegria, antecipando a felicidade
que teria ao vê-lo, pela primeira vez, dormindo em sua casa. E pensar que ele
não só respondeu às suas perguntas, como também as fez a ela?
–
Como é seu nome?
–
Zé Terto...
–
Pur que?...
–
Num sei...e o seu?
–
Mãe Zefa.
–
Pur que Mãe?
–
Num sei...
Saíram
da bodega calados. Ele pensando no prato de comida prometido; ela, maquinando
como propor ser sua mãe. Achar uma mãe assim à-toa não seria coisa fácil. Muito
menos de se acreditar. Mais incrível ainda se ela nada quisesse em troca. Sabia
e condenava o costume de pessoas que adotavam abandonados, os recebia como
“pessoas da família”, mas que as exploravam em serviços domésticos. Viravam, de
fato, cozinheiros, botadores de água, varredores. Quando mocinhas, serviam na
iniciação sexual dos meninos. “Lá em casa chegou uma...não tem nem pentelho
ainda”, contavam, em rodadas, os tesudos libidinosos, que nem o “cabresto”
tinham quebrado. Se pretinhas, até o atavismo escravocrata do chefe da família
se manifestava. Não tardavam a ser despejadas no cabaré mais próximo, com a
fama de desencaminhadoras de jovens ou de destruidoras de lares. A criança que
levavam na barriga, mais tarde, seria adotada, estabelecendo-se um ciclo cruel:
abandonada/serviçal/amante/quenga/filha–da-puta/abandonada. Com o passar dos tempos,
a cretinice dos exploradores substituiu a denominação ‘menor abandonado’, por
‘menor carente’, como se isto lhes diminuísse a humilhação do abandono. Mãe
Zefa achava mesmo é que a troca de denominação escondia a culpa daquela
atrocidade social. Com o seu Zé Terto seria diferente. Ele seria seu filho por
inteiro. Não para demonstrar a sua complacência. Mas porque tinha sentimento de
mãe por qualquer criança.
Já
que se dispusera a ser mãe, seria por inteiro: lhe arranjaria descendentes e
ascendentes. Com ela tinha sido assim. Àquela altura já tinha a quem tomar a
bênção e a quem abençoar; de quem herdar e para quem deixar os próprios bens; a
quem temer e a quem dar ordens. Todos com nome, idade, grau de parentesco,
preferência em seu coração, rejeição e tudo mais que todo Curiboca precisa para
ser um Curiboca de verdade. Ele, nem ninguém, sabia porque o seu nome era Zé
Terto. Perguntado, deixou entender que nunca soubera que as pessoas têm
documentos. Aliás, sabia de pouquíssimas coisas, além daquelas do seu mundo. O
que mais dificultava sua conversa era o pequeno vocabulário – menor ainda do
que o pequeno mundo em que vivia. Sabia o nome das árvores, dos animais, das
comidas, de alguns utensílios domésticos e os palavrões que resmungava quando
se sentia ofendido. Somente. Aceitou Mãe Zefa como mãe porque não soube dizer
não, diante de tanta amabilidade. Mesmo assim, desconfiava, já que nunca tivera
favores de ninguém. Mas terminou gostando e tendo nela o que nem imaginava que
filho pudesse ter. Se ser filho era aquilo, era bom ser filho - teria pensado,
se pensar soubesse. Ela encheu-se de orgulho e esqueceu aquelas ideias de homem
nu, de ser tapada. “Melhor assim” - confortava-se. “Tenho meu filho sem cometer
os pecados da carne...posso agora me confessar e comungar, sem que o padre
fique sabendo dos meus pensamentos, nem dos defeitos de minhas partes”.
Cuidaria de seu filhote, como se tivesse saído de suas entranhas, sem o peso de
pensar como ele teria entrado. Dali em diante seria sua mãe de fato. Não
permitiria, inclusive, que dissessem que ele é filho adotivo, embora não
tivesse pai. Que era filho de mãe solteira, pois todos sabiam – e acreditavam –
que ela jamais seria capaz de se deitar com um homem. Falaria com Santinho para
saber como “ajeitá os papel". Santinho sabia, pois tinha como filho, em sua
própria casa, o menino que fizera em uma quenga do cabaré. “Nunca se sabe, é
verdade, se dele mesmo”, imaginava. “Mas soube misturar tanto o menino aos
outros filhos que, ele mesmo, ficava sem saber qual deles era o
filho-da-puta”. Neste sentido, estava
fácil, pois nem mãe de parição Zé Terto tinha. Ele não nasceu; ele apareceu.
