sábado, 23 de setembro de 2023

No Brasil, por influência da cultura europeia, a comemoração do nascimento de Jesus fica incompleta, sem que se reverencie a figura de um tal de “Papai Noel”! Tudo é feito com muito carinho e, apesar do calor, com direito ao pinheiro enfeitado, com galhos cheios de algodão, trenó no gelo, boneco de neve, culminando com a infalível troca de presentes, durante a ceia farta, se possível, ao som de gingo bells. Tudo muito simbólico; carregado de afetivos abraços e beijos. Não compensa entrar em detalhes; todos já sabem! São centenas de aspectos a serem lembrados, quando se pensa em enfeitar, realmente, dentro das tradições cristãs, na hora de festejar o nascimento de Jesus. Aos católicos tem sempre ainda, de véspera, a famosa Missa do Galo.

Mesmo porque, a turma do marketing, passou a agregar aspectos comerciais ao evento, quando o ato de dar presentes, ao que parece, passou a ser a coisa mais importante durante o festejo. Me perdoem a irreverência, mas, aquilo que a turma quer, pra valer, é ganhar presentes! Que se “dane” o aniversariante! Vale fazer “amigo-oculto”, ainda que a amizade possa ser contestada no Facebook! Aquele que não recebe uma simples lembrancinha, fica fora da brincadeira, com cara de taxo, ruminando certo desconforto!

Não vou abordar essas questões! Parece que o Natal passou a ser uma grande oportunidade de negócios, tanto para se lucrar, como para se gastar um bom dinheiro! A economia ativada do final de ano, permite que surjam oportunidades de todo tipo, empregos temporários aparecem do nada; a produção ofertada fica sempre aquém da demanda, fazendo com que os preços disparem. As pessoas são estimuladas a comprar, comprar e comprar! Gastar, bem antes do dia a ser comemorado! Todos terminam entrando na gastança! Por fim, com tanto consumismo, muita gente acaba virando candidato a ter o nome inscrito no Serviço de Proteção ao Crédito, antecipando a crise do ano que ainda está longe de iniciar.

Contudo, existe um lado que sempre me encantou nas festas natalinas. Floresce um clima de “caridade”, talvez a razão maior do amor ao próximo ensinado pelo Cristo! A caridade aos necessitados? Sim, esse talvez fosse o presente realmente valioso, a ser ofertado na intenção do pequeno aniversariante, o Menino Jesus. Infelizmente, embora muito comentado, esse não é um viés badalado nos festejos natalinos. Confundem Natal com Noel, creio que de propósito!

Lembro de um bom exemplo: minha avó, Dona Olga! Todos os anos, fazia dezenas de enfeites de Natal, ricamente bordados a mão. As Botas de Natal eram disputadíssimas! Peças lindíssimas, especialmente preparadas, como adorno de casas de famílias ricas. Cada peça era exclusiva! Diversas foram as vezes nas quais ela recebeu encomendas do exterior. A caridade dela qual era? Ela vendia tudo; mas, guardava o dinheirinho, bem no fundo da gaveta da velha cômoda de jacarandá, na sala! Com esse dinheiro, tostão por tostão poupado, ela comprava cestas-básicas de alimentos, além de alguns brinquedos, que doava para famílias carentes no Natal. Para ela mesmo, não ficava nenhum tostão; mesmo que estivesse desejando comprar alguma coisa bonita. Para si mesma? Nada! A velhinha gastava tudo com compras destinadas à função de caridade no Natal. Foi assim que eu fui criado. Dizia vovó: - “O maior prazer na vida, está em dar a quem necessita e merece! Contudo, tenha cuidado ao ofertar, para que o presente não ofenda a dignidade e a autoestima de quem recebe!”; e completava assim: “Deus tem mais para nos dar do que o diabo para nos tirar!”

Dizia vovó que, seus atos, eram inspirados em São Nicolau! Vocês já ouviram falar das Festas Nicolinas? Poucos sabem sobre o Santo Bispo Católico, embora, por exemplo, ele seja muito festejado pelos estudantes de Guimarães, em Portugal. Trajando cor marrom, fazia doações caridosas, para crianças pobres.

