Logo bem cedo, sem completar lá fora o raiar do sol, Gomes já estava passando o café e torrando o pão no fogo, só para tostar um pouco a casquinha do pão amanhecido. Assim conseguia derreter a margarina, que havia espalhado parcimoniosamente no miolo. Era um hábito sagrado, repetido todos os dias, desde que ainda tivesse o pãozinho ou a bendita gordura vegetal. Enquanto as crianças e a mulher dormiam, ele resolvia tudo na pequena cozinha, no maior silêncio possível, deixando aquele bule de café fraco sobre a mesa. Leite? Um luxo! Só era permitido quando alguma criança, ainda pequena, mamava. Depois, com sono, abria a porta do barraco, habitação popular, típica das invasões nas cidades satélites da Nova Capital. Apesar dos cuidados, a madeira ressecada teimava em gemer, de uma forma quase conivente, com a falta de vontade do Gomes, para encarar aquele friozinho da madrugada, ainda presente de forma renitente. Aberta a porta, era só uma rápida caminhada até o ponto dos ônibus. No planalto central, quase sempre de madrugada, faz muito frio.
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| Fila de Desempregados - 2004 - Rocha Maia |
Mas, se não tinha vontade de sair, por que então abria a porta? Ficasse ele deitado de conchinha, ao lado da companheira, esperando o sol esquentar! Ah, lógico, o Gomes tinha conseguido um emprego, coisa difícil pra chuchu! Depois de muito procurar, meses e meses a fio, ele finalmente podia trabalhar! TRABALHAR! A remuneração era mixuruca, contudo, suficiente para não passar fome com a família.
Com
passos ligeiros, caminhava rápido até a parada de ônibus. No pequeno trajeto,
Gomes podia notar vários outros vultos, que iam se afirmando! Eram sombras de
pessoas iguais a ele, saindo de suas casas, buscando o “sofrimento” diário.
Abençoado e bendito sofrimento! Trabalhar!
Certa
ocasião, recente, durante reunião de sindicalistas, ele havia ouvido falar
sobre a significado e origem da palavra. Facilmente, entendeu a origem, que era do
latim romano. No nosso bom e velho português, recebia a classificação como sendo
“Verbo Intransitivo”. Saber o que era um “verbo”, foi tranquilo! Bastou
entender que verbo é tudo aquilo que expressa uma ação, estado ou fenômeno da
natureza. Gomes ficou mais confiante e feliz; entretanto, a coisa ficou
embaralhada, quando surgiu uma discussão, por firulas de conhecimento, entre
palestrantes que resolveram divergir, em plena reunião. Uns afirmavam que o
verbo TRABALHAR era intransitivo, enquanto outros, de forma contrária, quase
aos gritos, diziam: - “...o verbo é transitivo”!
Aquele
bate-boca acabou criando, na cabeça do Gomes, uma certa confusão. Ao ouvir
“intransitivo”, findou ele por entender “intransigente”! Foi um equívoco,
talvez reforçado pelo comportamento dos debatedores no sindicato. Mesmo assim,
o trabalhador entendeu o sentido de sofrimento que a origem da palavra guarda.
No latim, “tripaliare”, significava fazer uso do “tripalium”. O instrumento de
tortura, que tinha a forma de um garfo gigante, com três lanças nas pontas, e
que era usado, “gentilmente”, pelos legionários romanos, visando forçar os
escravos a executarem tarefas degradantes ou indesejadas, quando não até
impossíveis. Vale lembrar que os escravos eram provenientes de povos subjugados;
muitas vezes não falavam o idioma romano. Não falavam, mas ouviam e associavam
significados! Dessa forma, por corruptela, entendiam que, soldados romanos ao receberem
ordem para “tripaliar”, causavam ferimentos profundos nos escravos fisgados;
dificilmente a vítima escapava da morte lenta, com grande padecimento. Assim,
ao serem fisgados, os pobres coitados “tripaliavam” com “muita vontade” ...,
trabalhavam!
Gomes
sabia perfeitamente que: ter um emprego era essencial; que comparecer para
trabalhar era imprescindível; e receber a merreca do mês era absolutamente
vital!
Os
detalhes históricos do Dia do Trabalho, narrados na reunião do sindicato, por
certo, tinham valor, mas, o mais importante mesmo, era tentar, de todas as
formas, não voltar a enfrentar as abomináveis filas de desempregados, frente a
canteiros de obras ou fábricas. Gomes, durante um bom tempo, foi frequentador
desses locais. Mesmo sabendo ter Brasília e entorno uma imensa oportunidade de
empregos, a demanda de trabalho era muito maior do que a oferta. Construída de
forma epopeica, a um custo altíssimo em dinheiro e em vidas, a Capital Federal
atraiu por muitos anos um verdadeiro exército de trabalhadores, para a
construção civil e obras de urbanização planejadas. Grandiosas e faraônicas
estruturas de palácios, desenhados por mestres da arquitetura, jardins com
paisagismo e avenidas majestosas sendo construídas!
Um
orgulho nacional? O tempo dirá! Certo, porém, é que, serviu, serve e servirá,
como oportunidade de emprego para milhares de brasileiros.
Gomes, não
pensava nem duas vezes, se devia ou não sair bem cedo para trabalhar! Só de
lembrar da correria diária, pensando em conseguir superar as dificuldades dos
transportes públicos, e rezando para não haver atrasos no caminho, era
suficiente e capaz de empurrar qualquer um pra fora da cama. Dizia ele: - “Deus
me livre se eu perder essa boquinha de trabalho!”.
A
experiência que o nosso personagem guardava na memória..., daquela tripa de
gente se empurrando, querendo chegar mais rápido na mesa do entrevistador, furando
fila, na tentativa de merecer a melhor atenção, para ser selecionado, em meio
aos muitos candidatos a uma só vaga de emprego...! Arre égua! Aquilo ele não
queria mais passar! Lembrar daquele falatório de gente desesperada, depois de
passar longos períodos sem o “pão de cada dia”, ele não queria nunca mais.
Coisa de “traíra”, um querendo parecer mais merecedor da oportunidade do que o
outro, mostrando-se aos olhos do encarregado do serviço como mais apto, para
ocupar o cargo, no mínimo era constrangedor.
Se Deus
permitisse, Gomes nunca mais precisaria entrar na fila de desempregados!
Salve Primeiro de Maio! E vamos trabalhar!
Ilustrações: Jornal Rio de |Flores
Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas.
Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP; MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal.
Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro “O Diário de Lili Beth”, pela editora Videu – 2021; e colaborou com a Coluna Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes.
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| Edição e Direção Geral Renato Galvão |




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Dia do trabalhador é mais uma ilusão do mundo. Feriado que muitas vezes trabalhamos mais ainda e o descanso fica só na lembrança.
ResponderExcluirAdorei o seu texto meu amigo, parabéns.
Muito obrigado por ler e comentar o meu texto. Valeu muito ler o seu comentário.
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