Era
assim chamado porque era terto. Quem lhe colocou este nome é deveras observador
e dotado de grande capacidade de síntese. Ele é zé; além disso, é terto.
Pronto! Com apenas meia linha ficava encerrada sua descrição. Seria
desnecessário gastar mais tinta. Pra que escrever José Salustiano Netto, com
dois t, se este nome em nada lhe corresponde? Herdou o nome do avô, pai da mãe
adotiva, que também a adotara e que não tinha nem o apelido, nem a aparência
terta. A mãe sempre o chamou de Salustiano, José, Zezinho, José Salustiano,
Netto, Netinho, José Netto. Nunca, Zé, Terto ou Zé Terto. “Estes nomes não
combinam com o meu pequeno” – pensava ela. Não entendia porque tal apelido.
Além disso, viviam inventando outros nomes para seu rebento. Não já bastava Zé
Terto, se nem Tertuliano ele é, como o vizinho de fazenda? Salú, vá lá, mas Terto? Nem torto ele é, o
que mais parece com terto. Mas ficou com medo de que passassem a chamá-lo,
também, de Zé Torto. De olhar torto, sim; zarolho, não – como um dia o
companheiro de escola zombou. Mas ficou com medo de que Zé Zarolho também lhe
servisse de apelido. Até de Zé Coxo ameaçavam denominá-lo – uma maldade,
pensava a mãe. Achava agradável a sua vozinha fina, miada, baixa, anasalada,
mas não entendia porque, volta e meia, o tratavam por Zé Foem. O seu perfil
côncavo-convexo – na barriga, um C, nas costas, um D - parecia, à sua mãe, um
gesto pronto para um abraço. Mas ela ficou desapontada quando soube que mais um
dos apelidos de seu filho era Zé Sanfoneiro. Gostava de tê-lo no colo, mesmo
após os vinte anos. Cabia-lhe perfeitamente sentado de lado nas suas pernas,
com a cabeça recostada no seu ombro. Assim o fez até o dia em que disseram que
ele era muito mirrado. Tinha que evitar que ficasse conhecido por Zé Mirrado.
Assustou-se quando alguém lhe gritou por Zé Torebinha. Pequeno, sim; mas
torebinha, não – imaginou a mãe sem nada dizer. As suas perninhas curvas eram
graciosas, achava a mãe até o dia que alguém perguntou por Zé Cambota. As
pintinhas no rosto dele, para ela, eram sinal de puberdade. Pois não é que um
estranho o gritou de Zé Pintado? Enraiveceu-se, a mãe. Ele demorava muito a entender
as coisas. Ela explicava com paciência, por tratar-se de uma criança – de mais
de vinte anos, mas uma criança. Descabelou-se quando o trataram por Zé Bilé. O
cabelo avermelhado, para a mãe, era indicação da boa ascendência étnica do
filho. Mas ela se angustiou quando soube que Zé Fogoió era mais um dos apelidos
do filho mimado. Ele tinha um dedinho sobressalente na mão esquerda. A mãe
achava uma graça o sexto dedo na sua mãozinha. Quase desmaiou quando soube da
alcunha de Zé Vinte e Um. Suas orelhas grandes, finas e moles, pendentes da
cabeça, lembravam o avô. Ela adorava a lembrança do pai no seu filho. Um dia,
estragaram sua lembrança perguntando por Zé Orelhudo. Zé Terto estava sempre
mostrando os dentes, feliz que era. A mãe se alvoroçou quando soube que nos
forrós que começava a frequentar ele tinha a alcunha de Zé Dentuço. Injustiça!
- esbravejou num murmúrio solitário.