O personagem ao qual quero me referir, com toda a pompa, nas circunstâncias festivas, é mais conhecido pela alcunha de “Bom-Velhinho”! Esse simpático idoso, apareceu nos cenários natalinos, talvez equivocadamente, como a figura central de muita propaganda! Embora sua figura simpática, nada signifique para os cânones da fé cristã, no Ocidente, ela tornou-se mítica. Porém, eu quero falar justamente, sobre esse velhinho, de barbas brancas, roupas vermelhas; o famoso Papai-Noel! Caso você seja bom ator, pode faturar muito, durante o Natal! Existem diversas formas de apresentação da icônica figura! Por exemplo, nos shoppings, em apoio às campanhas comerciais, destinadas a destravar o bolso dos compradores! Sabia? Porém, não deixe o tempo passar muito, porque é um “emprego” cansativo e, cada vez mais, desacreditado junto ao público infantil e, também, dos pais, que esperam livrar-se das compras do final de ano!

Vou lhes contar minha experiência. Foi perto da virada dos Séculos XX para XXI! As famílias haviam combinado de passar juntas a noite de Natal. Dia 25 de dezembro de 2000 chegando! A criançada estava ansiosa; alguém deixou escapar a notícia de que Papai-Noel, pessoalmente, iria entregar os presentes. E quem deveria, em segredo, encenar a figura do simpático velhinho? Voluntariamente, não apareceu ninguém! Sobrou para mim! Como anfitrião, eu já estava no prejuízo mesmo, resolvi usar uma fantasia baratinha, daquelas que se compra nas lojas “xing ling”! Confiante na minha capacidade e talento “interpretativo”, nem me preocupei em experimentar a vestimenta! Pensei positivo, acreditando que estava nas medidas certas da minha barriga. Qualquer coisa torta, eu daria um jeito, disfarçando, com a almofada, a barba e a cabeleira branca!

Contando com a ajuda da “equipe-de-produção”, ficou combinado que, na hora marcada, eu sairia da sala, discretamente, entraria num quarto e, rapidamente, vestiria a roupa encarnada. Nessa altura dos acontecimentos, alguém deveria chamar a criançada, para perto da árvore de Natal! Naturalmente, os presentes já teriam sido colocados. Aquela noite, na sala, estavam quinze crianças, de várias idades. Tudo certo? Sim! Mas faltou “combinar com os russos”, como ficou famosa, em 1958, a frase do craque Garrincha! Caso alguém, dentre os jovens mais espertinhos, descobrisse a trama do personagem, não poderia revelar, para os mais bobinhos, a identidade do Papai-Noel!

Na hora marcada, usando a senha, foi dada a partida no “jogo”! Lá fui eu me vestir escondido. A fantasia era pequena! Na marra, entrei dentro daqueles panos mal costurados! A camisola encarnada, tão logo coloquei a almofada, foi a primeira a rasgar na barriga! Depois, a calça vermelhona descosturou na braguilha, deixando visível a minha cueca branca. Não havia tempo para arrumar as coisas. Com algum atraso, lá fui eu até a sala, procurando disfarçar os danos na fantasia. Com as crianças menores, foi fácil passar despercebido! O vexame era certo, mas...! Era uma gritaria só! Fácil para esconder as partes rotas; bastava ler o nome em cada embrulho de persente, e a bagunça da entrega começava. Gritaria geral! Empurra-empurra! Hou! Hou! Hou! Hoooouuu! Lá estava Papai-Noel, velho prosa! A alegria da meninada era contagiante! Eu nem me lembrava das partes rasgadas! Aquela fantasia era um forno, o calor era grande, suor escorrendo! Nada refrescava, nem mesmo a bunda de fora!

Eu já tinha ouvido alguém comentar, certa vez, que adolescente é “bicho” problemático! Porém, pré-adolescente é muito mais! No meio da petizada, tinha uma figurinha desse tipo. Menina-moça, à moda antiga! Com 12 anos de idade, ela ainda acreditava em Papai-Noel! Acreditava! Bastaram alguns minutos, logo ela deixou de acreditar! A figura patética lá estava! Mesmo com esforço, para dramatizar a interpretação, o rasgado denunciou!  

A menina, sem maldade, olhou nos meus olhos, firmemente! Primeiro segurou a barba, depois puxou minhas calças, que acabaram de rasgar, e gritou a plenos pulmões: “Não é Papai-Noel não! É o tio...!” Pronto! Naquele instante, eu fiquei sem saber o que fazer. Segurei os farrapos da fantasia e corri, pensando me esconder no quarto, enquanto a turma do abafa entrava em campo, levando a guria “dedo-duro” para o outro lado da sala. Nem lembro como terminei aquela encenação fajuta! Com toda aquela fantasia encarnada, rasgada, ninguém notou minha cara vermelha de pura vergonha! Naquele dia, eu prometi, nunca mais vou me vestir de Papai-Noel!

