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| Ilustração Jornal Rio de Flores |
Caros leitores.
Desejo contar neste espaço a História dos Curibocas. Serão contos e crônicas do cotidiano de um povo. Seus lugares, suas crenças, suas figuras humanas...
Somente as verdades não são suficientes para contar toda a história de um povo, pois cada povo tem sua mentira particular. Esta é, portanto, uma história incompleta, pois será contada somente a verdade - verdade viva e vezeira, a história dos Curibocas. As mentiras serão contadas em uma próxima vez.
É uma história verdadeira,
repita-se, contada em todos os seus detalhes. Até os bichos já sabiam esta
história no tempo em que falavam. E a contavam aos seus descendentes, como
forma de perpetuá-la e para seus filhotes dormirem. Não foi escrita antes,
claro, porque os bichos não escreviam, só falavam. Mesmo assim, não há bicho,
mesmo os de hoje – que não falam nem escrevem – que não saiba esta história.
Eles já nascem sabendo e tudo todos sabem desde que nascem, sem que seus pais
precisem contar. São os bichos dos novos tempos! Dizem que é por isto que eles
deixaram de falar. Em tempos imemoriais, eles concluíram que a fala é
dispensável, já que nada garante e, volta e meia, inventa mentira, pois toda
história, antes de ser escrita, é contada – pela fala. Ninguém é capaz de
contar (falando) a mesma história duas vezes, sabiam os bichos. Além do mais,
para garantir o que diziam, os bichos teriam que inventar papel, tinta, caneta,
computador, internet, borracha; criar cartórios, estudar Direito, Gramática e
se preocupar com outras invencionices, igualmente perigosas, como jornal e
prospecto de remédio. Depois, verificariam que, mesmo escrita, a história nada
valeria - era história de bicho, diriam os homens, jogando o papel amassado na
lixeira. Aliás, eles nunca quiseram convencer os homens de nenhuma verdade.
Eles, que se dizem racionais, que busquem seus próprios rumos - pensavam. Por
fim, os bichos tiveram medo que história igual à dos homens pudesse acontecer a
eles, pois, certo dia, ouviram de uma sombra sonora:
O que te assemelha aos homens é a
fala
O que te diferencia dos bichos é
a alma
Então, os bichos calaram.
Perderam o dom da fala. Ficaram com os ouvidos para ouvir o que mais tarde com
os olhos constataram: grande tropel de cavalos com homens neles montados, em
trajes esfarrapados sobre corpos muito fortes, dizendo que era ali, no meio
daquele mato, que um dia ergueriam o Reino dos Curibocas; o reino dos
libertários, onde “jorra leite e mel”, longe dos homens de leis que, feitas do
jeito deles, só a eles vão servir. O reino dos que fugiram da moenda do
engenho, do chicote e do trabalho dobrado na casa-grande. Um reino de Curibocas
de sangue dosado à cama de índio com preta ardente. Aquele ambiente hostil, de
cobras e lagartixas, seria - quem sabe? - um dia transformado em paraíso para os
que precisassem conviver
Este Reino foi fundado onde o
vento fez a curva, onde a chuva nunca andou, onde o cão anda montado num
redemoinho açoitado do oco do cu do mundo; onde a justiça passou montada na
besta fera, onde o bucho não produz a merda de cada dia. O nome desse lugar?
Tente você descobrir, onde fica e como era. Para lhe facilitar, diminuir seu
engano, uma pista vou lhe dar: não procure onde tem terra, nem localize num mapa;
veja aonde tem gente injustiçada e ganância, aonde não tem partilha e aonde a
bonança é pra uns e as mazelas pro resto; saiba que este Reino, não tem vizinho
ao lado, sempre esteve oprimido, muitas vezes misturado a outro reino de cima; o que os delimita - estabelece
fronteiras - é a riqueza de um em detrimento do outro; é o canto de protesto do
reino que nada têm; é a justiça do rico reino todo poderoso sobrepujando o dos
pobres; é a diferença da cor do cabelo, olho e pele. Que outros reinos tivessem
por lá se estabelecido nunca pra eles foram qualquer forma de perigo. Sabiam de ouvir falar de outros reinos e reis.
Que para as bandas do leste havia a Pedra do Reino; que muitos dali temiam um
tal de Rei do Cangaço; que o Rei Zumbi dos Palmares morava muito distante. Aplaudido
e respeitado somente o Rei do Baião. Misturado tudo isso fica fácil definir o
Reino dos Curibocas, do qual, aqui, irei falar.
Texto: Francisco Siqueira


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Grande emoção, grande prazer e maior ainda a felicidade de VR com meus olhos os escritos de mestre Siqueira. Bem-vindo e muitas felicidades também para o amigo escritor. Fantástico! FENOMENAL!
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