segunda-feira, 10 de julho de 2023

 


Não há uma data precisa sobre os anos em que foram compostas as duas grandes epopeias gregas, Ilíada e Odisseia, nem mesmo se tem certeza de que Homero seja o autor de ambas ou se um grupo de poetas tenha compilado histórias contadas pelo povo e organizado as narrativas do último ano da Guerra de Troia, que tem a intervenção de Aquiles (na Ilíada), ou o regresso de Ulisses (também chamado Odisseu, daí Odisseia) para Ítaca, sua pátria. Cumpre sempre referir que Ulisses participou ativamente da guerra em Troia, nos seus dez anos; teve a ideia do Cavalo de madeira, artifício que permitiu aos reis gregos vencerem as muralhas da cidade e que, depois disso, navegou durante dez anos no seu regresso para a esposa, o filho e o seu reino.

O que importa refletir aqui é a perenidade da Arte – neste caso, da Literatura. Se sabemos que o Século de Ouro em Atenas data, aproximadamente de 450 a.C., e que os textos atribuídos a Homero teriam sido compostos cerca de 500 anos, estamos tratando de 1.000 anos do nascimento de Jesus Cristo, ou seja, já teriam se passado 3.000 anos e a história de Aquiles e de Ulisses seguem sendo lidas e admiradas.

Em Aquiles, a astúcia, a argúcia, a valentia. Mas, no semideus, na figura meio homem, meio deus (dos deuses pagãos do Panteão grego), preserva-se a nossa humanidade: ele sofre terrivelmente a morte do seu primo Pátroclo, ele atira-se à luta desmedida contra Heitor, príncipe troiano, que matara Pátroclo, porém, decidido não dar funeral honroso a Heitor, sensibiliza-se diante do pedido de Príamo, rei de Troia e pai de Heitor, para que o filho fosse sepultado conforme a tradição.

Ulisses evidencia uma série de qualidades: ele convence, no último ano, Aquiles a participar da guerra, evidencia-se o seu poder de convencimento, a sua capacidade retórica; Ulisses é um estrategista, engendra a ideia de um grande cavalo de madeira a ser colocado diante dos portões de Troia, representando, teoricamente, um presente, e a retirada dos navios gregos da baía diante da cidade. Os troianos são, como se esperava, enganados, acreditam que os gregos desistiram da guerra e que o cavalo é um presente, um símbolo de sua rendição (daí decorre o clássico “presente de grego). O cavalo é puxado para dentro da cidade, os troianos festejam, comem, bebem, dançam e, quando a noite cai, cansados, eles dormem. Alguns sequer chegam a acordar, são capturados pela morte durante o sono; alguns reagem, mas a maioria é abatida. Os gregos vencem a guerra dentro das muralhas de Troia. Há uma morte sempre lamentada, mas se cumpre um ciclo (que tal ler Ilíada e se colocar a par desse final?).

Os deuses pagãos gregos – na verdade, uma deusa – resolvem dificultar a volta de Ulisses para a sua Ítaca (uma das cidades-estados da antiga Grécia) e ele vaga durante dez anos, enfrentando as maiores adversidades. Enquanto isso, em seu reino, Penélope, a sua mulher, é pressionada a casar-se, afinal, era necessário que se tivesse um novo rei. Penélope impõe como condição concluir uma colcha (um tapete) que está tecendo: durante o dia, ela tece; à noite, ela desfaz o trabalho para ganhar tempo. Passados 20 anos, Ulisses, como um maltrapilho, reaparece, sendo reconhecido por Euricléia, a escrava que foi responsável por sua criação.

Finalmente, pelos artifícios próprios da narrativa, Penélope cede aos anciãos do reino e decide escolher um novo pretendente. Há uma condição: o candidato deveria saber montar (há um truque para isso) o leito conjugal. Quem saberia se não fosse Ulisses? A fidelidade de ambos, sob a minha ótica, é um dos pontos máximos dessa epopeia. Cabe lembrar, porém, que as epopeias em geral (será assim com Eneida, de Virgílio, e Os Lusíadas, de Camões, por exemplo) não são histórias individuais, mas elas são narrativas de um povo, das honras de um povo, de uma coletividade. Elas perdem o seu sentido com o surgimento do capitalismo, da burguesia, do esfacelamento do indivíduo que se dá a partir da Idade Moderna.