No ano seguinte, todo já sabiam que o bug do milênio não tinha acontecido; e que eu havia sobrevivido ao vexame daquele Natal anterior! Errar é humano, mas repetir o erro é burrice! Foi assim que me vi novamente diante do desfio. Atendendo apelos dos colegas de trabalho, fui chamado a representar o simpático personagem, na confraternização natalina da empresa que eu trabalhava! Com toda segurança, não haveria desastre! O local da festa era no auditório, durante uma reunião interna. Aceitei, mas fui esperto! Providenciei a compra de fantasia completa, caríssima, e com ela fui devidamente trajado ao evento! Um sucesso total! Resultado? Durante anos seguidos, eu fui o Papai-Noel oficial da empresa! Não ganhava nada extra, além da amizade e respeito dos colegas! Ganhei também uma extraordinária experiência de vida!

Não quero reivindicar os louros do sucesso, apenas em razão das minhas interpretações, afinal, o bom velhinho, tinha, e tem, um carisma próprio, forjado pelo marketing de um famoso fabricante de refrigerantes. Exatamente, a mundialmente conhecida Coca-Cola!

Fui prestigiado e, com muita felicidade, participei de eventos na empresa. Também, atendi a convites de algumas entidades filantrópicas, que mantinham programas de assistência social. Assim, fui levado a visitar orfanatos, asilos e comunidades carentes.

Além das atividades de visitações, das palestras e dos encontros comunitários, ocasiões em que eu também participava fazendo entregas de cestas básicas, agasalhos e brinquedos, pude viver momentos muito especiais, algo que me marcou positivamente a vida. Foram momentos de grande emoção!

Na interpretação do personagem, garanto a vocês, há dois momentos cruciais! O primeiro, mais comum, acontece nos orfanatos; o segundo, menos frequente, acontece nos asilos de idosos.  São ocasiões distintas, embora carregadas de igual valor caritativo! Nos orfanatos, se por um lado a ingenuidade das crianças ajuda, na hora de lidar com a dureza da solidão familiar, por outro lado, dificulta, quando suscita a armadilha de se fazer promessas, de soluções impossíveis, aos apelos infantis, que demandam sonhos de sair da orfandade. Usando subterfúgios, muitas vezes, a saída é sugerir que escrevam cartinhas; sejam mais estudiosos e obedientes, criando uma falsa esperança, compensatória, para alcançar merecimento para o atendimento de alguns dos desejos demandados ao Papai-Noel.

O segundo momento, talvez o mais complicado, acontece quando chega a hora de visitar asilos, mais conhecidos como Lar do Velhinhos (Puro eufemismo)! O esforço na interpretação será muito maior por parte do ator. Podem preparar os seus melhores HOU! HOOOU! Hooooouuuuuss!! Porque a emoção irá chegar ao máximo! São “crianças”, com oitenta ou mais anos de idade. Quando a senilidade chega, a demência se instala, e o peso dos muitos anos de vida mal vivida, sobrecarregam os passos ao caminhar, colocando sobre os ombros, a carga final a suportar, chamada solidão; é quando os velhinhos necessitam de mais de atenções, como crianças adaptadas, aguardam uma simples troca de fraldas, alguma ajuda em quase tudo o que precisam fazer, de um suco ou mingau a tomar, até um pequeno passeio na cadeira de rodas no pátio, para o sol aproveitar.

Olhar firme nos olhinhos de uma criança é fácil, porque é colher energias boas, mesmo que aquela criança esteja sofrendo com a orfandade; já olhar direto nos olhos de uma pessoa idosa, muito triste, abandonada num asilo, a carga negativa é muito grande, por mais que aqueles olhos cansados tentem cintilar alguma luz, sorrir mesmo, ao ver a fraca interpretação ridícula do Papai-Noel de Shopping! Nesse caso, para superar a carga negativa, o ator deve excedes muitas vezes a sua capacidade de interpretação. Vou logo avisando: - Não é fácil! Você acabará sendo tragado por aquela situação irredutível.