Como se viu, não havia nada a acrescentar à descrição de Zé Terto, se já é terto. O que eu ia mesmo dizer é que sua vida e de toda aquela região – principalmente a região – mudou desde o dia em que Zé Terto se casou. Sim! Ele se casou com Maria Rosa, a cabocla mais faceira da redondeza. Ela o chama, ainda hoje, de “meu Zé Terto”. O que aconteceu aos dois depois, em nada aumentou ou diminuiu a admiração que Maria Rosa tinha pelo seu eleito. Ninguém, nem a mãe dele, acreditava em tal admiração, mas Maria Rosa exibia provas de sobra. Rejeitou proposta de mancebia com boiadeiro mais rico, com casa montada e conta aberta nas lojas e bodegas da cidade; rejeitou, proposta de casamento, na igreja e no cartório, com Zé Vintém - isto, depois de o proponente deixar de ser jogador e de se chamar Zé Vintém – para desespero de todas as moças casadoiras do lugar; rejeitou uma proposta para ser artista de um circo (de dois mastros!), que encantou os habitantes de toda a região. Rejeitou a proposta de um padre, que tinha fundado uma ordem, para ser freira, morar em convento, ter como único trabalho rezar pelas almas do purgatório e, portanto, se candidatar a santa; rejeitou a proposta do próprio pai para que se casasse com o filho do seu compadre, com quem tinha uma grande dívida que ficaria saldada. Rejeitou pedidos em casamento de todos que conheceram seu andar faceiro, seu sorriso picante e imaginaram tanta formosura por baixo de sua saia. Imaginaram, quase todos. Pois alguns garantiam tê-la visto nua tomando banho na cacimba-de-beber. A todos que rejeitou, deu a mesma reposta: “só gosto de meu Zé Terto...é cum ele que vô me casá”.
Casado
com Maria Rosa, filha de outro Curiboca que por lá apareceu, Zé Terto aos
poucos foi deixado de ser terto; com o passar do tempo, deixaria até de ser
Curiboca – torcia sua mãe. Quem tem origem não é Curiboca; e ele, em breve, na
condição de pai, deixaria de ser Curiboca; ‘pelo menos isto’ – alfinetava Dona
Ingrácia, a mãe de rosa, inconformada com a preferência da filha. ‘Se pelo
menos fosse rico... mas não tem no cu o que o periquito roa...e a mãe?...uma
macho-e-fêmea...dizem que ela tem o pinguelo tão grande que dá pra deflorar uma
moça’ – completava, baixando a voz.
Até
o dia do casamento, Zé Terto nunca tinha visto uma mulher nua, nem naquele dia
se preocupou com tal fato. Suas peripécias libidinosas se deram, até então,
como já foi dito, com a eguinha de seu Teotônio Martins. No segundo dia, Maria
Rosa tomou todas as iniciativas, mesmo se arriscando a ser tida como
sem-vergonha, pelo marido. Mas ele gostou. E daí em diante não pararam de ter
filhos. Todos com nomes com W ou Y. Alguns com W e Y, outros com dois T. Um com
os olhos azuis, lembrando um antepassado distante – orgulho da mãe de Rosa,
cujo grau de parentesco ela esquecia, mas de nome Phillipe, tinha certeza.
Escolheu os nomes de todos os seus netos. Quando a gravidez de Rosa era anunciada,
ela disparava: se fô minino é Wellington, se fô minina é Laudecy. Não dava oportunidade a Rosa, nem a Mãe Zefa
e, muito menos, a Zé Terto. Não correria o risco de ter os netos chamados de
Bil, Sebasto, Chico, Mané, Belinha, Zefa, Guidinha, Maroca, todos nomes de
curibocas; daquela gentinha dali mesmo. “De pur mim, fio meu se chamava era
João, Pedro, José, Manuel, Antônio e as minina tudo era Maria – da Graça, de
Jesus, do Socorro, do Carmo, de Lurdes”, imaginava Zé Terto, sem dizer do seu
desagrado por aqueles nomes esquisitos. Nunca foi de contrariar a sogra e não
era por causa daqueles nomes, que os vizinhos até achavam bonitos, que iria
aborrecê-la. Pensava em se antecipar na escolha do próximo nome. Mas, quando
menos esperava, lá estava o Wanderley, já aceito por Rosa e aplaudido pela
vizinhança.
Zé
Terto continuou morando na casa da própria mãe, condição que ela impôs para
permitir o casamento. “Aquele traste também já tá perto de morrer” - pensava
Maria Rosa, inconformada. “Desde que venha todo dia me tomar a bença”, impôs a
mãe de Rosa. Nem as imposições de parte a parte impediram Zé Terto e Rosa de
viver um grande amor. O que cada parte permitia, eles faziam. O que não
permitiam, deixavam para lá.


Adoro ler os escritos de Siqueira, eles me fazem lembrar de algumas coisas de Curiboca que, talvez, eu tenho nas minhas origens. Parabéns amigo escritor e mestre.
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