Ainda assim, ouso afirmar que se sobressaem, nos atributos dos heróis épicos, os traços que nos fazem humanos. No filme “Troia”, com Brad Pitt, há uma cena inicial, em que Aquiles procura a mãe para aconselhar-se sobre o convite para participar da Guerra de Troia. É um local muito lindo, à beira mar, o que, por si só, encanta. A mãe sábia, como costumam ser as mães, responde que ele teria duas alternativas: ficar, casar e ter filhos, ser lembrado por uma ou duas gerações ou seguir, lutar e ser lembrado pela eternidade.

A Arte tem dessas coisas. O crítico literário argentino Raúl Castagnino, entre outras características de poetas e prosadores, afirma que todos almejam a transcendência, a permanência para além dos seus escritos. A eternidade.

Recentemente, produzi um ensaio teórico sobre a vida e a obra de Maria Firmina dos Reis, escritora maranhense, professora, solteira, negra, que, em 1859, publicou o primeiro romance brasileiro com temática escravista, com personagens negros tendo voz. O tempo passou e ela não foi devidamente reconhecida por seus contemporâneos. As suas obras, para além do romance Úrsula, permaneceram e têm sido tema de estudo e debate em academias literárias e universidades.

Talvez os nossos textos não nos garantam um lugar no panteão dos eleitos para comporem o cânone da literatura brasileira, mas ouvi, dias atrás, uma moça de uma região interiorana do país afirmar que, diante de uma grave crise depressiva, a poesia lhe reconduziu à vida, escrever liberta-a dos males, das tristezas, das dores do mundo. A professora de Literatura que há em mim pensou: “isso é catarse nos melhores moldes que Aristóteles pensou”. Viva a Arte!

Texto: Prof. Dra. Elaine dos Santos
Ilustração: Jornal Rio de Flores

Elaine dos Santos. É natural de Restinga Seca/RS. Filha de Mario Cardoso dos Santos e Vilda Kilian dos Santos (in memoriam). Graduada em Letras, Mestre e Doutora em Estudos Literários, pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Possui formação em língua espanhola pela Universidad de La Republica, Montevidéu. É autora do livro “Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe”. Atuou como professora de Língua Espanhola, Literatura e Metodologia Científica no ensino médio, em cursos de graduação e pós-graduação. Foi Coordenadora do Curso de Letras e de Programas Sociais na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA/campus Cachoeira do Sul. Atuou como banca elaboradora de questões dos concursos PEIES e vestibular da UFSM e como avaliadora de redações dos mesmos concursos. É revisora de textos acadêmicos e parecerista ad hoc de revistas com classificação Qualis. Cronista, com publicações em jornais e em diversas antologias.

Edição e Direção |Geral
Renato Galvão


 


6 comentários:

  1. Um texto belíssimo, rico em esclarecimentos que nos conduz a revisitar a História e a Literatura. Parabéns doutora Elaine dos Santos pelo excelente trabalho!
    Abraço fraterno e poético.

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    1. Oi, Josy! Obrigada pelas palavras amáveis. No Rio Grande do Sul, de alguma maneira, eu creio que a maioria dos leitores adentra a História pela Literatura, quando lê os dois volumes iniciais de "O tempo e o vento", de Erico Verissimo, que contam a formação do nosso estado, as guerras, a miscigenação etc. Dias atrás, numa live que reunia poetas, eu ainda brinquei que eu era uma estranha, porque gosto de prosa (crônica, conto, romance), que nos dão material para entrelaçar História e Literatura (já me disseram que eu deveria ter cursado História, sinto-me bem como uma professora de Literatura que passeia pela História). Abraço fraterno. Sucesso.

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  2. Professora Doutora Elaine, adorei ler esse artigo. Fiquei muito curioso! Quero saber mais sobre Maria Firmina dos Reis. Vou tentar pesquisar via Internet. Quem sabe, a senhora nos brindará com um próximo artigo que fale mais sobre ela. Parabéns!

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    1. Olá, como está? Maria Firmina vem sendo descoberta mais recentemente. Tem um livro "Úrsula" que é o primeiro romance do Romantismo brasileiro escrito por uma mulher, que traz a temática escravagista e que dá voz aos negros - até então, a História da Literatura no Brasil só localizava obras neste sentido já no século XX durante o Modernismo. Eu participei de uma antologia "Maria Firmina dos Reis - tributo a uma negra úrsula", fiz o prefácio. Aconselho ler os textos. Está ótima.

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