Descobri, durante visitações, no contato direto com seres humanos fragilizados, pelas carências e pelo abandono, na orfandade ou na velhice, como era importante o papel desempenhado, por esses atores, travestidos de Papai-Noel. O personagem, por si mesmo, serve como simples máscara teatral. É mínima a contribuição, porém, muito significativa no tocante ao carinho e amor ao próximo.  Com essa experiência, percebi ser possível ofertar aos seres humanos, carentes de atenção, uma mínima contribuição de caridade, como num sorriso, como em alguns abraços ou, simplesmente, dar atenção às palavras, balbuciadas com lágrimas vertidas na face. Por vezes, eram vozes, com palavras ditas trêmulas, com dificuldade, pelos idosos; ou gritadas, em forma estridente e esganiçada, pelas crianças, que se agarravam de maneira extremada às minhas pernas, na tentativa de agradecer aquela visitinha rápida, simples e desavisada; mas, que só a Luz do Natal dá ao coração, como portadora da esperança! É semelhante à pequena Candeia da Parábola de Jesus (Marcos 4:21-25), e que desperta na memória de todos, a presença da Luz do Menino Deus!  Experiências comoventes, notadamente nos hospitais, orfanatos e asilos.

Nas crianças, desesperançadas de reencontrar o lar esquecido, os pais adotivos, a simples aproximação do personagem Papai-Noel, representa muito! Serve para confortar aquelas alminhas tristes e carentes. Uma pequena boneca, uma bola, um caminhãozinho ou outra bugiganga qualquer, facilmente colhe o sorriso dadivoso e agradecido da criança. Haja força e temperança de sentimentos, por parte do ator, para seguir a simples missão de acolher, todos aqueles bracinhos, que se atiram na direção do Bom Velhinho. Alguns, talvez mais convencidos de que aquele é o verdadeiro Papai-Noel, se agarram, como podem, ao velhinho, encantados, certos de que ali está ele, em carne o osso, distribuindo balinhas, afagos nas cabecinhas e ofertando palavras, sem muito nexo, porém, suficientes para abrandar tantas carências de atenção.

Felizmente, como faz parte da vida, mais dia menos dia, aqueles pequenos seres, crédulos, irão descobrir, sem sentir mágoa, que tudo era brincadeira. Já para os idosos, calejados nas desilusões, Deus oferece o bálsamo do esquecimento, a doce amargura da senilidade, a brandura de uma saudade ingênua, de sonhos de infância, restaurada por alguns segundos, quando acreditam estar sendo acolhidos nos abraços de seus familiares amados, por muitas das vezes esquecidos. Haja coração, para aguentar a responsabilidade de bem interpretar a lenda do Papai Noel, na Orfandade e na Velhice!

(Após muitos anos interpretando o personagem, pintei o quadro “São Nicoca-colau e o Auto de Natal” - ano de 2009, que é uma sátira ao uso da imagem de Papai-Noel, criado pelo marketing da Coca-Cola, em substituição aos demais símbolos do Auto de Natal do verdadeiro aniversariante!)



Texto, fotos e tela: Rocha Maia
Edição e Ilustração: Jornal Rio de Flores

Luiz Roberto da Rocha Maia nasceu no Rio de Janeiro/1947. Morou em Teresópolis e Brasília e, atualmente, em Rio das Ostras. Em 2023, completa mais de cinquenta anos de atividade cultural.

Membro de diversas entidades culturais, no Brasil e em Portugal, é Fundador da Associação Candanga de Artistas Visuais - Brasília /DF. Membro da Academia Brasileira de Belas Artes – ABBA do Rio de Janeiro; e da Academia de Letras e Artes ALEART, Região dos Lagos/RJ. Participou de mais de duzentos eventos de artes no Brasil, Cuba, Portugal, França e Bulgária. Recebeu mais de setenta premiações e destaques em salões de artes plásticas.

Citado em catálogos e sites, possui obras expostas em galerias no Brasil e no exterior; bem como nos acervos do Museu Naïf de São José do Rio Preto/SP; MIAN/Rio/RJ; SESC/SP, na coleção do Château des Réaux; e do Museu Internacional de Arte Naïf de Vicq, na França. Seus quadros estão presentes também em pinacotecas de diversas entidades e coleções de aficionados por arte naïf no Brasil, Cuba, França, Itália, Espanha, Chile, Japão, Bolívia e Portugal. Por três vezes foi selecionado para a Bienal Naïfs do Brasil, tendo recebido o prêmio aquisição 2006, em Piracicaba/SP. Na literatura, publicou o catálogo “Ingenuidade Consciente”, Editora A3 Gráfica e Editora – 2010; o livro “O Diário de Lili Beth”, pela editora Videu – 2021; e colaborou com a Coluna Arte Animal, da revista digital Animal Business Brasil, escrevendo artigos versando sobre a presença de animais como tema nas belas artes.

 

Edição e Direção Geral
Renato Galvão








  

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