quinta-feira, 15 de junho de 2023

 

Ilustração Jornal Rio de Flores

Caros leitores.

Desejo contar neste espaço a História dos Curibocas. Serão contos e crônicas do cotidiano de um povo. Seus lugares, suas crenças, suas figuras humanas...

Somente as verdades não são suficientes para contar toda a história de um povo, pois cada povo tem sua mentira particular. Esta é, portanto, uma história incompleta, pois será contada somente a verdade - verdade viva e vezeira, a história dos Curibocas. As mentiras serão contadas em uma próxima vez.

É uma história verdadeira, repita-se, contada em todos os seus detalhes. Até os bichos já sabiam esta história no tempo em que falavam. E a contavam aos seus descendentes, como forma de perpetuá-la e para seus filhotes dormirem. Não foi escrita antes, claro, porque os bichos não escreviam, só falavam. Mesmo assim, não há bicho, mesmo os de hoje – que não falam nem escrevem – que não saiba esta história. Eles já nascem sabendo e tudo todos sabem desde que nascem, sem que seus pais precisem contar. São os bichos dos novos tempos! Dizem que é por isto que eles deixaram de falar. Em tempos imemoriais, eles concluíram que a fala é dispensável, já que nada garante e, volta e meia, inventa mentira, pois toda história, antes de ser escrita, é contada – pela fala. Ninguém é capaz de contar (falando) a mesma história duas vezes, sabiam os bichos. Além do mais, para garantir o que diziam, os bichos teriam que inventar papel, tinta, caneta, computador, internet, borracha; criar cartórios, estudar Direito, Gramática e se preocupar com outras invencionices, igualmente perigosas, como jornal e prospecto de remédio. Depois, verificariam que, mesmo escrita, a história nada valeria - era história de bicho, diriam os homens, jogando o papel amassado na lixeira. Aliás, eles nunca quiseram convencer os homens de nenhuma verdade. Eles, que se dizem racionais, que busquem seus próprios rumos - pensavam. Por fim, os bichos tiveram medo que história igual à dos homens pudesse acontecer a eles, pois, certo dia, ouviram de uma sombra sonora:

O que te assemelha aos homens é a fala

O que te diferencia dos bichos é a alma

Então, os bichos calaram. Perderam o dom da fala. Ficaram com os ouvidos para ouvir o que mais tarde com os olhos constataram: grande tropel de cavalos com homens neles montados, em trajes esfarrapados sobre corpos muito fortes, dizendo que era ali, no meio daquele mato, que um dia ergueriam o Reino dos Curibocas; o reino dos libertários, onde “jorra leite e mel”, longe dos homens de leis que, feitas do jeito deles, só a eles vão servir. O reino dos que fugiram da moenda do engenho, do chicote e do trabalho dobrado na casa-grande. Um reino de Curibocas de sangue dosado à cama de índio com preta ardente. Aquele ambiente hostil, de cobras e lagartixas, seria - quem sabe? - um dia transformado em paraíso para os que precisassem conviver em harmonia. E a quem lá chegasse, ninguém se atreveria a perguntar quem já foi, de onde vem ou o que naquelas plagas queria. Bastava se apossar das benesses do lugar, sem ganância e sem orgulho e a todos respeitar, estabelecer convivência sob as regras do lugar - as regras do bem viver! Precisa que algo mais este escriba explique?

Este Reino foi fundado onde o vento fez a curva, onde a chuva nunca andou, onde o cão anda montado num redemoinho açoitado do oco do cu do mundo; onde a justiça passou montada na besta fera, onde o bucho não produz a merda de cada dia. O nome desse lugar? Tente você descobrir, onde fica e como era. Para lhe facilitar, diminuir seu engano, uma pista vou lhe dar: não procure onde tem terra, nem localize num mapa; veja aonde tem gente injustiçada e ganância, aonde não tem partilha e aonde a bonança é pra uns e as mazelas pro resto; saiba que este Reino, não tem vizinho ao lado, sempre esteve oprimido, muitas vezes misturado a outro reino de cima; o que os delimita - estabelece fronteiras - é a riqueza de um em detrimento do outro; é o canto de protesto do reino que nada têm; é a justiça do rico reino todo poderoso sobrepujando o dos pobres; é a diferença da cor do cabelo, olho e pele. Que outros reinos tivessem por lá se estabelecido nunca pra eles foram qualquer forma de perigo. Sabiam de ouvir falar de outros reinos e reis. Que para as bandas do leste havia a Pedra do Reino; que muitos dali temiam um tal de Rei do Cangaço; que o Rei Zumbi dos Palmares morava muito distante. Aplaudido e respeitado somente o Rei do Baião. Misturado tudo isso fica fácil definir o Reino dos Curibocas, do qual, aqui, irei falar.

Texto: Francisco Siqueira

Ilustração: Jornal Rio de Flores

Edição e Direção Geral
Renato Galvão












Um comentário:

  1. Grande emoção, grande prazer e maior ainda a felicidade de VR com meus olhos os escritos de mestre Siqueira. Bem-vindo e muitas felicidades também para o amigo escritor. Fantástico! FENOMENAL!

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